Num período muito curto, vemos serem editados volumes monográficos dedicados a autores singulares que, de uma forma ou outra, foram influentes na formação ou inflexão de um determinado género da banda desenhada, ou um modo de trabalho ou um potencial imaginário. McCay, Kirby, Moore, Morrison.
Este volume é um estudo singular de Marc(us) Singer sobre a obra do autor escocês Grant Morrison, que vive num território muito curioso entre o do autor independente e do funcionário do mainstream. Este livro é inteligente, cativante e uma curiosa e equilibrada mistura entre a admiração de um fã e a distância crítica que se espera de uma abordagem académica, tornando-a, como deve ser sempre, um excelente contributo quer para o estudo específico da produção de Morrison quer para os estudos de banda desenhada em geral. Ainda que não possa dedicar, como é de esperar, uma atenção detalhada a toda a sua obra (exclusivamente no campo da banda desenhada), ainda assim este livro aborda toda a sua carreira de autor deste campo, encontrando temas e tropos recorrentes ao mesmo tempo que assinalando os graus de desenvolvimento e mudança nessa mesma carreira.
Há uma espécie de baixo contínuo temático neste livro, que Singer aborda na introdução e que depois vai demonstrando, não de uma maneira exaustiva e sistemática, mas integrada nas discussões de cada passo. Esse tema é a interpretação de Morrison como um autor e pensador não-idealista, mas bem pelo contrário alguém que elege como sua figura estilística ou signo principal a hipóstase, isto é, a personificação, incarnação, ou realização de ideias abstractas: “as hipóstases de Morrison são ideias, emoções ou estados de consciência reificados, o que não difere do conceito que ele tem dos deuses” (pg. 18), sendo o género dos super-heróis em particular aquele com maior “facilidade para concretizar o abstracto e incarnar os nossos ideais” (266). Isto implica que as suas obras e personagens não devam ser lidas enquanto “símbolos” ou “alegorias”, mas representações incarnadas dos conceitos discutidos (o que leva a uma significativa contribuição para a leitura de Batman: Arkham Asylum), e num meio artístico, a banda desenhada, que “evita [bypass] as mediações da linguagem”, mas mesmo assim através de mecanismos meta ficcionais que incluem a ironia e a auto-consciência, abrindo-se assim a uma diversidade interna - consabida em Morrison, que explora repetidamente universos paralelos, realidades encaixadas, etc. - “mundos múltiplos que operam em escalas narrativas e ontológicas variáveis” (18-19). É isso o que o levaria, por exemplo, a tratar as suas personagens como isso mesmo, personagens naquele mundo ficcional e não enquanto símbolos ou metáforas sobre algo do nosso mundo, “ou quaisquer representações figurativas de grupos existentes. Ele prefere tratar os mutantes [X-Men] como uma minoria distinta, totalmente real no seio das fronteiras fantásticas do seu próprio título de banda desenhada” (171), o que o leva a um tratamento cultural complexo nessa série (moda mutante, música mutante, drogas para mutantes, etc.).
O livro está organizado por ordem cronológica da obra de Morrison, se bem que haja um ou dois momentos em que tenha de haver um recuo ou um encaixe, por Morrison ter estado a trabalhar ao mesmo tempo em várias frentes, terrenos e/ou companhias. Através de sete capítulos (não deve ser acaso), e um complemento para falar do que Morrison está a escrever agora (Batman Inc., Action Comics), Singer começa com os primeiros trabalhos em formato de fanzine, quando Morrison ainda desenhava as suas próprias histórias, numa espécie de epígono de Jim Starlin e Morcock (Captain Clyde), atravessando os seus primeiros passos na indústria britânica (Zenith, Dare, Hitler) e depois na norte-americana (Animal Man, Doom Patrol), chegando ao seu primeiro pico (The Invisibles), o que lhe abriu a porta para os “grandes brinquedos” da DC (JLA) e da Marvel (New X-Men), regressando à Vertigo (The Filth, We3, Seaguy, Vimanarama) e finalmente ganhando um lugar de grande proeminência como um dos “arquitectos” da DC (Seven Soldiers, All-Star Superman, Batman & Robin, Final Crisis) (sendo os outros, possivelmente, Mark Waid, Geoff Johns e Greg Rucka).
Singer consegue, de uma forma fluida, demonstrar que não há contradições em Morrison nestes vários títulos em termos de género e/ou tratamento narrativo e de personagens, mas antes uma variação de emprego conceptual e características perenes: “dispositivos metaficcionais, estruturas narrativas em sinédoque, humor absurdo, e talvez algo mais importante, uma estratégia figurativa que literalmente incorpora significado nas formas traumatizadas das suas personagens” (53), regressando àquela concepção da hipóstase.
Podemos dizer, sem controvérsia, que o estudo de Singer é relativamente mais limitado do que o de Hatfield em Hand of Fire, no sentido em que não incorpora tanto informações do contexto sócio-cultural no trabalho de Morrison como esse outro investigador o faz em relação a Kirby (“fonte” em muitas instâncias para Morrison). Quer dizer, a introdução joga com alguns dados biográficos de forma a criar-se algum contexto, mas tal como Hatfield e uma certa regra de ouro deste tipo de análises, evita-se o biografismo, mas falamos aqui mesmo das condições de trabalho. Por exemplo, é aludido o facto de que muitos dos projectos de Morrison, sobretudo aqueles no coração do mainstream, sofrem da mudança súbita de artistas, nem sempre opção consciente ou desejada pelos criadores envolvidos, nem sempre integrada da forma mais equilibrada, e nem sempre levando a resultados positivos (veja-se Mister Miracle, alguns dos “arcos” da JLA, e até mesmo Batman Inc., que muitas vezes descambavam em regimes visuais bem feios). Apesar de Singer tomar em conta muitas vezes de que modo as inflexões gráficas e estilísticas dos autores respondem, complementam ou até mesmo entram em conflito (como no caso de Dave McKean em Arkham Asylum) com a “escrita” de Morrison, e explicitar que “estas mudanças [editoriais no universo da Marvel] não podem alterar a história completa de Morrison [em New X-Men], elas ilustram as limitações práticas de trabalhar no interior de um universo partilhado cujas propriedades são moldadas por outros escritores, e propriedade da editora” (180), isto nunca se torna constante palco de discussões mais abrangentes ou sustentadas.
Isto não significa que não haja uma larga panóplia de disciplinas consultadas e empregues para o estudo interpretativo de Singer, sobretudo algumas que são caras a Morrison mas parecem afastadas da abordagem académica mais comum, como a filosofia gnóstica, a magia, e certos saberes mais ou menos ocultos. As relações entre corpo e ideia, animação e entrosamento dos conceitos na realidade tangível, são então pasto de análise, levando a considerações desta sorte: “Doom Patrol inverte o privilégio que se dá ao ideal em Animal Man, valorizando antes o concreto e o físico sobre o puramente cerebral, não somente na sua preferência pela hipóstase sobre a metaficcção, mas também pelo peso moral que dá a cada categoria à medida que a equipa grotescamente incarnada da Doom Patrol combate ameaça imaginária atrás de ameaça” (86).
Estas dimensões filosóficas de Morrison procuram instalar um cada vez maior respeito no interior da economia de género dos super-heróis, quer através do seu enxerto com outros géneros (do western ao horror, passando pela ficção científica hardcore, e nunca esquecendo a história específica do próprio género) quer através da experimentação possível com as estratégias narrativas, figurativas e visuais que ele pode permitir. Ainda que haja diferenças entre algumas das personagens com que Morrison trabalha, digamos entre a Doom Patrol e a JLA, entre Flex Mentallo e o Batman, há uma procissão de personagens que, tais como essas primeiras de cada dueto, confrontam situações de “incerteza epistemológica”, onde se dá uma “super-abundância de realidades incompatíveis. Esta progressão ecoa a alteração de uma dúvida epistemológica predominantemente modernista para uma dúvida ontológica predominantemente pós-modernista” (196, Singer está a citar o teórico Brian McHale). O autor da monografia está aqui a referir-se sobretudo a The Filth, mas seguramente que os leitores de Morrison entenderão onde encontrar os mesmos elementos e ambientes noutros dos seus títulos.
Singer não pretende que todos os elementos que são hoje reconhecíveis em Morrison estejam presentes em todos os seus trabalhos, de uma forma retroactiva. Aquilo que o próprio escritor escocês chamou do seu traço principal - “algaraviadas absolutamente ilegíveis” - foi sofrendo alterações ao longo do tempo. Se numa primeira fase, Morrison seguiu os passos dos seus percursores imediatos britânicos nos Estados Unidos, acima de tudo Alan Moore, rapidamente ele encontraria uma diferenciação, que se baseia na sua atitude positiva para com os super-heróis. Aliás, Morrison parece ter sempre pautado a sua carreira em relação a Alan Moore, não tanto como seguidor, mas muitas vezes como contraponto (e são muitos os aspectos comuns, se bem que as diferenças sejam de natureza também, e não de grau). Identificando-se várias tendências - a fase revisionista, em que emergia uma leitura lúgubre e cínica sobre estas figuras, a fase retro, em que se pretendia revisitar uma certa candura e simplicidade da dita Silver Age, e uma fase mais contemporânea de grande acção e intervenção na “realidade histórica”, com o movimento widescreen, Morrison quer utilizar os super-heróis como mecanismos de pensamento prático, mágico: “Ao contrário dos seus predecessores revisionistas [Moore, Miller], os seus pares ‘retro’ [Busiek] e os seus sucessores widescreen [Ellis, Millar], Morrison tenta escrever uma banda desenhada de super-heróis politicamente progressivos prescrevendo-lhes um papel limitado e assumindo a responsabilidade da humanidade pelo seu próprio destino” (157). Claro que isto é muito discutível no seio de um género que parte do pressuposto que existiriam criaturas com capacidades para além daquelas conquistáveis pelos seres humanos comuns, e as mais das vezes expressas através da força senão mesmo da violência. Se eticamente é discutível se a justiça pode existir sem força, os super-heróis em si mesmos - até mesmo aceitando a sua existência ficcional, hipostásica - seriam exercedores de força à margem de uma justiça humana, que não pode legislar o ficcional e/ou o não-existente.
Quer dizer, aquele sentido “mágico” a que nos referimos tem a ver com a transformação da banda desenhada numa máquina ficcional na qual se podem experimentar realidades tentativas, e esperar que elas operem na imaginação humana e, logo, no comportamento. E os super-heróis ajudam substancialmente. “Morrison indicia que os super-heróis ficcionais modelam a confiança e a abnegação que a humanidade deve adoptar para que se salve a si mesma” (142)… De certa maneira, é essa a grande tese explorada em Supergods, se bem que Marc Singer jamais cite este livro na sua análise, incorporando a sua visão (por razões óbvias, ver entrevista). Segundo as interpretações de Singer, para Morrison (está a ler The Mystery Play), “todo o fenómeno material é, em si mesmo, um sinal pejado de significado, à espera do interpretante certo” (97). Ora, se esta lição se aplicar à ficção da banda desenhada, e tendo em conta que há uma crença de que as ficções tem o poder para moldar o mundo (cf. pg. 267), encontramos em muitos casos de Morrison entrosamentos de uma no noutro, mesmo que no seio da ficção contada: Animal Man a conhecer o seu autor, Zatanna (Seven Soldiers) a pedir ajuda aos leitores, The Filth a colher tecnologia de um universo interno de banda desenhada, universos ficcionais a sobreporem-se ao mundo real ou pinturas a engolirem a realidade em Doom Patrol, The Invisibles a desfazerem-se no papel, etc. A aplicabilidade da máquina dos super-heróis ficcionais no nosso mundo, como uma espécie de antídoto viral (palavras de Morrison) à nossa própria realidade, não pode ser mais clara do que All-Star Superman, JLA, ou em vários momentos do seu tratamento de Batman, mas acima de tudo no estranhamente auto-biográfico-misturado-a-ficção Flex Mentallo. Singer escreve o seguinte em relação a Doom Patrol, “A realidade é o lugar da responsabilidade adulta e do racionalismo opressivo, e a imaginação a fonte de terrores juvenis e consolo surreal” (87). Morrison procura que a segunda possa contribuir para a cura das maleitas da primeira.
A criatividade de Morrison é, claro está, corroborada pela dos seus artistas. Existem momentos de maior felicidade e simbiose, como nos casos de Frank Quitely, J. H. Williams III e Jill Thompson, mas presta-se aqui atenção mesmo aos momentos em que Morrison se vê obrigado a trabalhar com artistas de segunda ou terceira categoria (nossas palavras) do “estábulo” (tradução literal de um termo comum na indústria norte-americana) das companhias, procurando entender que forças ou fraquezas surgem nesses momentos. Todavia, há uma constância de alguns “truques”: da utilização do espaço intervinhetal como querendo dar a entender um espaço para além do espaço euclidiano, as flutuações de estilos gráficos para dar a entender tempos diferentes e/ou universos paralelos (uma técnica que seria largamente imitada depois, inclusive por Moore e colaboradores), e técnicas diegéticas muito contemporâneas. No que diz respeito a essa flutuação de estilos e grafias, digamos assim, isso prende-se com o seu “Estilo prismático [uma expressão de Duncan Falconer que quer dar conta de uma tendência em integrar variações de uma mesma personagem no tratamento ficcional], contrastando os seus heróis contra conjuntos de reflexos e situando-os em palimpsestos textuais que consolidam décadas da história da banda desenhada em narrativas únicas” (255). Por outras palavras, em vez de esquecer o passado editorial das suas personagens aproveitando apenas algumas partes para recriar o seu próprio passado dessa personagem - o que se chama na indústria de “retcon” -, Morrison incorpora tudo como real (pois é real, em termos de textos que existem!) nessa ficção. O caso do seu Batman é um caso paradigmático. Já a respeito às técnicas narrativas, bastará pensar naquela belíssima página de abertura de All-Star Superman (a que chamámos “equação visual/matemática”) ou a catadupa de acções em Final Crisis para nos inteirarmos da “parataxe acelerada a que [Morrison] chama de ‘banda desenhada em zapping’, mudando de cena para cena numa velocidade cada vez maior e sem transições” (279), e que tantas críticas e reacções teve de grande parte dos fãs da DC. Sem querer transformar Morrison numa espécie de divisória valorativa, Singer tem razão quando diz que a obra desta autor “exige um leitor activo” (193). Se bem que esteja a falar em relação a The Filth, estamos em crer que é também aplicável até mesmo a títulos do mainstream mais comercial, sem nos esquecermos, porém, que essa leitura também exige uma predisposição e conhecimentos prévios de leituras desse mesmo universo ficcional. Nem sempre é fácil encontrar um equilíbrio feliz entre ambas exigências.
Afinal, a prática de Morrison é sobretudo a de um “tradicionalista”, uma vez que ele trabalha de uma maneira que abraça profundamente a serialização constante e pautada dos comic books, algo que discutimos há pouco a propósito de Optic Nerve. Morrison opta por esse formato de publicação/circulação de modo que “recompensa e confunde os leitores que o seguem todos os meses. Enquanto o resto da indústria se vira para as novelas gráficas e o marcado livreiro (…), Morrison continua a pautar o seu trabalho pela serialização mensal” (291-292).
Poderemos dizer, de certa forma, que a obra de Morrison é autofágica, mas de uma forma nada negativa, mas reflexiva e potencializadora. Ele reaproveita muitas das matérias que já havia utilizado em trabalhos anteriores, sempre na intenção de redescobrir novos empregos e mecanismos de emergência de complexidade. Pode isso ser melhor ou pior conseguido: Singer entende que em Final Crisis/Superman Beyond 3D o autor está mais “a inventariar os seus métodos do que a expandi-los ou a levá-los em novas direcções” (282). Mas mesmo assim encontramos nesse trabalho essa tentativa transformativa de Morrison, na qual todo o universo da DC é relido como “uma metaficção gnóstica na qual a perfeição do nada é manchada pela corrupção da narrativa, ainda que ele contradiga mais uma vez o gnosticismo ao celebrar esse material corrupto” (279). Tal como em Vimanarama, a constante de Morrison parece ser a de criar uma “cultura de fusão e cooperação” (208), aceitando com todos os seus problemas, patetices e materialidades o género dos super-heróis, não o querer transformar num espelho do nosso mundo mas antes aprofundar toda a sua capacidade de fantasia, para com isso criar um mecanismo ficcional que possa contribuir, de alguma forma, popular, espectacular, e até psicadélica, para o nosso bem-estar enquanto seres humanos. Não é essa uma das lições da verdadeira magia?
Marc Singer foi muito gentil em responder a uma quantas perguntas em torno deste seu projecto, que estendem alguns dos temas aqui sublinhados, e que temos a honra de partilhar, aqui.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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