Este livro é um projecto significativo na história da recepção e apreciação da banda desenhada, na medida em que se trata de uma oportunidade para ter acesso aos pensamentos e considerações de art spiegelman (é dele a nova grafia) sobre a criação da sua obra mais famosa, Maus, assim como aos materiais, digamos, “arqueológicos” que levaram a ela. Não sendo de forma alguma o primeiro livro dedicado à construção de um edifício analítico esmiuçado em torno de uma obra de banda desenhada - os “estudos tintinófilos” estão prenhes dessas abordagens, mais ou menos bem conseguidas, mais ou menos críticas; J.-F. Douvry fez uma “autópsia” de 120, Rue de la Gare de Tardi; Thierry Groensteen dedicou um estudo a The Cage, de M.-V. James, etc. - e nem sequer sendo a primeira vez que temos acesso aos “bastidores” de Maus (a Voyager havia editado o CD-Rom The Complete Maus em 1994), ainda assim temos aqui um livro com alguns aspectos inéditos. (Mais)
Este volume já estava a ser produzido há alguns anos, e tinha sido divulgado em alguns locais, graças aos esforços da sua editora (no sentido de “editing” em inglês, editora de texto, motor da pesquisa, selecção dos materiais, etc.), Hillary Chute. No entanto, veio a calhar numa data simbólica que assinalava os 25 anos da publicação de Maus no que viria a ser o seu primeiro volume, em 1986, ano que se viria a tornar mítico na história recente deste meio na língua inglesa. Aliado a Batman: The Dark Knight Returns, de Frank Miller, e Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, Maus tornar-se-ia uma das três peças que consubstanciaria o “crescimento” ou “amadurecimento” da banda desenhada. É claro que essa noção só pode aparecer numa narrativa que esconde uma mais variada produção, e uma desatenção à complexa história do meio, já para não falar de um afunilamento a nível nacional e de géneros. É que o tipo de “maturidade” que Maus implica nada tem a ver com aquela supostamente presente em Dark Knight, por sua vez de um peso que se revelaria diferente de Watchmen. Se o impacto transformacional de Maus não foi tão imediato como o dos outros dois títulos, seria no entanto e sem dúvida mais duradouro e transversal, uma vez que aqueles apenas viriam a dar frutos no género dos super-heróis, ao passo que as consequências do livro de spiegelman se viriam a sentir em termos de recepção da banda desenhada em novos círculos, a sua entrada no mundo académico e na discussão alargada da cultura, levaria a novas práticas editoriais, influenciaria autores de grande diversidade, e fundaria mesmo novos “géneros” (ou “sub-géneros”), etc. Se aqueles títulos de Miller e Moore/Gibbons provocaram fãs imediatos (ou pelo menos, “visíveis” e “audíveis”, como se espera de uma cultura mais popular), o impacto de Maus seria a lume brando.
Recordemo-nos que a primeira instância de Maus surgiu em 1972, numa história curta de três páginas numa das muitas meteóricas revistas do chamado movimento “underground comix”, já nos seus estertores finais, a Funny Aminals. Quando spiegelman, já na companhia de Françoise Mouly, lançou a sua antologia RAW (que marcaria a curva “vanguarda” que levaria dos “underground” dos anos 1960-1970 para os “alternativos” dos anos 1980-1990, e não sem mostrar abertamente o seu desejo de se entrosar a tradições de outros quadrantes, como as europeia e japonesa), os primeiros capítulos da nova vida de Maus começaram a formar-se, em 1980. As várias peças que levariam à sua edição pela Pantheon num primeiro volume em 1986 estão todas contadas neste MetaMaus: um artigo entusiasta de Ken Tucker, hoje muito citado, antes da publicação do livro, ajudaria à decisão; a pressão que spiegelman sentiu para que saísse antes da estreia de An American Tail (cuja premissa foi abertamente “suscitada” pelo comic book inserido na Raw mas sem o mesmo tratamento humano e profundo) seria o gatilho… Mas é mais delicioso ainda ter acesso, pelo menos parcial, às muitas cartas de rejeição da sua publicação por muitas editoras. Não porque sirvam para ver o “quão erradas” estavam mas o que significava a estranheza de publicar um livro daquela natureza. Se bem que existam projectos anteriores de livros ilustrados sobre matérias sérias (Citizen 13660 de Mine Okubo, de 1946), ou bandas desenhadas sobre o Holocausto (“Master Race”, de Al Feldstein e Bernie Kriegstein, de 1955), ou explorações dos conflitos do eu e da história familiar (Binky Brown, de Justin Green, de 1972, mesmo ano que a história curta “Maus”), o nível de circulação que Maus conseguiria foi totalmente inédito, e abriria o caminho a uma situação de presença da banda desenhada em determinados circuitos que ainda não deixou de se expandir (mas não ainda totalmente satisfatório, claro). O Pulitzer (numa categoria especial) não teve aqui um papel muito vincado, já que foi oferecido apenas quando o segundo volume foi editado, em 1991; e em Portugal, num caso de rapidez editorial no campo da banda desenhada de expressão inglesa, a Difel viria a editar a tradução em 1988.
Talvez nos seja difícil hoje perceber exactamente o impacto ou a diferença que Maus operou no seu tempo, uma vez que vivemos numa “cultura saturada com histórias do Holocausto que se encontram seguras no passado para a maioria dos Americanos - e que pode ser vista como um género, até, no qual se pode visitar pelo seu pathos ou lições de história” (página 42). Havia aqui uma matéria pouco explorada pela ficção ou pela abordagem popular da história (a série televisiva Holocaust, que trouxe o termo para os palcos públicos, apenas estrearia em 1978), e spiegelman não a quis desvirtuar mesmo antes dela vir a tornar-se conta corrente… É por isso notável que Françoise Mouly diga ao seu companheiro que, “Para além de Maus, o teu maior feito foi não o teres tornando num filme” (pg. 74). Contrastando com projectos similares, como a transformação (mas sua redução) de Persepolis, nota-se desde logo um posicionamento ético (que poderá estar aliado a uma gestão consciente do seu poder).
art spiegelman, que se define em vários locais como um “rootless cosmopolitan” (pg. 133), problematiza a sua inscrição - e, consequentemente, da sua obra - em categorias demasiado espartilhadas, como as de “judeu-americano”, ou “autor de banda desenhada-de-memória”, ou do encontro entre “Holocausto e comics”, etc.: “todos estes hífenes são problemáticos [issues]” (pg. 103). MetaMaus dá-nos a ver os bastidores dessas preocupações igualmente…. Mas com algum ligeiro grau de afunilamento. Existe um livrinho intitulado Je ne sais ce que je vois qu'’n travaillant, de Alberto Giacometti, que é fruto de uma entrevista na qual o entrevistador se apaga (se nos recordamos bem, totalmente, pois o nome não surge na edição consultada da L’Échoppe, mas podemos estar enganados), não se lendo jamais “as perguntas”, e sendo apresentado somente o texto corrido do escultor. Escutamos assim a sua voz, exclusivamente. MetaMaus poderia ser assim, mas não é. Não queremos dizer que Chute deveria ter procurado esse eclipse. Não existem hierarquias de opções, e muito menos valorizações absolutas de cada uma delas. A questão é que a equação seria mais equilibrada se a intervenção de Hillary Chute tivesse sido mais marcada, por exemplo com perguntas que levassem spiegelman a momentos de maior tensão, análise e crítica do seu trabalho - possíveis e adivinhadas quando se fala da questão da representação, exactamente o aspecto pelo qual Maus foi visitado na obra anónima KATZ, de que falaremos muito em breve - , ou então simplesmente construir um espaço de expressão autoral da sua parte. O que acontece é a voz do autor de quando em vez interrompida por questões cuja organização nem sempre parece a mais lógica ou sequente (o que é compreensível, tratando-se de um trabalho de 4 anos, feito de certeza em momentos distintos, de forma descontraída, obedecendo às circunstância do momento e da descoberta por Chute dos materiais de spiegelman, e que depois se tentou organizar numa forma para o livro).
Um dos objectivos de MetaMaus é colocar-nos na senda de o que terá levado spiegelman a criar este livro. Em primeiro lugar, compreender as circunstâncias que permitiram a Vladek Spiegelman atravessar o horror que atravessou, perdendo e reencontrando Anja por aquele inferno, perder um filho e ter as forças em fazer outro (Art) e partir para uma vida nova nos Estados Unidos. “São apenas as deslocações [displacements] da história que o fizeram [a Vladek] cair do espaço para aqui” (pg. 25). Maus é uma estruturação da matéria para criar uma possível ficção, ou pelo menos um fio que une a matéria informe das vidas destas pessoas… “Tornar a narrativa numa geografia é uma forma muito mais sofisticada de apresentar o tema de ‘rapaz encontra, perde e reencontra rapariga’” (pg. 185). Afinal, a história é também uma construção discursiva: sendo “simplificada” [streamlined] é, “pelo menos nesse sentido, uma ficção” (pg. 150).
Mas Maus é também sobre o próprio processo da memória. Não apenas o de Vladek nem o do próprio autor, mas de todas essas memórias esbatendo-se umas às outras, e complicadas pela própria memória da obra em si. Não há uma procura por uma devolução da experiência original (que seria sempre factícia e impossível de partilhar), mas “oferecer a problemática da reconstrução dessa experiência” (pg. 208). “É sobre as escolhas que se fazem, descobrir o que se pode dizer, o que se pode revelar, e o que se pode revelar para além do que se se sabe estar a revelar” (pg. 73), mas ainda assim procurar uma qualquer gravidade no tom de Maus: “como evitar o desespero ou o cinismo sem se tornar tolo” (pg. 70). Essas questões da memória complicam-se na esfera pessoal do autor, por ele se “esquecer” na sua vida real dos eventos que conta no livro, como se tivesse aí colocado uma parte de si para não a ter de transportar sempre. É um mecanismo de defesa bastas vezes diagnosticado nas “testemunhas em segundo grau”, e sobretudo nas “de segunda geração”, usualmente empregue em relação a um evento como a Shoah, que se reveste as mais das vezes de um carácter excepcional face à dor humana, incomparável e interpelante em todas as suas idiossincrasias individuais. “Penso que é assim que a memória trabalha, não é? É substituída pela linguagem” (pg. 28); “toda a linguagem escrita é uma substituição da memória” (pg. 75). Claro que “O que restam são fantasmas de fantasmas” (pg. 155). Esta seria uma boa fórmula para descrever Maus, tendo em conta até a morte do pai antes do término do livro (e que poderia ecoar na morte de Alan Cope antes de Emmanuel Guibert ter terminado La Guerre d’Alan, um livro que tem em Maus uma das suas raízes de possibilidade), e o papel que teria nas décadas que se lhe seguiram.
Um dos prazeres da leitura de MetaMaus é o acesso a alguns dos materiais preparatórios da obra, das transcrições das entrevistas a Vladek Spiegelman pelo punho do filho aos primeiros apontamentos gráficos, das planificações gerais de composição até à pesquisa de variações, passando por toda a espécie de material de referência. Tudo isto ainda se exponencia ainda mais no DVD: temos aqui as gravações das entrevistas, o filme vídeo que os spiegelman fizeram quando visitaram Auschwitz em 1987, os esboços praticamente de cada página do livro, e acessos cruzados entre toda essa informação, entre muitas outras coisas. No entanto, esta opção por um DVD é muito estranha, desequilibrada e até um pouco obsoleta no momento presente. Como o próprio autor diz, estas tecnologias acabam por ter os seus “cinco minutos de vida”, e tal como as promessas dos CD-Roms (e dos Cds em geral) vieram a ser goradas pela realidade o desenvolvimento célere da tecnologia, quem nos garante que o suporte do DVD não terá um fim igual? spiegelman tem toda a razão quando revela a sua maravilha - que é por nós partilhada - perante o facto de que o livro acaba por ser uma tecnologia mais perene. E, de facto, se o acesso à totalidade dos diários de trabalho através deste mecanismo é excelente, a sua legibilidade não é satisfatória, e acreditamos que a sua passagem para o papel seria muito mais produtiva, tal como o foi quando da edição, pela McSweeney’s, de Be a nose! Não há modos simples, por exemplo, de imprimir ou manipular as imagens a que temos acesso, sejam os esboços sejam as páginas dos diários (há sempre forma de contornar, mas não é fácil para simples “utilizadores” da tecnologia). Não estando perante o famoso e impenetrável espólio de Pessoa, nem sempre se lê bem o que spiegelman escreveu… Sérgio Gomes, do Público.pt (responsável pela passagem do artigo sobre Metamaus de José Marmeleira para as plataformas iPad e outras [imagem ao lado]), partilha esta estranheza, e numa conversa connosco, apresentaram-se de imediato outros modos de partilha desta mesma informação de formas mais produtivas e convincentes, sobretudo online e com possibilidade de manipulação digital (se a questão era a do acesso, a protecção autoral e o “preço”, bastava encerrar no livro uma chave que permitisse a entrada num site ou em espaços reservados de um site). Thierry Groensteen, no seu recente Bande dessinée et narration, ao abordar as possibilidades dos formatos digitais, escreve que “o trabalho do desenhador pode ser documentado [a estados muito recuados] ao aceder através de um clique à fotografia ou documento de arquivo no qual se pode ter inspirado. O que isso deixa entrever é a possibilidade de uma edição crítica dissimulada sob a própria obra” (pg.79). Ali é estranho (mas sintomático do autor francês em não procurar exemplos imediatos) que não se faça menção precisamente a Maus, à versão publicada em CD-Rom, mas apercebemo-nos agora que, mesmo com um DVD, nem sempre isso é de uma navegabilidade óptima: os ecrãs de entrada são um pouco atulhados, as passagens morosas e cheias de pop-ups (!) minúsculos, etc. E vez do “clique” indicado por Groensteen, as qualidades hápticas das novas plataformas dos tablets poderiam levar a edições críticas esteticamente surpreendentes e produtivas…
Apesar disto tudo, a palavra-chave naquela frase de Groensteen é a de “arquivo”. Esta tem sido uma noção muito discutida nas últimas décadas, especialmente em contextos dos estudos culturais, uma vez que escapa à mera gravidade do repositório para se entrosar noutras noções-chave como a de memória, história, processo, reescrita, etc… precisamente o(s) tema(s) de Maus. E essa partilha do “arquivo” do autor, enquanto instrumento de estudo, é portanto notória e importante. Tal como em La construction de La Cage, de Thierry Groensteen, o acesso aos diários de trabalho, às notas, a esquissos e até ao material de apoio e pesquisa do autor ajudará a revelar muitos aspectos importantíssimos de escolhas narrativas, de opções estéticas e até éticas, e de estratégias visuais e estruturais. Mas onde em Cage/Groensteen se afunila a palavra do investigador sobre materiais esparsamente mostrados, aqui teremos um acesso maior, ainda que também parcialmente velados pela palavra e opções de estruturação de Hillary Chute.
Um aspecto paralelo, mas não de somenos importância, prende-se à materialidade (bruta, tangível) do que spiegelman usa, e, tendo em conta a especificidade desta obra (cuja reprodução não diminui a arte original, cuja discrepância entre desenho e escrita é esbatida ao máximo), ganha uma substância inegável: “Reproduzir a nossa própria marca - oferecendo um fac-simile da nossa própria escrita manual - faz com que se pareça com um autêntico diário”… “Utilizar material de economato, papel com uma gramagem alta, corrector de máquina e uma caneta de tinta permanente torna-a mais próxima da escrita, é como dar a ver um manuscrito, algo feito à mão” (174).
É muito curioso o modo como, mesmo no fim do texto de MetaMaus, spiegelman fala de como a trezentas páginas do seu livro podem ser interpretadas como uma vela yarhzeit (votiva) aos seus pais, sendo a última imagem a da pedra tumular deles. Esta descrição é muito curiosa em termos materiais, pois imagina-se assim Maus como uma imensa coluna contínua que se estende, retrospectivamente, a partir desse túmulo para uma gigantesca altura (e peso), imitando de certo modo o comportamento do fumo, que é outro dos leitmotivs do livro. MetaMaus é, então, um mapa cartografando esse fumo: circunstancial, volúvel, mutável, mas permitindo-nos pelo menos um caminho.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro. A cópia foi ainda utilizada por José Marmeleira, no seu artigo no ipsilon/Público (10 Fev., 2012) e no Público online. Imagens providenciadas pela equipa do Público online, a quem agradecemos.
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