Esta publicação reúne vários trabalhos do artista Tiago Baptista, alguns dos quais foram publicados em fanzines (Cléopatra) ou outras publicações (como o jornal da Oficina do Cego). O autor é estudante de pintura, e trabalha vivamente nessa área também. Publicada esta antologia por duas associações culturais sem fins lucrativos, ligadas a áreas distintas mas irmanáveis da cultura visual, da arte contemporânea e de um certo posicionamento face à educação, circulação e discussão da cultura no país, e ainda mais agregando quer o trabalho do autor quer as características do que encontraremos no seu interior, pode dar-se o caso de que este objecto habite uma complicada fronteira tripartida entre o círculo tout court da banda desenhada, o livro de artista e outros modos de publicação independente. A cada um desses descritivos corresponderá um circuito social e económico, que se pode cruzar aqui e além, mas que tem qualificações específicas. Logo, a escolha do termo certo para o descrever lança Fábricas, baldios, fé e pedras atiradas à lama a jogos muito diferentes. Não incompatíveis, é certo (afinal, há a confluência autoral destas linhas de força), mas muitas vezes afastados.
De certa forma, Tiago Baptista não está sozinho nesta situação. Os casos mais próximos destes contornos é o trabalho partilhado de Nuno Sousa e Carlos Pinheiro, mas também poderíamos arrolar um projecto de Mattia Denise que levanta questões similares. Afinal, teremos aqui bandas desenhadas que podem ser lidas descontextualizadas por completo da restante obra ou tarefas do autor? Devem ser lidas, pelo contrário, numa relação obrigatória com os temas e preocupações presentes na pintura (o barro, as relações dinheiro-arte, os discursos em torno da arte)? Podem ser lidas estas histórias (algumas) como palcos de esboço de obras futuras, ou então como locais de pensamento discursivo sobre as inquietudes que depois se expressam doutro modo, com outra matéria, nas pinturas? Não temos a veleidade de querer responder a estas perguntas, mas com elas alertar para as possibilidades múltiplas que se nos oferecem.
Se bem que seja possível, com pesquisa, aproximações jornalísticas, e um exercício de juntar pequenas informações, possamos encontrar algumas dessas respostas. Os trabalhos reunidos são algo díspares entre si, apesar de se poderem agregar alguns grupos. As primeiras peças, digamos assim, estão muito próximas de trabalhos de Sousa e Pinheiro, no sentido em que são composições visuais que tiram partido das estruturas e figurações da banda desenhada mas para criar curtos discursos - quase apetece dizer “instantâneos” - que abordam o estado das artes visuais contemporâneas em Portugal, e seus enleios com a maquinaria político-financeira, por exemplo. Outros, na mesma veia, acabam por responder a movimentos mais profundos das inquietações do artista. Outros revelam de uma cultura mais jovem, despreocupada, zine à pressa, mais anedotas súbitas que ponderado exercício.
Uma série há, deliciosa, que coloca uma personagem chamada Zé Cabeludo - há pistas para crer que se trata de um jogo de auto-ficção - que se senta numa sala de cinema com realizadores famosos, a saber, Manoel de Oliveira, François Truffaut, Andrei Tarkovski e Ingmar Bergman para verem obras-primas contemporâneas dessa arte, respectivamente Espião nas horas vagas (com Jackie Chan), Uma noite atribulada e Marmaduke! Com Bergman, apesar de estar em cena “Uma valente porcaria, com Manel Parolo e Gaja Boa” ou “Parvalhão & Parvalhona em Cenas Parvas”, acabam por desistir… Os diálogos são muito diferentes, conforme o interlocutor, consistindo nas diatribes de Zé Cabeludo contra o estado miserável do cinema comercial e o que ele implica em termos de alienação social e intelectual. O divertido está sobretudo nas reacções dos realizadores, com Tarkovski a não responder ao insistente rapaz, ou Truffaut a optar por um cigarro… Os discursos criados, seja como for, não estão longe do retrato que emerge na leitura de todas as histórias.
As figuras de Tiago Baptista têm uma espécie de falta de elegância que lhes dá um charme especial. Não se trata da elegância do traço, que possui, mas das estratégias de figuração. Elas encontram-se num balanço interessante entre a abordagem virtuosa e a caricatura, com as cabeças ligeiramente desproporcionais em relação aos esguios corpos menores e de borracha, e o autor parece inclinar-se, nas expressões, para rostos apáticos, atordoados, distraídos ou até tolos. Quer Zé Cabeludo quer uma outra personagem de óculos que surge em várias das histórias se assemelham entre si e com o autor ele-mesmo, o que aliado a informações textuais e paratextuais, nos reforça a ideia de alguma abordagem autobiográfica, mesmo que ora velada ora ficcionalizada. É isso o que fará distinguir algumas das histórias, umas simples em termos gráficos, quase catárticas, outras preenchidas por tramas densas e volumosas e abertas a esses discursos, a um só tempo, apocalípticos e integrados, virulentos e construtivos…
Há um aspecto na abordagem do autor com o qual encontramos um pequeno obstáculo de concordância. Trata-se de uma matéria abordada na história “Um dia no subúrbio”, de cinco páginas. As primeiras quatro mostram nove vinhetas (duas das quais ocupando a página inteira) de várias cenas de um qualquer - se bem que seja facilmente identificável para quem o conheça - subúrbio urbano. Os desenhos são de uma acalmia maravilhosa, mostrando ora aquelas margens entre o campo e a cidade, ora entre os baldios e as zonas densamente habitadas, pontos de passagem e do transitório quase absoluto, quase sempre sem recurso à figura humana. Ou então uma vista de uma qualquer loja, ou paragem de autocarro, mas com uma distância suficiente para lhe conseguir insuflar uma estranha aura. Ao mesmo tempo, uma legenda flutuante com texto tece comentários aparentemente de elogio a essas mesmas paragens, mas com um nítido tom irónico e que pretende ser disruptivo com as imagens: “As construções recentes convivem saudavelmente com a pontual arquitectura de cariz rural que ainda existe”, escreve-se sobre a imagem de um canto esquálido e arquitectonicamente anónimo do subúrbio, “Na periferia também há restaurantes agradáveis”, reza sobre uma imagem de um McDonald’s… Não é a primeira vez que falamos destes assuntos associando-o aos posicionamentos ético-políticos possíveis de ocorrer numa obra gráfica (fizemo-lo com um livro de Ricardo Cabral e outro de António Jorge Gonçalves). Ora, tememos que haja da parte de Tiago Baptista uma falha - de grau, entenda-se, não no gesto total - em compreender a vivência, a experiência que pode emergir das pessoas que vivem esses interstícios urbanos e o subsequente reconhecimento que deve ser tarefa do artista. Vive lá gente, afinal. Em vez de transformar o possível exercício da dérive situacionista para interrogar e fazer emergir novos processos de pensamento e criação e resposta em relação a essas paragens - que na sua suposta desolação de valores cria outros inesperados -, em vez de desenterrar “passagens secretas de uma outra espécie” (para citar o autor surrealista inglês Anthony Earnshaw), o autor opta por repetir essa distância que acaba por tipificar o intelectual e o artista em relação a esses locais. Poder-se-ia objectar que essa distância está em consonância com os posicionamentos das histórias de cinema, mas se esse elitismo nasce no seio das relações com obras de arte, sobre as quais se criarão redes de referências estéticas e hierarquias de valorização, em relação aos locais isso implica uma outra ordem de interrelacionamento humano que não pode ser escamoteado.
No entanto, esse é um aspecto de somenos, talvez, ao golo central do artista com essa pequena história, e toda a sua publicação, que é concentrar os seus esforços num objecto que passa agora a circular entre nós e, como tal, deve ser dado à leitura mais ampla possível.
Nota: como sabem, somos associados da Oficina do Cego. Valha o que valer a distância e proximidade dessa plataforma na nossa leitura do livro. A outra associação a que o autor está associado é a a9)))).
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