A discussão de MetaMaus leva-nos quase imediatamente à de Katz, que de certa forma é também uma resposta metalinguística a Maus… [tínhamos dado conta de uma primeira versão caseira dele aqui] Este é um livro que teve uma distribuição fulminante durante o último Festival de Angoulême, que foi presidido pela figura de art spiegelman, e há uma relação directa entre esses dois factos pois Katz é uma versão alterada do já clássico Maus. Trata-se de uma re-feitura do livro do autor norte-americano, mas optando por representar a cabeça de todas as personagens, independentemente dos seus papéis, como gatos. Todas. (Na verdade, este trabalho, em termos descritivos, é somente a colagem de cabeças de gatos sobre as personagens). (Mais)
Apesar de Kent Worcester ter escrito um artigo, sobre In The Shadow of No Towers, no qual se referia ao uso de “ícones visuais familiares” aí empregues (as personagens famosas de outras bandas desenhadas clássicas, de Nemo a Krazy Kat, de Happy Holligan aos Katzenjammer Kids, etc.), e apesar de Maus empregar uma estratégia que partia de um trabalho de diferença sobre uma tradição específica da banda desenhada, os “funny animals”, podemos aproveitar o que o articulista escreve do autor norte-americano, no sentido em que spiegelman consegue com isso “simultaneamente domesticar e amplificar o horror”. Recordemo-nos mais uma vez que spiegelman pertence à segunda geração dos autores saídos dos underground comix dos anos 1960, dos quais um dos fundadores, R. Crumb, havia precisamente criado uma variação interna a essa abordagem visual - animais “queridos” - para chegar a resultados narrativos, políticos e morais bem diferentes do que se esperaria da Disney e companhia. Tendo spiegelman participado na antologia Funny Aminals (sic) em 1972, precisamente onde surgiria a primeiríssima versão de “Maus”, de quatro páginas, essa associação é imediata.
De acordo com o autor, que em MetaMaus responde à questão tripartida “Porquê o Holocausto? Porquê ratos? Porquê a banda desenhada?”, à segunda ele espraia a sua visão, que combina variadíssimos elementos. Se bem que art spiegelman se tenha baseado precisamente na propaganda nazi, de hálito de vitríolo, e na típica desumanização que se faz dos inimigos, neste caso equivalendo os judeus a “vermes” (veja-se Der Ewige Jude), ao mesmo tempo há uma continuação de se construírem diferenciações entre os povos, por linhas étnicas, raciais ou políticas, que parece ser aquilo em que Katz quer fazer pensar. Quer dizer, apesar de spiegelman querer fazer uma desconstrução desses papéis, e até mesmo problematizar a representação no interior da sua obra (como no caso das máscaras de porcos sobre os rostos de Vladek e de Anja no primeiro volume, a discussão da representação na mulher, Françoise, na abertura do segundo volume, ou na mudança em relação a um alemão num dos campos, também no segundo volume), há como que a manutenção de uma ideia de “essência” dos povos representados: os judeus (que podem ser alemães ou polacos) são ratos, os alemães (que podem ser nazis ou não, judeus ou não) são gatos e os polacos são porcos; e ainda franceses-sapos, ingleses-peixes, ciganos-mariposas e teremos norte-americanos-cães de todas as espécies. Todas essas opções foram pensadas seriamente por spiegelman, e exploradas graficamente, como se pode compreender no MetaMaus mas também no próprio tecido processual visível em Maus. Mas nada disso significa que não possa haver uma crítica possível às mesmas opções.
Como Xavier Löwenthal, editor da La Cinquième Couche e que representa publicamente este livro, aponta, podemos confrontar Katz como se se tratasse de uma dessas encenações ou interpretações musicais contemporâneas em que se opta por uma diferença de representação radical e até mesmo controversa (colhendo exemplos existentes, um Próspero mulher, um Otelo branco, Wagner tocado com instrumentos de plástico), que revelarão não apenas intensidades no plano estético mas igualmente no plano político. Um situacionismo, como reza o autor de Katz (apesar de ser anónimo para o público em geral, é contactável através do editor, e chegou mesmo a dar entrevistas; e o projecto tem um blog). Ainda nas palavras de Löwenthal, obrigam à releitura ou mesmo redescoberta de algo que poderia parecer já “natural”. Obriga a ver de novo.
Portanto, um dos pontos conquistados por Katz é dar a ver (de novo) que as questões de representação jamais são inocentes ou neutras, e que não existe jamais um “conteúdo” livre de “forma” ou uma “forma” desprovida de “conteúdo”. Alterações feitas sobre uma dessas hipotéticas metades alterará a outra para sempre.
O autor de Katz sublinha o facto de que a opção pelas representações entre ratos e gatos apontam a um “maniqueísmo natural”, existente não apenas na natureza, claro, mas sobretudo através de tantas representações na cultura popular. Provavelmente seria interessante - e isto foi feito - procurar as raízes ou possíveis ligações com outras bandas desenhadas ou animações com figuras semelhantes, do Rato Mickey ao Tom & Jerry, do La Bête est Morte a Macherot, sem esquecer outros quadrantes que terão concorrido de modo imediato para a opção de spiegelman, como vimos a propósito de Funny Aminals. O autor reforça a dicotomia existente ao discutir a figura do gato como um agente cujas acções são visíveis, cuja presença é usualmente singular e individualizada, patente no interior dos lares e que merece a atenção e carinho dos seres humanos, ao contrário do rato, de acções ocultas, estilhaçado nas suas chusmas sob as superfícies das casas, e que é idêntico a todos os outros ratos, portadores de doenças e que apenas merece a erradicação. spiegelman diz o seguinte, em MetaMaus: “Minimizei as disparidades [entre os gatos e os ratos, como o seu tamanho relativo], de maneira a que os gatos e os ratos se tornaram, mais ou menos, máscaras óbvias. Eu gostei de trabalhar com uma metáfora que não funcionava assim tão bem, se bem que não queria de forma alguma que a minha metáfora fosse uma aceitação da ideologia nazi, ou um apelo implícito à simpatia, do tipo, ‘oh, vejam estes ratinhos queridinhos indefesos‘. Ao igualá-los na escala não significava dar-lhes igual poder, mas não colocava os ratos na desvantagem biológica total que a metáfora implica, de outro modo”. Como compreender a intenção do autor e a interpretação possível da obra? Há um intervalo conceptual suficiente que permite pensar e levar a um livro como Katz.
O autor e o editor de Katz utilizam repetidamente a palavra francesa “détournement”, “desvio”. Poderia ainda ser traduzida como “diversão”, “rapto”, “falcatrua”, “desfalque”, “mau uso”, “corrupção”, “abdução”… Mas mantenhamo-nos com a ideia de desvio, até para a ligar ao clinamen de Lucrécio, que Harold Bloom emprega como um dos modos da “influência”, isto é, a resposta que um autor faz a outro quando cria uma nova obra. Não só é esta palavra-chave muito importante como esta questão é claríssima no caso de Maus/Katz, já que se dá uma operação indicial sobre a primeira obra. Apesar de ter havido um contacto feito com spiegelman da parte do autor de Katz, o autor não consentiu nesta transformação, por razões que devem ser óbvias e descomplicadas quer para o autor original quer para o autor desta nova versão, quer ainda para todo o público: razões económicas, razões autorais, razões políticas. Se fosse apenas uma página, um poster, a capa, spiegelman ainda pareceria aceitar, mas repare-se que Katz é um livro inteiro, não uma mera alteração de um par de páginas de Maus. Só que um “livro de banda desenhada é uma unidade que não pode ser subdividida sem que se perca o seu valor político”… O autor de Katz aceita essa não-aceitação, e mais, compreende profundamente que haja obstáculos à “reinterpretação de uma história que foi imposta selvaticamente sobre a sua família [de art spiegelman]”. O desvio é feito, porém, pela razão do impacto de Maus em todo um tecido social e estético da banda desenhada contemporânea.
Existirão vários modos de criar desvios sobre obras de banda desenhada. Tintin é, possivelmente, aquela figura que, por encontrar (ainda) uma grande aceitação e circulação junto ao público normalizado da banda desenhada, também é alvo de muitas transformações, através de álbuns-pirata, homenagens, desconstruções, sátiras, versões pornográficas, anarquistas, etc. (não queremos dizer, porém, que tudo isto “é a mesma coisa”, bem pelo contrário! Existirão abordagens que procuram criar paródias simples, outras um valo de choque comezinho, outras perspectivar a obra original…). Mas há modos mais específicos de criar “desvios”, que se dirigem de forma directa e articulada sobre um ou outro dos álbuns da personagem de Hergé. Dois exemplos: T.N.T. en Amérique, de Jochen Gerner, e Tintin au Congo à poil, anónimo. Fisicamente, poderíamos dizer tratar-se do mesmo: sobre as pranchas originais de Hergé, faz-se uma operação plástica que altera a imagem: no primeiro caso reduzindo cada prancha a uma superfície negra da qual emergem pictogramas, palavras soltas, simplificações estilísticas do original; no segundo, Tintin aparece nu. Mas se o primeiro faz emergir toda uma série de significados mais ou menos dissimulados no álbum original, obrigando o leitor a reler a tessitura de Hergé sob uma nova perspectiva menos inocente, o segundo projecto é francamente mais fraco e é uma espécie de exercício de humor inconsequente, mesmo sob a luz das críticas possíveis - e necessárias! - de se fazer a Tintin no Congo.
Katz estará mais próximo do projecto de Gerner. Obriga-nos a repensar as relações humanas e éticas entre os personagens, que spiegelman resolver fazer atravessar uma política de representação na qual um valor intrínseco está marcado de forma visível e à partida. As primeiras leituras, quase automáticas, deste projecto, levou à acusação de “anti-semitismo”, o que se constitui como um mecanismo de impedimento a qualquer outro tipo de discurso e desenvolvimento. Qualquer ideia de que se possa estar a regressar a uma primária demonstração de negacionismo ou de ódio racial/étnico transforma-se num ruído tal que não nos permite aproximar da questão em si, a qual poderá querer chegar a outro lado, de outro modo. Pouco importa utilizar instrumentos biografistas do autor de Katz para fazer a sua defesa (“o autor não é judeu logo é anti-semita” ou “o autor é judeu por isso não pode ser anti-semita”, ambas argumentações pífias e que apenas alimentariam a continuidade da exclusividade de certos assuntos a certas pessoas, desligando-as da sua pertença à humanidade agente), importando antes ver que este exercício de Katz é sublinhar a possibilidade de todo e qualquer ser humano ser capaz de ser violado e violar, de sofrer e de fazer sofrer. Muitas vezes, há uma certa fantasia da parte dos que vêm depois de se imaginarem no passado e se comportarem correctamente: “se vivesse na Alemanha nazi, seria um resistente”, “se tivesse vivido durante a época do esclavagismo, seria um anti-esclavagista”: o problema é que estes “ses” não são mais do que isso, e se isso se verificasse, não teríamos crescido herdando os princípios morais, políticos e civilizacionais que temos: ou seja, quem nos garante que seríamos os paladinos e não os esbirros? É essa a questão fundamental colocada por esta experiência.
Repare-se na seguinte cena. Vladek faz parte do exército polaco em 1939 e não quer disparar sobre os alemães, mas por pressão do seu oficial fá-lo, acabando por abater um soldado inimigo camuflado que, aparentemente, se rendera, mas Vladek continuou a disparar. Esta é a página 50 do primeiro volume, e nela Vladek é feito prisioneiro de guerra e procura o cadáver do soldado por si abatido. Na versão original, temos um oficial porco a ordenar um rato que dispare e mate um gato. Na versão de Katz, temos um gato a ordenar outro gato que mate outro gato. No interior da política de representação, o valor não é de todo o mesmo.
Nota adicional: o livro, entretanto, foi alvo de um processo judicial e foi destruído na sua (quase) totalidade. O seu autor foi também revelado como sendo Ilan Manouach, que temos acompanhado. Prevê-se a edição de um volume que reúne ensaios sobre este seu gesto de détournement, intitulado, claro, MetaKatz.
Nota final: agradecimentos a quem nos fez chegar às mãos este projecto.
Um dos pontos interessantes desta manobra de homogeneização é o facto de pensarmos a heterogeneidade do trabalho anterior como algo que fundamenta o ciclo -vítima-carrasco-vítima-carrasco- e já não como ferramenta de diferenciação. É natural que, para Spiegelman, não se tenha posto esta questão. Ele é um "inside" e, para, além disso, usa mecanismos apropriados para a diferenciação de agentes dentro da narrativa. Mas essa escolha não parece ter surgido fazendo as mesmas perguntas que o "autor" de "Katz". E este nosso (leitor) "reparo" não aconteceria com naturalidade se não houvesse este espelho-espelho-meu oferecido por ele. Poderá a recusa de Spiegelman ter sido baseada nessa constatação? No que a caixa assim aberta poderia dizer do seu acto (não obstante o seu contexto de origem, que este artigo explica, não obstante todo o peso "subconsciente")? Talvez ou talvez não. Nem é isso que está em causa. Em causa está a forma como lemos o que nos é dado. Em causa está a atenção, a garantia, a relatividade e importância que damos aos signos (que formam, informam e deformam).
ResponderEliminarCaro Anónimo,(embora sempre fosse preferencial escrever a alguém com nome),
ResponderEliminarÉ verdade que o trabalho deste autor anónimo só seria possível, e até mesmo nas condições e contornos do que fez, em relação directa ao trabalho de spiegelman. Não há aqui qualquer desejo em menosprezar a obra que é "Maus", diminuir-lhe o impacto, a importância, etc. O facto de "Katz" ser um livro inteiro mostra que o esforço não parte de uma parvoíce qualquer. E o que pretende fazer aos seus leitores é exactamente pôr em causa esse ciclo que muito bem apelida de "vítima-carrasco-vítima...". E mais, o facto desse ciclo ser feito por um "insider", como também diz. Por isso é que me abstive de fazer considerações sobre o que o autor será ou não (judeu?, católico?, ateu, americano, francês, português, etc.), pois ao fazê-lo estaríamos a dizer que só pessoas em certas condições é que podem falar de certas questões.
Confesso que não percebo a última parte do que diz, sobre a importância relativa que damos aos signos: a interpretação pode ser livre, mas nunca infinita, há limitações à sobreinterpretação.
E, finalmente, espero não ter demonstrado nennhum desejo em afunilar a interpretação de "Katz" que seguramente se presta a outras leituras.
Obrigado,
Pedro Moura
Pera lá, mas este "Katz" é uma edição em formato livro de umas misteriosas fotocópias que tinhas recebido em 2011, certo?
ResponderEliminarRudolfo
É verdade, sim senhor, e vou colocar o link para essa primeira versão. Mas esta é a versão em livro, com tudo o que isso implica...
ResponderEliminarAbraços,
pedro