Acompanhado que é este livro por um poema de Sérgio Godinho (“oh um poema hoje?”), que mais apropriado senão procurar noutra poesia acessos mais ou menos certeiros? No soneto “Desde la torre”, Quevedo descreve a experiência do exílio e do regresso permitido pelo acto da leitura e da memória. É nele que escreve este belíssimo verso (que Roger Chartier citará): “escucho com mis ojos a los muertos”.
Escutar os mortos com os olhos poderia muito bem ser o mote de A tempo inteiro, do heteronímico mexicano Tamayo Marín, nova voz de Tiago Manuel (já tampouco é segredo, já tampouco não circula). Numa primeiríssima abordagem, talvez caiamos todos na armadilha de querer ver nestas imagens de Marín uma continuidade de uma tradição à la Posada, pela presença da morte e de figuras claramente “mexicanas”, que exploram imagens feitas que se tornam metonímicas dessa cultura (veja-se a nota biográfica e o texto “mana morte”, de João Paulo Cotrim, no fecho do livro ). Isso não é um erro, claro, mas é um fascínio que se exerce de longe e para ser transformado, já que o trabalho de Marín escapa quer do mundo estritamente popular das gravuras do famoso artista quer do seu humor leve para, curiosamente através de um trabalho muito colorido (e neste aspecto, tensão diferenciada dos heterónimos até à data), chegar a um outro tipo de gravidade. Não quer dizer que não existam algumas imagens particulares que trabalham sobre essa matéria anterior de Posada, ainda que misturadas com outras linhas de desenvolvimento, inclusive algumas que deixam cair a máscara do autor, e até seria possível ver nas girândolas de cores (traços e pontos e manchas de uma grande amplitude cromática) referências às festas e culto da Santa Muerte.
É sempre uma fonte de fascínio olharmos a morte, de tantas formas (veja-se o recente e magnífico The Empire of Death: A Cultural History of Ossuaries and Charnel Houses, de Paul Koudounaris), sendo ela o único factor absolutamente certo das nossas vidas, sendo mesmo seu elemento intrínseco e que, por isso mesmo, deverá (deveria) levar a uma maior intensificação da vida. Como escreveu Walter Benjamin (no pequeno “Artigos de retroseiro”), “Inigualável linguagem da caveira: inexpressividade absoluta - o negro das órbitas - unida à mais selvagem das expressões - fieira de dentes arreganhados”. Haverá maior paradoxo, que encontrar estas duas intensidades unidas no mesmo plano?: cegueira e riso.
Há como que essa cegueira, portanto, que se compulsa nestas páginas, e da qual é possível encontrar igualmente um eco nos versos de Sérgio Godinho: “Ávidos somos/acordando as correntes nos olhos da nossa cara/rindo enquanto elas secam”.
No mesmo soneto já citado, Quevedo ainda descreve os livros - a linguagem que lhe chega dos mortos - como “Si no siempre entendidos, siempre abiertos”. Ao contrário dos olhos esvaziados da caveira. Caveira e livro como um combate e, ao mesmo tempo, união alquímica. De certo modo, é esse o grande gesto da inteligência e do desejo e da disponibilidade que é permitido por um livro, “sempre aberto”, que torna possível a nossa eventual inscrição na única comunidade possível, no dito de Kant, a “comunidade estética”. Sem essa disponibilidade de partida, não se poderá sequer imaginar que os caminhos possam convergir. Sempre abertos, aquém e além, a um só tempo, de um entendimento cabal, talvez seja essa a sua maior felicidade. Caminhamos para a morte, mas poderemos contribuir para uma memória que a vencerá, eventualmente.
As variações do tema das imagens da morte que se passeia em A Tempo Inteiro é, sempre, sobre o tempo. Repete-se a morte, nos seus balões de pensamento ao “ver” certas cenas - teatros de operações, cenas de morticínio, mães a passearem carrinhos de bebé, um moribundo no leito derradeiro - ou balões de fala dirigindo-se a clientes, do momento ou futuros, sobre as relações que o tempo tece com a sua função. O trabalho da morte é, de facto, “a tempo inteiro”. “Todos descansam, menos eu”, suspira ela olhando um campo de colheita da sua labuta…
Marín não se abstém de comentários aberta e politicamente endereçados, sobretudo às guerras “civilizacionais” que se espalham hodiernas pelo mundo, a obsessão do mundo ocidental por armas e drogas, pela má alimentação, a poluição, os assassinatos relacionados com negócios ilícitos, cultos do corpo que poderão levar ao deslize final, a indústria das prisões, a nova maneira de criar classes sociais drasticamente opostas, a hipocrisia nas intervenções em palcos de guerra, … mas nunca, nunca, com moralismos e platitudes simplistas, mas antes uma férrea vontade - nada paradoxal - de viver intensamente a vida.
Como noutros projectos anteriores, também este livro apresenta “partes” nítidas. Depois das cenas em que a morte surge nas suas variadíssimas cenas, segue-se uma outra parte com imagens alternadas entre um plano muito aproximado do rosto de uma mulher e de um homem (pouco importa se são os mesmos, ou se são vários, o que importa é a sua concatenação enquanto “humanos”, que explicam as suas sensações de um ennui geral, e uma procissão de objectos banais do dia a dia - um grelhador, uma plaina, um gancho - todos com legendas que os derrotam no seu sentido marinho, de “tirar da rota”: o grelhador é para bronzear, a plaina para depilar… E se tomarmos em conta que possivelmente na página 99 se apresenta um imagem capitular - a morte com um sombrero e um sorriso de palhaço, afirmando “Agora já posso brincar?”, poderíamos imaginar tratar-se de um momento de lazer da própria morte, as suas férias, a pausa merecida, ocupada afinal na continuação da maior proximidade possível à miséria humana. O livro termina abruptamente com a morte a acordar a dizer “que susto!… Sonhei que tinha morrido.” Abyssus abyssum invocat.
Duas perguntas. Poderemos considerar a obra de Tiago Manuel como fazendo parte de uma “literatura de testemunho”? E isso ocorrerá apesar da heteronímia, ou pelo facto da heteronímia?
Em relação à primeira pergunta, estaremos a considerar todo um vastíssimo campo de textos cujo papel principal, ainda que não desejemos instrumentalizar nenhum deles, serve de marco a uma memória que não pode ser jamais dissipada. Qualquer objecto humano, e até não-humano, pode constituir-se como documento histórico, claro, mas alguns deles, pela agência da vontade humana, por um valor humano imensurável, fazem valer-se de uma outra dimensão que os inscreve de uma maneira fulgurante na história e, depois, na memória. Se esta é “colectiva”, “pública” ou “cultural” é demasiado complexo para tentarmos perceber neste espaço: mas ela passa a existir publicamente, é passível de ser herdada culturalmente e de ser discutida colectivamente… Nesse campo maior da literatura de testemunho, encontraremos alguns textos gráficos: Romeyn de Hooghe e as suas gravuras sobre a Polónia, Jacques Callot e as duas Misérias da Guerra, Goya e as suas séries, Otto Dix e Der Krieg, Charlotte Salomon e Leben? Oder Theater?, entre tantos outros exemplos possíveis, criaram obras que aí se inscrevem. Todas elas levantavam um espelho à sociedade e aos eventos que os rodeavam, devolvendo bastas vezes os horrores e as misérias perpetradas. Ora, é precisamente nessa linha que a obra contínua de Tiago Manuel nos parece poder ser integrada.
Quanto à segunda, se nos inclinarmos para a ideia de o ser “apesar da heteronímia”, estaremos a diminuir a força do plano político desse mesmo trabalho e esforço. Pois incorreríamos imediatamente em fáceis explicações, dizendo que as vozes que falam não são vozes encarnadas, mas desprovidas de um ancoramento físico, tangível, histórico que elimina a sua expressividade. Que esses testemunhos partem afinal de órbitas vazias, máscaras plásticas que facilmente deslizam do rosto factício do autor. Má fortuna a que esse pensamento leva.
É no interior do torvelinho heteronímico que se forma uma voz, multifacetada, de um autor (ou, com Barthes, de um scriptor), e esse fala pela humanidade ou não fala. “Quem de nós, entre a multidão?”, reza ainda o poema de Godinho. O autor, quem mais?
Nota: agradecimentos ao autor, pela oferta do livro.
Excelente livro. Provavelmente o meu preferido deste autor.
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