Depois de termos brevemente considerado - mas acreditamos que não lhe fazendo a justiça merecida - o livro de Benjamin Saunders sobre a conexão entre a banda desenhada e a espiritualidade, é um ponto de equilíbrio ponderarmos sobre o contributo desta colecção de ensaios, fruto de umas conferências de 2008. Este volume centra-se mais em questões de representação do que de lições essenciais. Por essa razão, em contraste com o livro de Saunders, que focava exclusivamente um género particular, o da banda desenhada norte-americana de super-heróis (e, mais restritamente ainda, a quatro personagens, duas por cada uma das grandes companhias, os “Big Two” Marvel e DC), esta antologia atravessa uma grande variedade de géneros, contém alguma inclusão em termos de origem geográfica, e apresenta um largo espectro de instrumentos analíticos.
O objectivo é compreender que o cruzamento destas duas linhas não resulta “nem num conjunto de bandas desenhadas que apenas por acaso são sobre religião nem expressões religiosas que apenas por acaso surgem no formato da banda desenhada”, para citar Darby Orcutt. A leitura conjunta dos ensaios prevenirá o leitor de cair em qualquer tipo de essencialismo ou redução do meio, procurando uma expansão maior dos princípios em questão. A. David Lewis, ao estudar a figura do Super-homem, escreve “Dada a urgência com que outros autores têm tentado jungir o Super-homem ao folclore judaico ou cristão, associá-lo à ‘religião’ enquanto conceito autónomo pode ser razoável” - e foi essa, pensamos, a tentativa de Saunders.
Como escreve G. Willow Wilson, no fecho do seu ensaio sobre The Sandman, The Invisibles, Shade, The Changing Man, O Incal, etc., “a transcendência é um fenómeno popular”, e mesmo não acreditando que toda a banda desenhada seja necessariamente popular, a sua existência multímoda permite que esse aspecto da experiência humana esteja nela presente de modos de grande interesse e variedade.
A introdução dos editores começa, infelizmente, com aquele tipo de generalizações que associa de um modo directo e ininterrupto - mas sempre inanalisado seriamente - entre qualquer tipo histórico de produção visual, narrativa ou não, associado a texto ou não, com a banda desenhada moderna. É isso o que explica que o título, “Imagens gravadas”, seja decalcado da prática, pejada ela mesma de significados religiosos, de culturas mais remotas, passando pelas “gravuras picturais nas paredes do antigo Egipto” (mas sem se explicar a que se referem, se às gravuras mesmo que são parte integrante da arquitectura oficial, ou se quererão incluir as imagens não-gravadas, mas pintadas, de alguns papiros, etc.) aos manuscritos iluminados e panfletos impressos… Este é o tipo de inércias conceptuais que fazem sempre temer uma repetição das mesmas abordagens, mas acreditamos que não é o caso geral de Graven Images. O livro apresenta ainda algumas deficiências em termos de revisão textual, o que leva a erros pequeníssimos mas algo irritantes em termos de ortografia de nomes (estrangeiros em relação ao inglês) ou de exactidão disciplinar. Ao se escrever um ensaio académico, deve-se ter em conta algum grau de clareza, mas ao mesmo tempo deve-se escrever para leitores informados e não pensar-se num público mais generalizado, que provavelmente nunca lerá estes textos (tal como menos leitores haverá para este texto sobre esse tipo de textos!). Uma outra pequena crítica que poderia ser feita é o facto de não se considerarem, nalguns dos ensaios, outros sistemas de escrita ou linguísticos não-ocidentais, o que acaba por sublinhar a reificação, mesmo que ficcional, do nosso próprio sistema como estruturação originária socialmente limitada. Quando Megan Goodwin analisa a linguagem mágica e manipulação do alfabeto em The Invisibles, de Grant Morrison e colaboradores, as suas leituras são sedutoras e até electrificantes, mas não apontando nunca à existência de outros sistemas de escrita, a sua suposta universalidade torna-as improdutivas e limitadas.
Dito isto, os instrumentos conceptuais deste volume são bastante amplos. Na introdução, cita-se Catherine L. Albanese que define a religião como “credo (crenças), código (modelos de comportamento), e culto (sistema de práticas), de acordo com a qual uma comunidade ‘[se] orienta no mundo por referência a poderes, significados e valores quer vulgares quer extraordinários”. Esta descrição tripartida é completa o suficiente para se perceberem os modelos de análise possíveis e empregues ao longo do livro, desde a análise textual à abordagem semiótica e social. Isto permite que se abordem representações quer de experiências pessoais (Blankets, de Thomspon), quer de deuses e figuras religiosas na banda desenhada (um “Jesus” em Chosen, de Millar e Gross, Deus na obra underground de Jack Jackson ou em Preacher, Ester em Megillat Esther de Waldman), reformulações religiosas (Testament, The Sandman), formas de espalhar a(s) fé(s) (The Golden Plates, de Mike Allred, que adapta a história do Livro de Mormon, religião a que Allred pertence, os tonitruantes e horripilantes mas estranhamente atractivos Chick tracts), ou até de prescrições sociais (como a forma de demonstração de que o comunismo era cruelmente anti-religioso em comic books no auge da Guerra Fria). Textos complexos como Ex Machina, de Vaughn e Harris, From Hell, de Moore e Campbell, The Revival, de James Sturm, são também analisados de várias perspectivas, tentando iluminar aspectos da religiosidade humana através desses tratamentos ficcionais, neste meio particular, e aspectos do próprio meio, graças aos princípios filosóficos e ontológicos que a religião necessariamente implicam.
A compreensão do credo-código-culto (ou, por outras palavras, a consideração da pistis, da gnose e do rito) como instrumentos múltiplos e mutáveis de acordo com as necessidades e a vontade, mais do que de formulações perenes de identidade (cf. a discussão sobre magia/magick de Goodwin) permite aberturas significativas em relação ao instrumento criativo que a banda desenhada pode constituir como modo de alterar a consciência. Nesse sentido, The Invisibles e Promethea surgem como textos absolutamente cruciais nessa prática e entendimento. A descrição de Christine Hoff Kraemer e J. Lawton Winslade do “apocalipse” de Promethea como, parafraseamos, “uma experiência demolidora de paradigmas e reveladora das interconexões e da interdependência de todo o ser, e em última análise, da sua unidade”, podia ser entendida como uma outra forma de descrever a experiência profunda da religião (cuja possível etimologia aponta à ideia de “re-ligação”).
Os paradoxos que a experiência religiosa transmitida pela palavra poderão espoletar num meio visual como a banda desenhada são tema recorrente. Recordemo-nos de que as religiões mais próximas do nosso próprio conjunto civilizacional se apelidam a si mesmas como “as religiões do Livro”, com a consequente importância que é dada à palavra escrita no Judaísmo e no Islão e, num grau diferente e que sofreu uma negociação secular com outras experiências, o Cristianismo (na verdade, deveríamos falar de judaísmos, cristianismos e islãos, tendo em conta as denominações, ramos, movimentos que sub-dividem essas religiões). Em relação ao Hinduísmo, Perenialismo, Animismo e Magia, também abordados, as relações com as imagens são diferentes, naturalmente. As adaptações dos livros sagrados, porém, a um meio que emprega de forma substancial a imagem é sempre matéria controversa (recordemos o recente livro de Crumb), mas, como escreve G. St. John Stott, uma maneira positiva de encarar isso é compreender que isso é um “recontar das histórias que haviam igualmente inspirado os autores das escrituras”.
As leituras dos vários ensaístas bebem das mais díspares fontes para encontrar instrumentos acertados de análise dos textos eleitos, ora procurando os elos entre a religião e as cidades, a violência, a experiência do si, a sexualidade e os papéis sexuais, os maniqueísmos habituais e formas de o ultrapassar, ecos de cosmovisões na construção dos universos fictícios, e até a morte, tantas vezes provisória, nos super-heróis serve para reflectir sobre a condição humana: “funerais como memória em vez de mortalidade” (A. David Lewis)
Quase todos os autores são muito cuidadosos em garantir que essas análises não se esgotam na abordagem dos conceitos, eventos ou temas retratados nas obras, mas incluem o aparato estrutural e estilístico específico à banda desenhada como produtor de significado, e com consequências sobre esta matéria. K. Netzler é muito explícita na atitude necessária: “A banda desenhada é meio complexo, auto-crítico e continuamente auto-renovante na qual a forma e o conteúdo estão inextrincavelmente ligados. Contar uma história através da banda desenhada exige a manipulação da própria forma, por isso é importante levar em consideração de modo igual estes dois aspectos da banda desenhada”.
No entanto, se alguns autores revelam (dizemo-lo na nossa ignorância) domínio sobre a matéria da religião, entendida deste modo lato, no que diz respeito aos mecanismos da banda desenhada, as prestações são flutuantes. Por exemplo, Laurence Roth discute os livros de Sfar do Petit Vampire como tendo sido, nos Estados Unidos, comercializados como livros infantis [children’s books] mas sendo “na verdade graphic novels”, mas sem explicar muito bem o que está em jogo nesta sua surpresa e discordância, não se percebendo se é uma questão de meio, de género ou de distribuição demográfica. Outros autores continuam a insistir na teoria de McCloud de que há uma maior identificação com personagens desenhadas de modo simples, o que não só é insustentável como uma tremenda confusão disciplinar. Há quem equacione, necessariamente, a banda desenhada com a cultura popular, etc. Não que outros temas sejam abordados de modo sempre equilibrado: quando se citam as Biblia Pauperum - hoje consabidamente considerado um termo mal-empregue - ou os vitrais das igrejas como uma forma de “compreensão popular”, como um modo de aprendizagem para as massas iletradas da Idade Média, suspende-se o facto de que isso é pura e simplesmente falso e descontextualizado. O tipo de essencialismo de que a banda desenhada “é mais capaz” disto ou daquilo que outros meios, ou de que exige um trabalho cognitivo de maior participação que outros meios, que atravessa alguns ensaios, é igualmente um desserviço à abordagem correcta do estudo cognitivo da percepção cultural.
O paradoxo é que essas afirmações menos felizes são encontradas em textos que, na continuidade das suas reflexões, se revelam extremamente estimulantes e iluminadoras, como o ensaio de Wilson, o qual, estudando o simbolismo de Guénon, aborda vários títulos da banda desenhada contemporânea e revela mecanismos transversais: “O conhecimento sagrado não é gerado pelas tentativas humanas em compreender o mundo. É antes essa mesma compreensão que é gerada pelo conhecimento” e “Atingir um conhecimento superior é recriar a unidade a partir da multiplicidade”. São posicionamentos críticos e distantes destes que permitem uma panorâmica produtiva.
A abordagem da religião é sempre um exercício auto-reflexor. É um modo de nos compreendermos a nós mesmos e à nossa condição e papel no mundo. Estudar a banda desenhada desta perspectiva poderá ser revelador de alguns dos modos como essa reflexão é procurada e atingida. E. T. Merriman, no seu estudo de From Hell, é muito astuta quando escreve que “estas desconstruções precisam do auto-exame moral do próprio leitor”, algo que poderia ser aplicado a qualquer leitura. Citando Alan Moore, que por sua vez discute William Blake, acrescenta que “a arte, no seu melhor, tem o poder em insistir numa realidade diferente”. Ora é a essa realidade diferente que as narrativas (o “mito” no sentido etimológico, ligando ficção e religião) da banda desenhada tornam possíveis enquanto texto.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
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