Existem muitos livros que ensinam a desenhar, outros ainda que ensinam a desenhar no interior de determinações específicas - estilísticas, figurativas, representativas, políticas, editoriais, etc. O mundo da banda desenhada não é alheio a esse tipo de “manuais”, sejam eles mais gerais e estruturais (Eisner, McCloud, Abel & Madden), sejam eles mais direccionados por género ou tema ou tipo de personagens (os “desenha x à maneira de y”, o Perspective!, de David Chelsea), sejam eles ainda abertos no seu campo mas fechados na sua origem (ou será o contrário?; penso na série Dynamic de Burne Hogarth). Nada disto revela das suas qualidades, ou falta das mesmas. Esses livros abordam lições preliminares, as ferramentas, técnicas de preparação, estruturação, acabamentos e artes-finais, aspectos relativos à esfera sócio-económica, etc. Por vezes podem abrir espaço a considerações mais profundas, até filosóficas, da tarefa em questão (penso nos livros de desenho de Baudoin)… Podem ainda ser máscaras de monografias sobre um autor.
Ultimate Comic Studio é um objecto híbrido, fruto natural de uma cultura que já deixou as massas há algumas décadas para se tornar, e talvez cada vez mais, uma cultura de nichos, de culto, de fãs. Bryan Hitch é um dos grandes nomes dos artistas a trabalhar na indústria da banda desenhada de super-heróis mainstream do momento, e este livro nasce dessa circunstância. Não se trata de um manual de como desenhar, nem tampouco de uma monografia completa sobre a sua carreira, nem sequer a colecção de uma mão-cheia de ideias, noções ou lições que pudessem ser seguidas pelos seus leitores. Ao mesmo tempo, é uma mistura de tudo isso.
Confessemos que Hitch faz parte dos artistas que julgamos mais interessantes a trabalhar no interior deste género, actualmente. Há algo neste campo particular da banda desenhada que pede por uma abordagem menos livre e estilizada, e antes precise de se prender a princípios de representação naturalistas. É curioso que se faça essa “exigência” num género cujos contornos são precisamente marcados pela mais desabrida das fantasias, a qual não apenas afecta as figuras, as criaturas e as suas possibilidades físicas como simplificam, na esmagadora maioria das vezes, o modo como o mundo (representado mas espelho do nosso) funciona, surgindo sempre então soluções absolutas, universais e fáceis. Daí que haja aquela ideia tão dispensada de que, sendo o género dos super-heróis mergulhado no mais livre dos entretenimentos, é desprovido de posicionamentos ideológicos, ao contrário de outras obras mais abertamente “engajadas” (a título de exemplo, o trabalho de reportagem de um Sacco, a argumentação de um Squarzoni, o afrontamento de um Neaud)… sabemos, porém, que não há nada de mais falso, e até perigoso. Quanto mais se oculta (até dela mesma!), mais insidiosa é a ideologia transmitida.
Mas no que diz respeito à figuração, ela quer-se naturalista (“realista” não nos parece ser um termo muito correcto). Daí que os artistas que mais nos levam a procurar este género sejam Hitch, Gary Frank, Gary Erskine, Jae Lee, Alex Maleev, John Cassaday, J. H. Williams III, e, num grau ligeiramente afastado, Frank Quitely. Infelizmente, esta indústria não é pautada de forma alguma pela coerência ou a continuidade artística mas sim pelas necessidades de mercado que ultrapassam quaisquer outras prioridades, e não é inédito que se comece a ler um título cuja arte é alterada a meio de um run, senão mesmo de um comic book (aconteceu isso com Hitch no caso da JLA e depois com os Fantastic Four): é frustrante, pois se aspectos do ridículo daquele imaginário se podem suportar pela vertente visual, quando esta falha - e tanto a Marvel como a DC estão carregadíssimas de mediocridade visual nos seus títulos - a leitura é insuportável. O que todos esses autores mantêm em comum é uma espécie de gravidade, de peso, nesse universo que, apesar de tudo o que pode querer dar a pensar, é de uma leveza contagiante. Há um qualquer equilíbrio interno na arte desses nomes que os impede de derrapar numa mediocridade total (cujos nomes não vale a pena citar, uma vez que preenchem a maior parte da produção dessas duas grandes editoras e outras em seu torno). Hitch, porém, em relação a esses autores e aos que os antecederam, aumenta o grau de inscrição no mundo real: nas suas vinhetas vemos marcas reais de tudo e mais alguma coisa, os carros que habitam esses universos são carros que existem no nosso, uma cena no interior de um restaurante parece-se de facto com uma cena no interior de um restaurante, e as personagens andam vestidas como os comuns mortais se vestem, mesmo os mais confiantes na moda e até os arriscados… Morrison, algures em Supergods, alerta para o facto de que os super-heróis devem estar vestidos de tinta, e não com roupas reais, mas isso diz respeito aos uniformes (que Hitch, seja como for, também explora como se fossem tecidos ou materiais reais, que se podem deformar, rasgar, deteriorar nas batalhas); mas se tudo o mais estiver ancorado na mais próxima das realidades, mais fantástico será o voo imaginativo. Como o próprio Hitch o afirma, quando discute o Quarteto Fantástico, que tem um homem feito de pedras e outro que se incendeia a si mesmo, “Não queremos chamar a atenção para o quão pateta [silly] isto é, porque se estivermos a pensar nisso quem lê pensará ‘Ah, pois é, isto é mesmo pateta, não vou ler mais’. Tudo aquilo que fizeres a partir do momento em que agarras no lápis tem de ser verosímil”. É uma forma muito curiosa e produtiva de entender a exponenciação da “suspensão da incredulidade”, e que funcionou particularmente bem nas suas colaborações com Mark Millar, primeiro nos The Ultimates e depois no Quarteto Fantástico. Barthes também falava do “efeito de real”, elemento sem outra função que não a de servir de indexação ao mundo empírico, e Hitch cumpre esse efeito como ninguém neste género particular.
É precisamente, em parte, essa “atitude gráfica” o que o diferencia de outros autores que são muito menos felizes em termos artísticos, independentemente da sua fama e fortuna. Alguns exemplos de autores que têm fãs e muitas oportunidades de brilhar em projectos de grande visibilidade, mas que apresentam estratégias visuais as quais, mesmo no interior deste género, são de uma pobreza terrível - e por serem mais famosos, se tornam mais problemáticos do que os maus artistas tout court - são, a nosso ver, Andy Kubert, John Romita Jr., Olivier Coipel e, acima de todos, um dos Image Brats, Jim Lee. Quase todos parecem trabalhar com moldes pré-fabricados das suas personagens (e de poses, expressões faciais, etc.), e depois seguem variações da ordem do retrato-robot.
Nada disto quer dizer que não possam existir abordagens totalmente diferentes dessa economia de figuração. Quitely é um artista que “aboneca” exageradamente as suas figuras (uma espécie de Uderzo); Philip Bond, Jill Thompson, Farel Dalrymple, Eddie Campbell, e alguns dos autores portugueses a trabalhar na Marvel são exemplo de desenhadores com um grande grau de estilização ou mais livres que criaram abordagens visuais de extremo interesse: no entanto, é sempre no interior de um qualquer programa limitado e que não assinalará, digamos assim, os modelos vigentes a seguir pelos demais (o chamado “house style”). E o modelo tem sido essa linha geral do naturalismo exacerbado… Este exercício não teria fim ao se considerar toda a história do género, que começou de uma maneira algo pobre (afinal, quase todos os títulos no final dos anos 1930 e depois 1940 não poderiam jamais ser comparáveis visualmente à banda desenhada de jornal), e teria sempre espectros entre o naturalismo sério (Dick Giordano, a primeira fase de Bill Sienkiewicz?) e outro mais estilizado (John Byrne? Cliff Chiang?).
Hitch enfatiza repetidamente que não pretende apresentar modelos mas partilhar aquilo que funciona para ele, e que poderá servir também para outros. Por isso, é muito menos sistemático e exaustivo nas suas secções como Abel-Madden e Chelsea, e menos descritivo e abstracto do que Chavanne. Há, ainda assim, muito que seguir, presumimos, como quando vai explicando em vários momentos como parte da magia destes desenhos está precisamente nas ilusões que se criam. Não são propriamente “erros” (de perspectiva, anatomia, figuração, etc.), mas antes uma exploração daquilo que funciona bem no papel, a 2 dimensões. Nesse sentido, poderíamos encontrar em autores como Greg Land e Alex Ross dois extremos de uma má interpretação de como desenhar a realidade neste campo, partindo do mesmo ponto. Land parece desenhar por cima de fotografias (e um atlas de referências muito limitado, diga-se de passagem), levando a situações caricatas senão mesmo ridículas das suas figuras; Ross explora um virtuosismo tão completo e teatral, que o torna um autor próximo de ilustradores tão clássicos como Leyendecker, Rockwell e Struzan, mas não o torna um dinâmico e interessante “storyteller” - que é como Hitch se autodefine. Aliás, os seus mais fortes conselhos têm mesmo a ver com o necessário afastamento dos aspirantes de uma abordagem ilustrativa, de poses demasiado fechadas, de pin-ups, infelizmente repetições verificadas um pouco por todo o lado. O que Hitch diz da maneira como os aspirantes a artistas da Marvel e da DC se devem aproximar daqueles que os poderão fazer entrar na indústria são mesmo as maiores pérolas de Ultimate Comics Studio.
O livro é fruto de uma série de entrevistas e/ou conversas que levaram à criação dos blocos de texto espalhados ao longo do livro (Emily Pitcher fez o trabalho de organização e edição textual), contendo sobretudo trabalho já existente de Hitch, com algumas fotografias tiradas no seu estúdio ou a ele mesmo enquanto trabalhava em projectos (então) em curso. Uma das coisas que não está presente nestas considerações de Hitch é a sua formação, fontes, linhas de desenvolvimento. Tirando quatro pranchas justapostas e de reproduzidas em pequenas dimensões, os trabalhos mais antigos que aqui se encontram são um poster promocional do filme Fantastic Four, de 2005, as imagens que criou para o divertido romance de Grossman, Soon I Will be Invincible, e alguns trabalhos publicitários. Assim, fica de fora a sua produção no Reino Unido (Transformers!), a qual não era de forma alguma pautada pela qualidade que se lhe reconhece nos nossos dias. Mais, quase todo o material é da esfera da Marvel, ficando de fora todo o seu trabalho no universo alargado da DC Comics (JLA, The Authority). Imagina-se aqui, portanto, uma dessas típicas batalhas de copyright que tanto mancham esta indústria. Hitch cita Curt Swan e José Luis García-López, ambos no Super-homem, como os seus gostos mais recuados nas leituras, e Joss Whedon, na introdução, fala de uma certa aura que só encontrara antes (e pela última vez) em Neil Adams, mas nenhum destes pontos é depois mais estudado. Sem querer estabelecer uma relação de causa-efeito, há porém no nosso horizonte de referências um outro nome que nos parece estabelecer com Hitch uma mais imediata continuidade: Alan Davis. Todos estes autores partilham uma procura pelo respeito da figura humana ainda que atravessada pelas tais liberdades necessárias às poses dramáticas e dinâmicas, uma cuidada pesquisa pela variedade da expressão dos rostos, alguma atenção pelo pormenor - em número, qualidade e referência - que “adensa” e “ancora” os ambientes, e a entrega a estratégias de coloração que insuflam uma leveza típica do género (se bem que em Hitch isto se tenha alterado, como veremos). Davis é um autor também que atravessou um desenvolvimento que levou com que as suas personagens fossem ganhando uma mais estilizada e arredondada massa muscular, uma composição de página mais dinâmica que colocava o(s) protagonista(s) no foco central da imagem, uma preocupação por integrar os eventos retratados na “realidade” dos seus leitores, acentuar a expressividade dos rostos das personagens, e até citar pessoas existentes para a construção das suas personagens (todos estes factores estão patentes na edição de um só volume de Captain Britain, escrito por Alan Moore; a citação a que nos referimos em último lugar diz respeito ao rosto do actor cómico Terry-Thomas na personagem Mad Jim Jaspers, décadas antes de Samuel L. Jackson dar o rosto ao Nick Fury dos The Ultimates, que seriam depois imitado na realidade dos filmes….).
O autor revela em muitas das suas afirmações um humor auto-derisório muito salutar. Apesar de falar de métodos de paginação, focalização e enquadramento, criação de perspectivas e ambientes, de esboços e escorços, de expressão e movimento, de procura e uso de referências, de preparação do espaço de trabalho, de ferramentas e utensílios e técnicas, de desenho, de arte-final e de coloração, e até de modos de colaboração (com os argumentistas, os arte-finalistas, os coloristas, os legendadores), repete sempre não querer impor as suas impressões e experiências aos seus leitores. É uma pena que não se partilhem aspectos mais exactos dessa experiência - como a sua relação com os editores, mas mais uma vez deverá haver limitações impostas por razões contratuais (e que tornariam o livro menos num projecto para fãs, também). Uma das secções é mesmo intitulada “Bryan Hitch trademarks” (“características chave”, poderíamos dizer), mas o autor descreve que não as procurou activamente, mas são consequência inevitável da personalidade criativa de cada um. Essas características, como saberão os seus fãs, são a apresentação de establishing shots ou quasi-reais (a Nova Iorque da Marvel) ou absolutamente verosímeis, cenas de acção em que a perspectiva está no seu interior, com variadíssimos planos visuais, representações em planos muito próximos das personagens, permitindo uma grande carga expressiva dos seus rostos, a centralidade icónica das personagens nessas mesmas cenas, a atenção para com os pormenores, sobretudo reais, episódios de grande escala - como nas cenas de crescente invasão em The Authority, ou a famosíssima vinheta de 8 páginas de The Ultimates (Hitch compara-a com aquela que foi feita por Jim Lee em Batman, e é de facto um excelente case study para perceber a diferença de qualidade conquistada por estes dois autores) -, etc. E tudo isso é mostrado na prática, passo-a-passo, na criação da capa e de uma história de três páginas com essas personagens, as quais, não sem humor, são construções-cliché de vários arquétipos (estereótipos, na verdade) dos super-heróis…
Como começáramos a adiantar, parte do que tem tornado Hitch num autor de sucesso é, já para não falar dos argumentistas capazes de insuflar um qualquer grau de sofisticação neste género (Mark Waid, Ed Brubaker, Mark Miller, Warren Ellis), mas no seio da esfera do visual, a colaboração com certos coloristas, nomeadamente, de Paul Mounts. É, aliás, na esfera da cor que parte da matéria visual da Marvel tem coalescido naquilo que Kent Worcester escreveu numa magnífica e muito apreciada frase num seu artigo recente: “o estilo escorregadio, quase oleoso que se tornou o estilo modelo da Marvel nos últimos anos” (e verificado, no caso de Hitch, sobretudo na série Capitão América escrita por Brubaker). Mas apesar da torrente sobretudo medíocre deste mainstream, ainda existem alguns autores e artistas, como Bryan Hitch, que nos fazem acreditar ser possível redescobrir sempre algum prazer na leitura destas silly stories.
Nota: todas as imagens foram retiradas da internet.
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