Permitam-nos começar com uma impressão de infância. Vivendo em Lisboa ou nos seus subúrbios e visitando-a regularmente, havia como que um número fechado de ruas que se atravessavam, enclausuradas nas rotas dos transportes públicos ou nas escolhas constantes do carro do pai. Isso levava a que existissem ruas que viravam, ou subiam, ou desciam, mas em direcções nunca trilhadas e por isso totalmente desconhecidas, criando sempre um espaço “invisível” e que, assim, convidava à fantasia. Pontas soltas da cidade. Uma das sensações mais maravilhosas e que agora é impossível de recuperar era a de ir por uma rua nova e desconhecida, e de repente desembocar num largo familiar, numa daquelas ruas de todos os dias, num local conhecido. Vir a dar a um lugar pelo outro lado. Essa sensação trazia uma súbita nova peça no puzzle, mas ao mesmo tempo ia apagando as zonas “ocultas” ou “pontos cegos”… Outra noção que se ia formando aos poucos era a de que a cidade de Lisboa parecia assemelhar-se a uma só colina - ouvia-se que tinha sete colinas (mito que mima o de Roma, mas porque não o manter?) -, mas desconfiava-se que elas estavam todas agregadas num só cume. Ou então como uma imensa torre cujos contornos exactos estavam sempre fora de foco. A cidade era inclinada e parecia subir aqui, descer ali, convergir acolá, formando então essa ideia de que haveria um ponto central no topo da cidade a partir do qual se poderia vislumbrá-la toda. No Jardim da Estrela havia um coreto que parecia espiralar nessa direcção. Atrás dos muros do Castelo de São Jorge previa-se existir outra solução…
A capa do novo livro de Ricardo Cabral cria um vértice em que todas estas sensações se vêm unir numa massa significativa. Este é um volume que reúne toda uma série de trabalhos curtos que haviam sido publicados noutras publicações, a maior parte das quais tivemos a oportunidade de ir dando conta aqui, e, como escreve o autor no prefácio, têm mais a ver com encontros - com os locais, é certo, mas também com as pessoas ou objectos locais - do que com uma vontade de criar “retratos” exactos das cidades visitadas. Afinal, devolver olhares turísticos é o que há de mais repetido, portanto é mais fiel a uma possível experiência partilhável entre o autor e os seus leitores o moldar as observações de um quotidiano banal, mas que representado por estes instrumentos se transmuta, ou então através da combinação do que foi seleccionado, ou através mesmo de uma ficção ou fantasia. Apesar de todas elas nascerem nas páginas e nos gestos dos diários gráficos do autor, não há nunca um olhar objectivo em relação ao que vê e devolve, mas antes um esforço em captar e desenvolver, no papel, as interrelações que emergem nesses momentos.
Uma vez que já havíamos falado de algumas destas histórias, de modo breve, quando da edição de Portimão, City Stories e Lisbon Studio Mag, e muitos das leituras repetir-se-iam em relação às histórias novas, fiquemo-nos por dois breves comentários sobre as duas imagens mostradas neste espaço. A primeira é uma página arrancada da história sobre Barcelona, uma cena nocturna à porta da Sagrada Família, em que os rituais dos turistas são interrompidos por um intempestivo bêbado. Num exercício de desdobramento no próprio relato, o autor confessa a uma amiga, que vê aquela página ou ouve a história, a estranha cena da dissolução do homem ébrio no ar, cujas últimas formas recordam uns nódulos orgânicos que compunham a pintura de Moebius num projecto intitulado Quatre-vingt huit. Há aqui uma breve e turbulenta promessa da parte de Ricardo Cabral de poder encontrar na mais chã das realidades e mesquinha das circunstâncias as peças necessárias para uma fuga fantasiosa, mas ele insiste no regresso à vida diária, talvez com isso querendo demonstrar a sua preferência por se deleitar com essas mesmas simplicidades. Aliás, isso ressoaria de modo significativo no número de cenas em que surge, no interior do plano de composição, as páginas em branco dos seus blocos de desenho. Mais do que a angústia de Mallarmé, Cabral parece entender as folhas brancas como nos versos de Valéry, “que nada há de mais belo/do que o que não existe”.
Essa atitude é ainda mais bela ao perceber o modo como o autor procura variadíssimas soluções no modo como passa a integrar esses gestos diários numa narrativa mais desenvolta, como tenta transformar essas capturas quotidianas e ao acaso em elementos que ajudem no sentido de uma história. Assim, na segunda parte da história de Marselha, a incompletude das cores sobre algumas personagens na folha dupla do bloco de desenhos, que se torna depois apenas uma vinheta, e a sobreposição de linhas, permite a emergência de uma espécie de fantasmas gráficos e cromáticos. São essas figuras que nos dão a ideia do transitório e da instantânea nostalgia que se instala no presente se se o observa com a distância necessária para a captar num desenho, ou num apontamento.
Que sejam pontas soltas, exteriores a uma maior programação do esforço criativo, não haverá dúvida, mas que Ricardo Cabral cria ainda assim um fio de Ariadne em torno de cidades com os seus pontos cegos e preenchimentos fantasiosos, tampouco.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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