O que é a “inscrição”? Esta é uma palavra que num certo discurso filosófico e social tem ganho um significado muito preciso, se bem que aberto nalgumas das suas circunstâncias e consequências. De certa forma, poder-se-á dizer que essa noção surge com detrimento da noção de “integração”, no sentido em que essa pretende apontar para a diluição ou o desaparecimento de um elemento num quadro maior de elementos, todos eles partilhando de um qualquer fundo “comum”, “igual”, que levará, por sua vez, à ideia de homogeneidade (social, política, etc.). De certo modo, é esse mesmo o princípio da hegemonia, em relação ao qual qualquer “diferença” será sempre vista em detrimento. A noção de “inscrição”, porém, permite manter a diferença, que dá a ver a continuidade de uma tensão de um elemento original quando inserido num tecido maior. A “inscrição” do título do último livro de Montellier preenche esse sentido, com algumas ressalvas e adaptações.
Vivemos numa época em que a própria diferença é muitas vezes factor exigido pela conformidade cultural. Basta olhar para a publicidade que declara “Bebe x, sê diferente” ou “Ser diferente é vestir y”, sendo x e y produtos de acesso quase universal. A facilidade com que cada nicho de gostos e posicionamentos culturais encontram o seu espaço de expressão e partilha é um aspecto de liberdade, mas ao mesmo tempo oferece a oportunidade para criar ensimesmamentos e auto-contentamentos que dispensam o diálogo e o conflito com algo que não si-mesmo. Por outro lado, sempre que emergem princípios votados como transversais ou universais - mesmo que no interior de comunidades menores como as nações, uma etnia, uma “raça”, uma cidade, etc. -, a sua não-aceitação ou, pelo menos, a não-aceitação nas mesmas condições é vista pelos agentes institucionais e pelos seus utilizadores comuns como um desvio incompreensível. Como é possível que um português não goste de fado? Ou de futebol? Como é que não temos orgulho num actor português que singra em Holllywood, ou uma modista que trabalha em palcos internacionais, ou em autores nacionais que publicam no mercado mainstream norte-americano? O que essas perguntas, desesperadas na sua incompreensão, apontam é a existência de uma história única que deve ser contada: “um português é quem gosta de fado, etc.” Percebemos logo a limitação cultural, individual, que isso representa. Quem o faz, a essa não-aceitação, é um “não-inscrito”.
L’inscription parte desse princípio, mas levando-o a uma literalidade absurda. Caroline é uma jovem poetisa, sonhadora, que vive nas várias margens da sociedade normalizada - em termos culturais, estéticos, mas também de apresentação do si, económica, social, etc. -, e que vai ao encontro da necessidade, que lhe é apontada por outros, de se “inscrever no social”. No universo apresentado por Montellier, essa inscrição é possível, num departamento oficial do Governo, como se fosse preencher um documento ou entregar papelada na Segurança Social.
As chamadas para outras ficções, sobretudo as Alices de Carroll, ou o ambiente - tornado um tropo, senão num cliché - “kafkiano”, são por demais óbvias, para criar com essas outras obras variações significativas. Em relação à obra de Carroll, as chamadas são mesmo explícitas no texto. A maneira como a autora gere a representação da protagonista, dando a ver uma matéria visual que parte eventualmente das suas projecções fantasistas, ou de uma camada de simbolismo mais ou menos revelador (como a mini-Caroline que voa atravessando as vinhetas de toda esta história, como na capa, e que se assemelharia àquelas representações medievais e, mais tarde, nos desenhos animados, da “alma”, ainda que não sub-dividida entre duas morais antagónicas), complica a relação com a realidade. É como se Caroline estivesse numa permanente tensão entre a realidade e todos os seus desvios ou até devires possíveis, num tecido poroso.
Caroline cruza-se ou recorda várias personagens cuja interacção com ela a revelam como uma “não-inscrita”, como alguém que provoca curtos-circuitos nas expectativas criadas por esses agentes de poder - o oficial-governativo, de partidos políticos aparentemente libertários mas tão constritos como outro qualquer, o cultural-sexual, o sexismo, o económico, etc. Ela é uma representação de uma resistência. O título L’inscription, na verdade, mostra aquilo que é uma violência operada sobre os indivíduos, o desejo dos poderes em controlarem os cidadãos como o “mesmo”, não se prevendo verdadeiras “diferenças”.
Não quer isto dizer que L’inscription não tenha alguns desequilíbrios. À partida, criar maniqueísmos fáceis como a da jovem artista sensível, nefelibata, atenta à ecologia e à liberdade total, à poesia, para a jogar contra velhos agentes da autoridade, irascíveis, lascivos e dominadores, leva a uma equação algo pateta. Por exemplo, a associação da visão cultural de Caroline às visões ecológicas dos povos índios norte-americanos, citando um chefe, mas não indicando nem o seu nome nem a sua etnia - a citação é da famosa, e possivelmente apócrifa, carta do chefe Salish Seattle ao Presidente Washington - acaba por poder ser visto como uma objectificação, reificação e singularização do conceito de “índio” que é, em si mesma, politicamente reprovável. E apesar da sociedade policial e de vigilância e de punição preventiva ser de facto uma realidade cada vez mais marcada no nosso tecido social - a liberal Euro-América -, existem mais lugares onde operam tensões e negociações do que absolutismos. Quer dizer, os esbirros nem sempre se comportam como esbirros e as vítimas nem sempre se apresentam imaculadas. Devemos estar alertas para os modos insidiosos como os novos fascismos e totalitarismos liberais avançam - por exemplo, através dos discursos da “inevitabilidade da situação económica” e a derisão total de qualquer tipo de desvio dessa mono-perspectiva -, mas é preciso, ao mesmo tempo, não atirar o bebé com a água do banho.
Quando a personagem que tem como nome/apodo “o inscritor” (l’inscripteur) se abandona ao seu tonitruante discurso do seu poder, diz o seguinte: “Ser inscrito significa adaptar o seu comportamento e a sua imagem à norma em vigor! Quer dizer aprender! Aprender o alto ideal do esforço pessoal. Aprender o trabalho obscuro, aplicado, repetitivo (…) Aprender a lei unificadora suscitada e mantida pelos dirigentes, o espírito do nosso espírito, a força da nossa força, a vontade da nossa vontade!” ou “O poder é feito para que dele se abuse, senão não seria o poder! O poder ordena, domina, submete, amordaça, ostraciza, o poder mata! O poder é a liberdade de matar legalmente, em nome de interesses superiores: os nossos!”. Se a primeira parte soa a discursos desusados desde a 2ª Guerra Mundial e sublimados por ditadores de pacotilha da ficção, o segundo aumenta ainda mais o ridículo numa típica tirada de vilão legal embriagado pelo próprio poder… Tudo isto soa a demasiado e desfasado das formais mais subtis de exercício de poder dos nossos tempos. Mas tudo isto é também uma descrição correcta das situações contemporâneas do exercício de poder. Com efeito, quanto menor o poder é, mais ele se exerce nítida e abertamente, e a disseminação das responsabilidades desse mesmo poder numa máquina impessoal é o que torna difícil, se não impossível, a resolução, não somente prática de toda uma série de problemas dos cidadãos, como psicológica, da frustração e desespero que se sente nesse combate. Cada vez mais a visão de Kafka se efectua na realidade, o que nos retorna à questão se é a realidade que é cada vez mais real (uma questão cuja fraseologia imita a de muitos filósofos contemporâneos) ou se ela tem tomado como modelos ficções que haviam distorcido e hiperbolizado as realidades que espelhavam.
A paranóia que costuma ser a matéria principal dos livros de Montellier, para depois explorar situações bem palpáveis da realidade histórica que reflecte, e que se detecta no ainda hoje significativo Oscar Brown n’est pas un espion e o mais recente, e mais engajado, Les Damnés de Nanterre, encontra aqui um grau de exacerbamento, até devido às ligações directas que faz a um universo de fantasia como o de Carroll. Se numa primeira fase Montellier seria vista como um dos principais autores do “novo realismo” na banda desenhada francófona dos anos 1970 e 1980, tal como baptizado por Lecigne e Tamine, o ar “onírico” de L’inscription parece ser a estratégia mais apropriada aos modos de representação política do pós-11 de Setembro. Matthew Screech estudou Montellier e aponta em alguns dos seus estudos (inclusive Masters of the Ninth Art) a maneira como a autora explora as discrepâncias entre a realidade que é acessível ao leitor - graças à focalização do narrador sobre a personagem, que nos permite aceder aos seus próprios universos de referências, e neste caso até, interiores - e aquela que é montada, encenada, pelos meios de comunicação social, em L’inscription disseminados igualmente pelo equipamento estatal de vigilância.
O inscripteur chama ainda os artistas de “narcisistas excêntricos, megalómanos, associais, irresponsáveis, incontroláveis, em breve, uns merdas…”, ao que Caroline contrapõe serem “enchanteurs” (“encantadores” mas também “encantantes”); à acusação do inscripteur de serem todos uns “parasitas”, Carolina riposta com um “mas eles não exploram ninguém”… O inscripteur aponta alguns modelos possíveis de artistas no interior da modelização normal da sua sociedade: malta com glamour, piada, sexy, etc. Mais à frente contrapõe igualmente um modelo de beleza feminina, que tem tudo a ver com as expectativas criadas nos cadinhos da hegemonia sexual da indústria cinematográfica e publicitária, sublinhando os extremos usuais. Infelizmente, este tipo de discursos é conta-corrente entre nós, utilizando-se sempre estas imagens feitas e homogeneizações abusivas. Estaremos familiarizados com o “subsídio-dependente” que quer terminar logo com qualquer discussão… Mas mais uma vez este tipo de absolutização de toda uma categoria tão ampla e diversa acaba por ser menos produtiva do que serão os objectivos de Montellier na sua fábula. Os artistas são agentes de criação disciplinar que podem em maior ou menor grau integrar-se no aparelho que os rodeia, sustenta e reflecte. Em Portugal, por exemplo, basta olhar em torno para descobrirmos nomes que partindo do círculo das artes visuais contemporâneas, do entretenimento (e do chamado “humor” particularmente!), da música, etc., se tornam agentes de publicidade normativa. Em muitos aspectos, a subversão dos artistas é subvencionada (para jogar com um título famoso de Rainer Rochlitz). Também a crítica da representação das mulheres supostamente encenada pela autora é minada pela sua própria opção em representar Caroline através de um modo que é ele mesmo outro tipo de modelo pré-fabricado (a jovem e bela "alternativa").
Um outro tema pós-11 de Setembro é o da insegurança, explorado aqui pelo modo como a artista retrata a presença sistemática, electrónica, contínua de câmaras nas ruas, de personagens cujas cabeças são substituídas por essas mesmas câmaras, pelos posters espalhados na cidade e nos edifícios oficiais de um sósia (ou retrato?) de Sarkozy, com palavras de ordem (“Trabalhem mais!”) ou do Presidente de Paris, Bertrand Delanoix/ Delanoë…
Aliás, a presença de variações do rosto de Sarkozy em outras personagens que servem de metonímia à história da França cria a ilusão de uma continuidade do mesmo, e permitem-nos dizer uma palavra sobre a arte de Montellier. A artista é reconhecida por empregar uma picturialização do mundo que deve muito a uma abordagem mecânica, imitando um fotorealismo que passa por técnicas de reprodução de baixa qualidade (como a fotocópia), levando a um grão saturado. A autora abdica as mais das vezes aos instrumentos que são acessíveis à banda desenhada, desde a caricatura a uma estilização geométrica, ou de abordagens mais expressionistas. As cores são limitadas em L’inscription em termos de vivacidade e intensidade, e apesar de haver verdes, um violeta, um rosa, um azul, são todas tratadas em tons baços, como se estivessem sob um filtro, talvez a “indiferença cromática” de um poema da própria Caroline, citado no livro… As páginas do livro atravessam esse espectro, nunca havendo o costumeiro fundo branco, que pelo menos apontaria à noção de um ambiente escondido sem cor mas brilhante, o informe de onde partiriam todas as cores. Mas não, tudo está subsumido a essa absorção de vida.
Uma vez que a autora, neste livro, utiliza como que um espectro reduzido de imagens - como que modelos para cada personagem: Caroline, o inscripteur, a fada, os gatos, outras personagens, etc. - e depois as reutiliza de acordo com a variação e manipulação possíveis pelos instrumentos digitais (claro que muitos deles eram antes acessíveis por outras técnicas, como a colagem manual, mas a autora não esconde os processos digitais na materialidade destas imagens), é como se quisesse sublinhar precisamente a criação de arquivos que, por um lado diminuem o objecto a um conjunto fechado de elementos, e depois os atomizam na sua possibilidade de corte-e-costura. Um reflexo da sociedade que pretende retratar, portanto. A autora ainda utiliza por vezes variações de estilo, desenhando Caroline como se se tratasse de uma personagem mangá, ou numa versão Simpson, versões porno/hentai, ou mesmo com pequenas variações de roupagem e maquilhagem que se adaptam à circunstância do mundo que atravessa nesse momento diegético. Nada que esteja longe das transformações físicas (e distorções “gráficas”) sofridas por Alice nas suas próprias aventuras ou, de um lado mais social, pelas “máscaras” e “palcos” em que negociamos a nossa existência todos os dias (Erving Goffman).
Mas sob essas camadas todas, haverá alguma realidade afinal? Haverá alguma inscrição final e absoluta? O livro não responde a isso, criando uma ficção que se vai musculando até à entropia total, que rebenta, e no momento da promessa de um regresso a um possível consenso, Caroline “foge” novamente, com os mesmos instrumentos do que ela chamou de “pesadelo” - a aventura que nós mesmo lemos. Montellier parece então acreditar que apenas uma entrega total à experiência única de cada um, marcada diariamente pela fantasia, pelo sonho, pela rememoração, que desviam da percepção do presente, de tudo isso que faz parte de facto de nós mesmos, é que emergiremos como indivíduos completos. Talvez isso seja uma fantasia, ou talvez seja a realidade última. L’inscription pode ser visto como um possível mapa dessas ligações, oferecendo, pelo menos, um sendeiro.
o texto é longo, a produção abundante, mas não é usual vermos tantas gralhas...
ResponderEliminarNormalmente imprimo o texto para o rever, assinalando tudo a lápis, etc. Infelizmente fiquei sem essa possibilidade e confio na leitura do ecrã. Vou rever tudo. Obrigado!
ResponderEliminarPedro
ihihihihih toma lá e embrulha
ResponderEliminargambuzina
Acho que já está... Mas se virem alguma coisa, avisem sempre... não se acanhem cagente tão bem fás errus.
ResponderEliminarPedro