Tendo escrito largamente sobre a ideia do cânone e dos seus processo de formação em relação à banda desenhada (ainda que de modo tentativo e incipiente), este post serve simplesmente para dar a conhecer, numa versão simplificada e em português, os textos da nossa autoria que fazem parte do projecto de Paul Gravett. Como o próprio editor indica em vários locais, a ideia não era, de forma alguma, criar uma espécie de decisão definitiva, mas um possível retrato de uma perspectiva singular e apoiada de vários modos, do tremendo fluxo de criação e informação que este domínio cultural é constituído. Qualquer escolha é sempre fruto das circunstâncias e passível de ser revista numa nova abordagem, tal como a nossa lista para Gravett sobre os livros de 2011. Não poderemos jamais esperar que a visão de um especialista britânico possa servir de modelo acabado, mas tampouco a de um francês ou de um português, de um norte-americano ou de um coreano do sul… Por outro lado, uma perspectiva demasiado atreita à história e aos supostos “clássicos”, ou então presa à esfera do sucesso contemporâneo, ou então inclinado nesta ou naquela estreita consideração de géneros específicos, etc., será sempre de uma limitação pouco produtiva. Pensamos que este livro deve ser encarado à luz dos outros da mesma colecção, roteiros de, literalmente, 1001 possibilidades para conhecer um território. Abre-se ao acaso, descobrem-se coisas até então desconhecidas, reitera-se a importância de um título familiar, pondera-se uma família, etc. Existem outros projectos similares, como 500 Essential Graphic Novels, de que falámos aqui, comparáveis. Todos eles com falhas, mas todos eles cumprindo o papel limitado a que se abalançam. Todos nós teremos sempre uma perspectiva pessoal sobre o que falta (as bandas desenhadas de jornal mais antigas, séries ou curtas de revistas esquecidas, trabalhos em fanzines, obras que poderão viver numa fronteira da banda desenhada com outras áreas ou nas margens da própria banda desenhada, etc.), mas estes livros sempre podem servir esse propósito de introdução e apresentação. Entre 1001 entradas, seguramente que haverá um pouco a descobrir por todos os seus leitores, não havendo nenhum dos colaboradores que os conheça a todos.
Apenas uma palavra sobre o processo, dentro daquilo que estamos autorizados a discutir publicamente. Tendo sido convidados num momento já avançado do projecto, ainda nos foi possível contribuir com uma ideia muito pessoal de alguns títulos internacionais que poderiam (não “deveriam”) ser incluídos - entre 300 a 400 títulos em duas fases separadas - e uma lista mais ou menos variada de banda desenhada portuguesa que estamos seguros poderia cotejar a cena mundial se quaisquer desequilíbrios - uma lista de umas três a quatro dezenas. No entanto, o nosso peso pessoal foi nulo no cômputo final. A escolha dos títulos sobre os quais escrevemos foi feita também numa lista praticamente esgotada - isto é, já tomada pelos outros colaboradores, entre os quais Domingos Isabelinho - mas indicámos apenas títulos conhecidos, com alguma intimidade da obra dos seus autores, e que nos trouxeram algum tipo de prazer na leitura, respeitando mais uma abordagem epidérmica do que crítica. Os próprios textos revelam essa atitude. [não há qualquer ordem de apresentação, e deixamos links para tratamentos anteriores] Mais informações sobre o livro, aqui.
The angriest dog in the world (1987-1992). David Lynch.
O famoso realizador David Lynch criou esta tira de banda desenhada para o L. A. Reader entre 1987 e 1992, e seria republicada mais tarde na antologia Cheval Noir, da Dark Horse. A tira mostra sempre as mesmas quatro vinhetas, na qual está representado um quintal onde um cão se encontra a rosnar. As primeiras três vinhetas mostram uma cena diurna, e a última é nocturna, mostrando a luz difusa a sair da casa (integrar-se-ia isto na categoria da “iteração” do bouquet Oubapo). Na introdução lê-se sempre o seguinte: “O cão está tão furioso que nem se pode mexer. Não come. Não dorme. Mal pode rosnar. De tão tenso e furioso, está quase num estado de rigor mortis”. As únicas diferenças entre as tiras, são os balões de fala proferidos pelas personagens que não se vêm, dentro da casa. As últimas tiras publicadas foram desenhadas como se estivessem a arder, um fogo que progressivamente consumiu a tira na totalidade.
As piadas são de uma só linha a diálogos curtos, e o humor é sempre estranho, desarmante, por vezes frouxo, como é apanágio de Lynch, quer nos seus filmes quer na sua animação Dumbland. É como se o personagem principal não fosse nem o cão nem as pessoas que falam de dentro da casa, mas o mundo lúgubre que a tira retrata. Para além da malga e da trela do cão, aquele pátio é despojado ao máximo, a árvore parece não ter folhas e a fábrica agoirante e poluidora ao fundo não promete descanso algum…
Leituras similares: Zippy the Pinhead, de Bill Griffith, e Le Dormeur, de Lewis Trondheim.
Vellevision. A Cocktail of Comics and Pictures (1997). Maurice Vellekoop.
O que é que Edward Gorey, Ziggy Stardust, telenovelas e sit-coms, a Barbie dos anos 1950 e Puccini têm em comum? Não faço a mínima ideia, mas Maurice Vellekoop saberá pois essas são algumas das coisas postas lado a lado neste arraial divertido que é Vellevision. Sendo uma colecção do trabalho de mais de dez anos do autor, enquanto ilustrador e artista de banda desenhada, encontraremos aqui desde peças de uma só página a pequenas histórias, até a séries de ilustração, reportagens das estações de moda e até anúncios falsos.
A maior parte das peças narrativas centram-se na vida gay: de relatos sobre a angústia nascente da adolescência a saídas regulares nocturnas, desde confissões semi-autobiográficas a fantasias de géneros específicos da banda desenhada (“Homoman”!). se conseguirem imaginar uma produção de uma Rua Sésamo alternativa queer, então “Maurice’s Fairy Alphabet” poderia facilmente tornar-se uma rima de sucesso. Algumas das histórias não são sobre a cultura gay, mas Vellevision está cheio das referências do costume, concentradas e depuradas nas oito páginas de “Os 8 pilares da Cultura Gay”. Há clichés em todas as páginas, alguns dos quais esticados até ao seu limite com consequências hilariantes. Ao misturar referências de toda a sorte de origens, o autor cria uma celebração da diversidade dos jogos e divertimentos sexuais. Em “The Adventures of Gloria Badcock”, a protagonista é enviada ao espaço sideral ou ao mundo interno dos sonhos e fantasias, sob o mar ou até para um bordel de luxo com prostitutos masculinos para encontrar toda a espécie de beatitude orgiástica (“Eu vim, eu vi, eu vim-me”, diz ela deliciosamente).
Criem grandes expectativas de glamour e panache com as linhas delicadas e as cores intensas de Vellekoop, criando-se os ambientes mais exactos para os seus retratos de mundos tão diversos, prenhes com o mais desbravado divertimentos do sexo, que vem em todas as cores e feitios.
Leituras similares: Good Taste Gone Bad, de Mitch O’Connell, e Anarcoma, de Nazario.
Market Day (2010). James Sturm
Como o título sugere, Market Day narra um só dia na vida de um fabricante de tapetes, Mendleman. Uma manhá ele dirige-se ao mercado onde tentará vender o seu produto, para regressar na manhã seguinte. No entanto, Mendleman retornará como um homem profundamente mudado.
Reminiscente da literatura da Mitteleuropa do século vinte, e mais uma vez explorando questões do judaísmo (azhkenazi), Sturm está nesta obra menos preocupado com os contrastes étnico-políticos ou com uma pesquisa histórica, do que com a natureza humana no seu mais profundo. Se contraste houver, é aquele existente entre um nível económico, que coloca lado a lado um artesanato diligente mas em vias de desaparecimento com a emergência de um capitalismo de mercancias, e todas as expectáveis transformações do tecido social.
Mendleman é um homem que observa atentamente o mundo que o rodeia, desde a tranquilidade do sol matutino num horizonte ainda escuro às estreitas e vivíssimas ruas do centro urbano. Tudo isto é traduzível em padrões nos seus tapetes. Superficialmente, Mendleman pode ser um artesão, mas no seu íntimo ele é um artista. Um dia antes do seu filho nascer, Mendleman descobre que não pode mais vender os seus tapetes. “Que fazer?”, parece ser a pergunta que paira sobre ele o lança numa tempestade de reflexões e memórias dolorosa, conflitos intestinos e até mesmo fantasias de escapismo, transformando-o num Sísifo emocional. Tornar-se-á ele num homem melhor?
Sturm domina perfeitamente o espectro das ferramentas oferecidas pela banda desenhada, empregando-as com eficiência e saber, sem quaisquer desnecessários artifícios e melodramas. Algumas destas páginas são quase interlúdios, transmitindo algumas dos mais calmantes e meditativos momentos na história da banda desenhada. Esta tensão permanente entre uma história movente e uma forma aparentemente serena torna Market Day numa obra-prima contemporânea.
Leituras similares: Storeyville de Frank Santoro, Clyde Fans de Seth, Le Voyage de Edmond Baudoin e Journal de mon père de Jiro Taniguchi. Texto maior.
Le Coeur Couronné (1992-1998) Alejandro Jodorowsky e Moebius.
Alain Zacharias Mangelowsky, agora Mangel, é um especialista de Heidegger ensinando na prestigiosa Sorbonne. Discutindo os elos entre filosofia e religião, vestindo-se de violeta e com uma troupe de estudantes que o veneram como a um guru, as suas aulas são transformadas bastas vezes em púlpitos da sua pregação. Quando a sua vida de desmorona à sua frente (um divórcio, a falta de respeitabilidade profissional) Mangel envolve-se irreversivelmente com um bando de lunáticos religiosos que acreditam estar a preparar o regresso do Profeta João e, consequentemente, de um novo Jesus. O próprio Alain seria o progenitor. Mas estas personagens dúbias estão também envolvidas num cartel de droga colombiano, raptos, violência e magia sexual. Muitos “milagres” em torno de Mangel, mas ele descarta tudo como meras coincidências (ou sincronicidades junguianas), pois ele não tem fé. Este caminho turtuoso levá-lo-á a um ritual ayahuasca, que lhe trará grandes transformações…
Em muitos aspectos, os elementos que se encontram mesclados nesta trilogia são os mesmos que Jodorowsky tem estudado e explorado repetidamente nos seus livros, filmes, teatro, banda desenhada e cursos (Mangel talvez seja mesmo um duplo do autor). Ao passo que a saga do Incal ligava estes territórios aos elementos típicos da space opera, Le Coeur aproxima-os da nossa realidade, pondo em causa as barreiras que construímos entre filosofia e religião, razão e fé, sexualidade, expressão, política e o individual. A arte de Moebius flutua entre a “linha clara” do Incal e os seus desenhos mais texturados e detalhados de Blueberry, numa abordagem simples e clássica da narrativa, deixando esta desenvolver-se livremente. Os seus assistentes escolheram uma paleta brilhante de cores que são expressivas e eficazes em relação à clareza da atmosfera constante dos livros.
Pelos mesmos autores: Une Aventure de John Difool/A saga do Incal, e Les Yeux du Chat.
Red Colored Elegy/Sekishoku Erejii (1970-71). Seiichi Hayashi
Ichiro e Sashiko são dois jovens artistas a trabalhar na indústria da animação, vivendo juntos, e alheios ao que se passa “lá fora”. São almas gémeas, desligadas das expectativas da normalização social, e sem uma ideia muito clara de como sobreviverem e como construírem um futuro comum.
Apesar de sermos testemunhas do romance que os une, jamais participamos nele. Se a elipse é um dos elementos-chave da banda desenhada, Elegy é um exemplo supino. Tem menos a ver com o contar de uma história, ou até com o desenvolvimento da personalidade das personagens, do que com uma lenta mas segura emergência de uma ambiência, com cada nova sequência de imagens ou splash pages calmas a emanar o seu sentido não-verbal.
Mesmo as mais complexas das emoções são transmitidas menos pelas expressões faciais (desenhadas quase de modo esquemático) do que pela teatralidade dramática e a interacção pausada dos corpos das personagens.
Hayasahi parece estar à procura de uma diferenciação no seu trabalho, ultrapassando os temas e os tons da gekigá, uma forma de mangá adulta algo mais tradicional no que concerne à narrativa. Considerando as muitas referências ao desenho e à criação de banda desenhada ao longo deste livro, poderemos considerá-lo como, pelo menos em parte, uma autobiografia tal como uma banda desenhada auto-reflexiva, à medida que explora as nuances das emoções, a mistura da vida rotineira com o onírico, os perigos da dúvida e o peso do não-dito. A arte do autor vacila entre uma aproximação minimalista e tratamentos mais naturalistas: algumas vinhetas têm fundos brancos, outras cenas fotorealistas de templos e paisagens marítimas. Empregam-se ainda metáforas visuais e desenhos semelhantes ao dos desenhos animados, criando-se camadas múltiplas de significado e de expressão, para transmitir a vida agitada e rica destas personagens. Texto maior.
Leituras similares: Bleu Transparent de Suzuki Oji, Un Gentil Garçon de Shin’ichi Abe e L’Homme Sant Talent de Yoshiharu Tsuge.
The Ultimates (2002-2004). Mark Millar e Bryan Hitch.
The Ultimates ajudou a Marvel a lançar o seu Universo Ultimate, uma nova editora subsidiária dedicada à re-criação dos seus personagens mais famosos numa abordagem mais contemporânea, por vezes orientada a um público mais adulto, e influenciada por estilos “cinematográficos” contemporâneos.
Enquanto trabalho de reformulação dos clássicos Vingadores, The Ultimates são uma equipa criada pela agência pertencente ao governo dos E.U.A., a S.H.I.E.L.D., sob as ordens de Nick Fury (um sósia “cool e duro” de Samuel L. Jackson neste universo), incluindo o recentemente ressuscitado e super-soldado nacionalista Steve Rogers/Capitão América, um bilionário bebedor-de-cocktails e swinger-de-modelos Tony Stark/Homem de Ferro, o casal de cientistas tornados superheróis Hank Pym/Homem-Gigante e Janet Pym/Vespa, o totó de laboratório louco e ciumento Bruce Banner/Hulk, e o guerreiro ecológico, maluquinho e deus do trovão Thor (entre outros).
A trama principal do primeiro volume revela a presença na Terra de uma raça de alienígenas metamorfos chamados Chitauri, que ajudaram o regime nazi durante a 2ªa Guerra Mundial, e que estão novamente a tentar conquistar o mundo. Enquanto que este ponto de partida não procura nenhum tipo de originalidade, é o tratamento que a torna uma leitura leve mas electrificante. Ao passo que a arte de Hitch é acutilante, clara, realista e ainda assim de um dinamismo extremo, as palavras de Millar trazem uma dose saudável de cinismo e de trevas morais à interacção, de resto chistosa, entre as personagens.
The Ultimates funciona melhor naqueles leitores que têm alguma familiaridade com as histórias clássicas da Marvel (sobre as quais se constroem estas novas). Sendo uma “revisão”, esta saga não vê a meios e sobe o volume em tudo. Apesar se ser um festim visual cheio de acção e de “bocas”, as proezas emproadas de Millar e Hitch estão também marcadas aqui e ali por temas mais sérios, da violência doméstica à violência provocada pela embriaguez, das políticas externas desastrosas dos Estados Unidos aos trabalhos sujos das secretas, assim como promessas quebradas, amor não-correspondido… Há um tom por vezes sério, por vezes brincalhão (brincalhão, na maioria dos casos).
Leituras similares: Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons, The Dark Knight Returns de Frank Miller, Supreme Power de J. Michael Straczynski e Gary Frank, The Authority de Warren Ellis e Bryan Hitch.
How to be Everywhere (2007). Warren Craghead III
Por um lado, podemos chamar este livro de um catálogo que reúne vários desenhos baseados na poesia de Guillaume Apollinaire, sobretudo os trabalhos de Alcools e de Calligrammes - textos que complicam ou revisitam a noção do contínuo entre o texto e a imagem -, mas talvez possamos também recorrer a palavras tais como “tradução”, “transformação” ou “diálogo”. How to be everywhere regressa àquela fonte profunda onde reside o informe, onde a matéria verbal e visual ainda são indistinguíveis, antes de encontrarem o seu caminho até às categorias do pensamento e discurso humanos.
Warren Craghead III é um artista que entrou no mundo da banda desenhada para o expandir. Ele não o faz utilizando a banda desenhada como um material isolável para depois o lançar numa outra disciplina, mas antes explora-a em nome do seu próprio potencial estético. Por outras palavras, ele contribui para a experimentação própria da banda desenhada (tal como Vaughn-James, Richard McGuire, Andrei Molotiu e outros).
Apollinaire reinventou a poesia enquanto veículo para o estranho familiar do século XX, através da tipografia e da caligrafia. O “caligrama” pode ser traduzido literalmente como “escrita bela”, e Craghead utiliza os seus próprios modos de desenho para recriar essa natureza. Bicicletas, partes de armas, lâmpadas, flores, meias de vidro em pernas sem corpo, soldados e trincheiras, florestas queimadas. Um rosto cujo olho não é desenhado mas escrito. As figuras e espaços do autor nunca estão completos, e é como se os brancos entre as vinhetas fossem trazidos para o seu próprio interior. Versos espalham-se ao longo de uma página, como casa letra escrita isoladamente. Um poema (Merveille de la guerre) reza assim: “Lego ao futuro a história de Guillaume Apollinaire/ Que foi feliz na guerra e soube como estar em todo lado”. Este livro pode-se ler quão livremente se desejar.
Leituras similares: The Cage de Martin Vaughn-James, Poema a Fumetti de Dino Buzzati e “Here” de Richard McGuire. Outros livros do mesmo autor: Thickets e Jefferson Forest. Texto maior.
Anarcoma (1983). Nazario [Luque Vera]
Com um nome amalgamando “anarco” e “carcoma” (bicho da madeira), Anarcoma é uma prostituta-tornada-detective transexual operando nos mais abscônditos recessos das Ramblas, em Barcelona, e cujas aventuras a levam a conhecer muitos patifes, biltres, perigos fabulosos, armadilhas fantásticas e… desculpas fáceis para o forrobodó!
Celebrando a alegria e a liberdade sexuais, e sacudindo um Catolicismo com raízes podres de séculos em Espanha, um país que havia sido recentemente apresentado à democracia e a uma atitude mais relaxada, poderíamos dizer que em muitos aspectos Nazario - um verdadeiro “cão andaluz” - seria um precursor do que se tornaria mais tarde conhecido como La Movida, usualmente associada com Madrid, mas em que outras cidades, e sobretudo Barcelona, viria a desempenhar um papel crucial (Nazario escreveu mesmo uma autobiografia sobre isto). Anarcoma, de certa forma, foi também um contributo imenso para uma visão criativa e alternativa do país.
Tendo sido publicado numa série de revistas desde o final da década de 1970 (como a Rampa e a mais famosa El Víbora, assim como alguns títulos internacionais), este é o primeiro livro reunindo as suas aventuras (até à data foram publicados dois volumes e um terceiro parece estar a ser produzido). Sendo um trabalho do underground, é muito surpreendente descobrir o quão densa é a trama narrativa desta história, com narrativas paralelas, cortes e interrupções, e viragens drásticas muitas vezes numa só vinheta. Tudo concerne uma estranha máquina desenvolvida pelo Dr. Onliyú, um verdadeiro MacGuffin, se se tomar em conta que ainda hoje ninguém sabe para que serve esta máquina! A arte de Nazario está carregada de pormenores, de texturas e de cores ricas, e os seus personagens são volumosos e com grande imposição (e quão volumosos, e quão impositivos!).
Marc Almond, dos Soft Cell, escreveria uma canção dedicada a Anarcoma, e um crítico espanhol escreveria que ela é como Humphrey Bogart e Lauren Bacall embrulhadas num só corpo. Essa equação leva de facto a esta novela x-rated hard-boiled com elementos de Genet.
Leituras similares: Kake Comics de Tom of Finland, Vellevision de Maurice Vellekoop, Birdland de Gilbert Hernandez, Sangre de Barrio de Jaime Martin.
La Guerre d’Alan (2000-2008). Emannuel Guibert
Guibert tinha trinta anos quando conheceu Alan Ingram Cope, um veterano norte-americano da 2ª Guerra Mundial, de sessenta e nove anos a viver em Île de Ré, e tornar-se-iam amigos próximos. O autor utilizou uma máquina de gravação para arquivar as memórias de Cope, desde a sua infância até ao seu desembarque em França, como um G.I., em 1945. Guibert transformaria estas memórias depois em banda desenhada, literalmente “desenhado as memórias de Alan”, dando-lhes uma segunda vida. Pré-publicadas na revista da L’Association Lapin, os três livros La Guerre d’Alan recontam a vida de Cope desde o começo da guerra até à sua provecta idade e mesmo a morte (Guibert planeia revisitar a infância de Cope em volumes futuros). Apesar desta descrição, as memórias de Cope não se prendem a uma perspectiva romantizada da guerra, e menos ainda numa qualquer posição heróica. A maior parte dos episódios são até prosaicos, por vezes a um ponto abaixo do peso histórico, concentrando-se nos intervalos dos “grandes feitos”. Mas é essa a matéria que torna este trabalho tão emocionalmente relevante. É também uma obra sobre os mecanismos da memória e do esquecimento, e o papel que ambos têm na nossa emergência enquanto indivíduos.
Guibert usa uma técnica particular, em que tinta-da-China misturada com água é dispensada directamente de um pequeno contentor que ele criou, o que o ajuda a desenhar o mais rápida e “caligraficamente” possível. Mas o seu talento de desenho não se apresenta da mesma forma despreocupada e livre e maleável como por exemplo a do seu amigo e colega Joann Sfar. Bem pelo contrário, as suas figuras são sólidas, com contornos grossos, texturas complexas, jogando com o claro-escuro e com brancos cegantes, tirando toda a vantagem possível da sua circunstância aparentemente limitada. Num embrulho que parece simples, esta é uma obra multifacetada. Texto maior.
Leituras similares: It’s a Good Life if You Don’t Weaken de Seth, Kraut de Peter Pontiac, Couma Acò de Edmond Baudoin.
Voyage/Toraberu (2006). Yokoyama Yuichi
Já houve embates fantásticos entre o design gráfico e a banda desenhada, sendo este um deles, e com resultados espectaculares. Os livros de Yokoyama são as mais das vezes uma mistura curiosa entre modos narrativos clássicos e experimentações formais, onde até mesmo as onomatopeias têm uma presença no campo visual da composição semelhante a tudo o resto, deste as personagens aos objectos aos fundos, complicando as camadas de significado numa só dimensão visual.
A história é muito simples e linear, lembrando-nos a obsessão da banda desenhada moderna com as viagens e o movimento rápido (com Töpffer, Doyle, Doré, von Dardel, Bordalo Pinheiro) ou então trabalhos mais contemporâneos, como o ultra-dinâmico e obcecado Gon, de Masasahi Tanaka. Em Voyage seguimos três personagens que entram num comboio, o qual atravessa muitas paisagens, e depois saem dele. Enquanto estão lá dentro, deambulam, olham os outros passageiros, acendem cigarros, nada de muito excitante… em si mesmo, quer dizer. Pois todas estas acções superficialmente simples são apresentadas em proporções titânicas, com o autor usando toda a espécie de truques visuais, perspectivas e ângulos assombrosos, de maneira a transformar tudo e quaalquer coisa em gestos fantásticos e épicos. Não estamos somente a viajar com estas personagens mas dentro e fora de todos os pontos de vista possíveis em torno e no interior do comboio numa tentativa frenética de controlar o máximo de informação possível. Até o simples acender de um cigarro e fumá-lo se transforma numa ode olímpica.
A ausência de diálogos ou de interacção verdadeira entre as pessoas mostra que Yokoyama está menos interessado na criação de personagens (acentuado pelos seus desenhos altamente estilizados e quase geométricos, reminiscentes das celebradas páginas de Domingo de Cliff Sterrett) do que de agentes, funções de acção ou meras desculpas para este frenesim alucinado e cinético. Texto maior.
Leituras similares: Gogo Club de Florent Rupert & Jerome Mulot, We’re Depressed de Mark Beyer, Abstract Comics de Andrei Molotiu (ed.), Powr Mastrs de C.F. [Christopher Forgues]. Outros trabalhos do mesmo autor: Travaux Publiques e Combats.
The Marat/Sade Journals (1993). Barron Storey.
Apesar da produção de Barron Storey, no que diz respeito à banda desenhada, ser esparsa (este é o seu primeiro trabalho), podemos ver neles os exemplos perfeitos de como a banda desenhada, os livros de artista e os diários gráficos se podem misturar com felicidade, e onde as correspondências entre a palavra escrita e a imagem têm lugar.
Chamar Marat/Sade de “graphic novel” é talvez afunilar em demasia, mas ao mesmo tempo isso permite ao próprio campo da banda desenhada expandir-se e crescer. Mas chamá-la de “adaptação” é também problemático: se o título parte da peça teatral de Peter Weiss (1963), cujo título completo é Perseguição e assassinato de Jean-Paul Marat, como encenado pelo grupo de teatro do Hospício de Chareton, sobre a direcção do Marquês de Sade, Storey aplica ainda troços retirados a Shakespeare, Peter Schaffer e uma mão-cheia de filmes e canções. Além disso, e como é explicado no prólogo, a sua fonte principal é basicamente “os diários pessoais do artista envelhecendo”, tão eclético como o Storey o consegue ser. Até certo ponto, podemos dizer que é uma obra autobiográfica… mas há demasiados elementos para conseguir expô-los a todos neste curto espaço.
Storey expandiu os limites da banda desenhada até locais inesperados. É discutível falar da sua influência, mas há pistas que nos permitem cartografá-la junto a amigos e alguns estudantes, tal como Dave McKean e Bill Sienkiewicz, Kent Williams e George Pratt, mas também uma nova geração de artistas como Choe e David Mack, já para não falar de escritores (leia-se Batman: Arkham Asylum como uma versão deste livro no género dos super-heróis).
Utilizando colagens, fotografia, pintura, texto (quer legível quer ilegível), vários meios e muitas metodologias visuais e gráficas, a arte de Storey (e particularmente Marat/Sade) é um repertório amplo no qual o sentido é construído, estilhaçado, recomposto e colocado num fluxo ininterrupto.
Leituras similares: The Depository: A Dream Book de Andrzej Klimowski, Leben? Oder Theatre? de Charlotte Salomon, Hic Sunt Leones de Frédéric Coché, Frag de Ilan Manouach.
Histoire de la Sainte Russie (1854). Gustave Doré.
Histoire Dramatique, Pittoresque et Caricaturale de la Sainte Russie é o quarto e último trabalho de Gustave Doré de banda desenhada. Depois de Les Travaux d'Hercule, que seguia o modelo de Töpffer, os seus livros seguintes iriam influenciar a composição da banda desenhada moderna. Criado no auge da sua carreira e demonstrando todo o espectro das suas capacidades gráficas, Sainte Russie acabaria por ser uma empresa arriscada e um tremendo falhanço comercial. Abstendo-nos dos detalhes labirínticos da vida profissional de Doré, este livro era um projecto com uma natureza diferente: tratava-se da primeira obra que debatia a história real, era o seu livro mais ambicioso contendo mais de cem páginas ilustradas com mais de quinhentas imagens (cada um constituída por uma matriz de xilogravura), com texto escrito por ele mesmo, desde pequenas legendas a blocos quase infindáveis de texto, muitas vezes de uma prosa densa e aborrecida. Imageticamente falando, os seus desenhos vão desde simples rabiscos a triunfos da chamada “line art”, com um trabalho magnífico de composição no início do volume, mas que descamba em soluções apressadas e confusas no seu término.
O seu retrato dos russos é um misto de pretensa pesquisa histórica (daí as muitas citações fingidas e jocosas) e caricatura grosseira: os russos nasceram de um urso polar e de uma morsa, ou talvez de um pinguim, sempre demonstraram uma disposição belicosa se não facínora, e são tão submissos como ressentidos, e que são sempre governados por pessoas loucas, lúbricas e caprichosas…
O interesse por este livro foi relativamente circunscrito, quer pelo seu preço original alto quer pelo seu tom propagandístico, muitas vezes pesado. Ainda assim, as suas soluções magníficas tornam-no numa maravilha eterna da criatividade gráfica: desde a página manchada de tinta por acidente à censura com a folha de parra, desde o espaço entre vinhetas como obstáculo intransponível às notas musicais vivas. No cômputo final, e tendo edições mais ou menos sucessivas, este é um dos verdadeiros originais da forma moderna da banda desenhada.
Leituras similares: Apontamentos sobre a Picaresca Viagem do Imperador do Rasilb pela Europa de Rafael Bordalo Pinheiro, The Cartoon History of the Universe de Larry Gonick.
Hui Cha/Il Treno (2007). Chihoi.
Aparentemente presos num loop, dois homens chegam a um comboio. Em todas as paragens, passageiros trocam de carruagens e o comboio nunca parece terminar na sua metamorfose, com carruagens a ligarem-se e desligarem-se continuamente: vagões-cama, restaurante, mas também biblioteca, cinema, karaoke, sauna, supermercados… Um dos protagonistas encontra uma mulher no bar e apresenta-se como “Cheng Yik, amigo de Tze Wah”, mas ela não o parece reconhecer. Mais tarde, ele tenta novamente, mas desta vez diz ser “Tsang Lik, amigo de Lok Shan”. Erro? Duplicidade? Uma realidade paralela? Uma distracção do autor? O comboio pára e arranca novamente. Qual é a pressa? Nesta viagem sem fim, tudo se encontra em fluxo, mas também se mantém na mesma.
Baseado numa história (incluída em todas as edições) do escritor Hung Hung, esta não é uma simples adaptação, mas antes uma transformação dos seus ambientes e contornos surrealistas. Apesar de Chihoi propor uma estruturação mais convencional, utilizando personagens, diálogos e uma abordagem psicologizante, ele fá-lo para assombrar os seus leitores com este estranho conto.
Os desenhos a lápis ou grafite de Chihoi são comparáveis aos de Amanda e Blaise Larmee, mas a sua arte inquieta é mais nítida e focada, na que à figuração e composição da página diz respeito. Com algumas excepções, o livro segue uma grelha rígida de duas vinhetas por página, imprimindo um ritmo controlado (o do comboio em movimento?). Ainda assim, esta aparente associação às convenções naturalistas e narrativas servem tão-somente para depois puxar o tapete proverbial de sob os pés dos leitores.
Este conto absurdo começa e termina sem quaisquer explicações externas, e o seu tema principal é elusivo, mas tal como num sonho parece-nos falar sobre as coisas mais importantes da nossa vida. Texto maior.
Leituras similares: Voyage de Yuchi Yokoyama, "Here" de Richard McGuire, Campo di Babà de Amanda Vähämäki, Young Lions de Blaise Larmee.
Nota: agradecimentos a Paul Gravett, pelo convite, e a Simon Ward, pelo acompanhamento do processo, a Curtis Hoffmann pela capa original de Yokoyama , e a Chihoi pelas ajudas. Foto da capa do livro
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