O propósito de Hand of Fire não é providenciar nem uma biografia nem uma bibliografia, como Charles Hatfield explica, ambos discursos que existem sobejamente em circulação sobre Jack Kirby. É antes a apresentação de “um ponto crítico de acesso e escrutínio, algo que ajudará quer leitores não iniciados quer fãs de Kirby a apreciar e contextualizar os seus trabalhos mais celebrados” (pg. 14). Este volume deve ser entendido, portanto, como um volume académico no seu sentido mais vincado sobre um dos mais celebrados, conhecidos e importantes autores da banda desenhada moderna norte-americana mainstream, sobretudo no género dos super-heróis, género para o qual Kirby contribuiu de uma forma decisiva em várias das suas fases de desenvolvimento. Como se depreende daquela citação do autor - “os seus trabalhos mais celebrados” -, Hand of Fire não dedica a sua atenção analítica de um modo equilibrado e contínuo a toda a obra de Kirby, mas concentra-se numa meia-dúzia de trabalhos que se podem considerar como os mais significativos, não só na produção do próprio Kirby como também no papel que assumiriam na complexa rede de referências que comporiam, numa primeira instância, os chamados “universos ficcionais” das duas grandes companhias dos super-heróis mainstream, a Marvel e a DC, mas também toda a economia e mecanismos narrativos que estariam associados a esse género. Dessa forma, é possível eleger uns quantos casos de estudo que se tornam palco de manipulação dos vários instrumentos analíticos de que Hatfield dispõem. O académico confessa, no fim, que o seu método é algo “vagabundo” (252), mas esse é o único processo possível quando se analisa uma obra de arte que tanto bebe do visual como do literário/narrativo, como ainda da história e da indústria do livro, da cultura popular, dos seus encontros com matérias de outros quadrantes criativos, da história local, da experiência de uma vida pessoal… Por isso os capítulos de Hand of Fire atravessam os registo histórico, teórico, social, sobre os processos criativos, sobre o género, etc., antes de entrar propriamente em casos de estudo (a saga chamada de “Fourth World” para a DC e o papel de The Eternals na continuidade da Marvel).
Apesar de existirem alguns momentos tentadores, como na história “Himon” (Mister Miracle no. 9), em encontrar “criptogramas autobiográficos”, sendo possível ler aqui e ali “um lance pela autonomia artística e pela expressão pessoal no idioma específico de uma arte heterónoma e produzida massivamente [a banda desenhada, claro]” (226-227), Hand of Fire jamais descarrila no biografismo.
É muito difícil, estamos em crer, imaginar o género dos super-heróis sem Kirby. Se é verdade que muitos outros géneros na banda desenhada têm os seus campeões - por hipótese, a aventura infanto-juvenil com Saint-Ogan e Hergé, o humor derisório com Kutzmann e Goscinny, a banda desenhada de continuidade com Roy Crane e Caniff, as tiras de humor existencial com Schulz, a banda desenhada de “funny animals” com Macherot e Carl Barks, a ficção científica com Alex Raymond, Frank Hampson, Moebius - a importância de Kirby parece ter um peso monumental, como já havíamos debatido brevemente a propósito do livro de Evanier, mesmo comparando àqueles criadores das maiores referências do género, como Jerry Siegel e Joe Shuster, Bob Kane e Bill Finger. A razão não é única: Kirby trabalhou ao longo de décadas com vários sucessos (do Capitão América em 1941, com Joe Simon, à invenção, com o mesmo, de todo o género dos “romance comics”, passando pela imensa reformulação do género com Stan Lee e outros artistas na Marvel do início dos anos 1960, e depois os vários trabalhos “cósmicos” na DC), foi reinventando o seu próprio estilo com todos os seus trabalhos ao ponto de inventar novas técnicas gráficas (de dinamismo, de escorço, de energia nas páginas) que se tornariam praticamente o “modelo” contra o qual os novos autores deveriam comparar as suas produções, e, outro aspecto importantíssimo explorado por Hatfield, a sua capacidade de criar ideias, personagens, conceitos, por mais absurdos que parecessem. E tornar-se-iam cada vez mais absurdos à medida que ia ganhando experiência, e se nem sempre com sucesso comercial - muitas das suas séries seriam canceladas a meio ou simplesmente abortadas - pelo menos com uma capacidade de se manterem no imaginário dos autores que viriam, os quais recorrentemente o revisitam como se se tratasse de um filão de material bruto, o qual é depois por eles burilado, se não “amansado”.
É possível que Jack Kirby seja hoje visto, por novos olhos ou olhos não-iniciados, como algo deficitários no que diz respeito a toda uma série de “exigências” da arte, mesmo no interior daqueles estilos correntes do mainstream norte-americano. É possível que a apreciação de Kirby seja feita a um nível visceral, que é herdado pelo contacto que se tem com o seu trabalho num determinado momento das nossas vidas de leitores. Esse aspecto, digamos, nostálgico, tem um papel importante, sem dúvida, e não nos desligamos dele; apesar da diferença de idade em relação a Hatfield, não nos esqueçamos que parte do contacto com estas obras mais centrais de Kirby, em Portugal, coincide com a sua chegada mediada pelas traduções brasileiras (apesar da Agência Portuguesa de Revistas também ter vastos títulos, e a obra de Kirby, noutros géneros, ter aparecido em vários títulos nacionais). No entanto, se olharmos para muita da produção de autores do seu tempo, são raros aqueles cuja energia se mantém (talvez Ditko seja o único que, no interior do género específico a que estamos a referir-nos, ombreia Kirby com a mesma intensidade, ainda que a sua energia própria se tenha diluído depois). E a consideração e a apreciação da arte de Kirby não pode desligar-se de um certo grau de entendimento do que pode compor uma obra de arte com preocupações estéticas para além das suas circunstâncias, o peso (demasiado sentido) das circunstâncias de produção que sempre enclausuraram o autor, e o momento do seu impacto. Daí se compreende a utilização de expressões que demonstram essa leitura paradoxal em relação a esta obra eléctrica, ao longo de todo o livro. Vejamos algumas: “criação delirante de mitos” (pg. 4), “Kirby não tem nada a ver com descanso” (45), “pateta [goofy] e selvagem” (59), “a qualidade predominante do desenho de Kirby: a sua qualidade incansável e comprometida com o incessante impulso narrativo” (67), “a propulsão do esboço” (153), “[um desenho] tumultuoso, quase infantil” (149), “espírito frenético de improvisação” (179), “excesso transbordante e sem fôlego de conceitos” (citação de G. Morrison, 180), “energia louca” (183)… ´
Apesar de Kirby aparentar ser uma força da natureza, como ela se pode expressar na banda desenhada, não quer dizer que não se tenha de entender claramente o campo onde ele medrou. Mas as questões das influências são tratadas de uma maneira muito bem integrada, o que demonstram a excelência do trabalho de Hatfield. Dizer “X é influenciado por Y” pode parecer por vezes uma afirmação suficiente em si mesma, como se a junção dos dois nomes explicasse o trânsito de elementos, mas Hatfield faz uma apresentação alongada, pausada e ponderada de que elementos terão sido transpostos e alterados na comunicação entre autores. É assim que a tríade Milton Caniff, Hal Foster e Alex Raymond, mas também a breve, mas fulcral, inflexão de Burne Hogarth, surge como o cadinho de forças e estilo de que o jovem Jack Kirby beberia, mas tendo aqui uma análise exímia de quais os elementos precisos que são herdados pelo novo autor, e como são por ele transformados. Sobretudo por uma razão, importantíssima, e que vincará o valor de Kirby: a sua falta de mestria ou as limitações enquanto artista, a que voltaremos. Mas o outro lado da equação também deve ser ponderado. Apesar de hoje termos em nomes como os de Bryan Hitch, John Cassaday, Alex Maleev ou outros uma nova escola estilística para os super-heróis, não deixa de ser marcante quais elementos eles ainda transportam na sua arte que derivam de gestos experimentados em primeiro lugar por Kirby. E a escrita - quer aquela altamente organizada - de Jim Kruger, Alex Ross, Kurt Busiek, ou Mark Waid - quer a alucinada - de Grant Morrison ou Warren Ellis - não pode ser imaginada sem as fundações de Jack Kirby (já é discutível se Alan Moore estaria nesse grupo, uma vez que os interesses desse escritor o lançam a autores anteriores a Kirby, mas isso entraria em conflito paradoxal igualmente com a ordem narrativa do autor inglês). Hatfield chega mesmo a escrever, “que jeito deram estes planos [blueprint] criados por Kirby” (186) aos autores que se seguiram. Em termos sumários, este aspecto encontra na seguinte frase a sua concatenação: “A influência, quando é suficientemente espalhada, esconde-se a si mesma” (pg. 4).
Uma expressão recorrente deste estudioso, nesta obra, é a de “desenho narrativo”, tratando-se de uma sua contribuição para o edifício teórico da banda desenhada. Se bem que se prenda com discussão havidas já anteriormente por outros autores (Thierry Groensteen, Andrei Molotiu, art spiegelman, etc.) e levante questões muito específicas e múltiplas que são impossíveis de tratar neste espaço, o que Hatfield pretende contrastar com essa expressão é um desenho que está menos preocupado com as questões canónicas da ilustração e da representação naturalista, subsumindo-se antes ao programa narrativo da obra em questão. Assim, esses desenhos são, “num certo sentido, uma arte que se apaga e denigre a si mesma. Há uma tensão fundamental nesses desenhos entre a própria qualidade de imagens [picture-ness] das imagens e a sua marcante função narrativa” (65), já que a arte da banda desenhada “se inclina para a máxima legibilidade e a eficácia retórica, mesmo quando evoca o expressionista e o inexplicável” (15). É possível que haja uma ligeira reificação, da parte de Hatfield, do programa narrativo, uma quase essencialização desse programa, na própria ontologia da banda desenhada, mas neste contexto em específico, faz sentido. No que diz respeito à arte de Kirby, tem menos a ver com a sua capacidade de ser anatómica e dinamicamente perfeito do que com uma entrega ao avanço dos significados que a sua obra (narrativa) pretende atingir: “o modo de tratamento que Kirby faz do movimento e da acção faz com que as suas representações icónicas das formas sempre se inclinem em direcção ao simbólico” (45); ou, nas palavras de Christopher Brayshaw citadas por Hatfield: há uma tensão em Kirby que lança a “figuração” tridimensional contra o “design” bidimensional, levando a uma feroz dialéctica (47).
Uma das maneiras de Hatfield cumprir esse estudo é através do contraste entre a maneira como Kirby representa, em companhia de Joe Simon, a transformação de Steve Rogers no Capitão América na primeiríssima aventura dessa personagem (Captain America Comics no. 1, 1941) e depois na companhia de Stan Lee, como escriba, décadas mais tarde (Captain America no. 109, 1969). Independentemente das alterações a nível narrativo/imaginativo (o professor Reinstein tornar-se-ia no professor Erskine, o que era apenas um “soro de super-soldado” passa a ser um soro mais os “vita-rays”, etc.), o importante é ver a maneira como o dinamismo da transformação é explorado e o que diz do desenvolvimento do artista: num caso temos uma maior predominância da figura e da voz do cientista, no outro há uma maior focalização no protagonista, inclusive a sua voz; os cenários desaparecem para dar lugar ao famoso “kirby krackle”, aquele enxame de círculos negros que dão conta de uma qualquer energia frenética presente nestas cenas, a composição equilibrada da prancha mais antiga, com o corpo de Rogers criando um eixo vertical, passa a ser substituído por uma maior regularidade, mas cujo interior das vinhetas passa a vibrar de energia, etc.
Essa noção de “desenho narrativo”, que será operativa em todo o livro, é feita no interior de um cuidadoso discurso académico, que se ancora em várias disciplinas e referências. A sua leitura e crítica do famoso “triângulo” de Scott McCloud sobre os estilos, e as suas relações com a realidade, o significado e o domínio da imagem é um excelente instrumento de como o rigor intelectual e académico deve ser empregue no estudo desta arte, sobretudo tendo em conta o modo como as teorias - bem-vindas como ponto de partida - de McCloud têm sido tomadas - como ponto de chegada - por toda uma série de sectores, inclusive o académico.
Um outro conceito estudado, e que tem mesmo um capítulo exclusivo, é o do “sublime tecnológico” em Kirby. Bebendo da noção do sublime tal como fundado por Burke e depois Kant, mas baseando-se sobretudo no primeiro, Hatfield vai demonstrando como o interesse de Kirby “em misturar o arcaico-oculto com o futurista-tecnológico era uma fixação assinalável” (146), algo que já é típico do género dos super-heróis (cf. Richard Reynolds, que explica que a mistura de ciência e magia leva ao seu sentido particular do maravilhoso, a que o autor deste livro acrescenta tratar-se de um “mega-género” de grande adaptabilidade, “capaz de absorver elementos díspares de outros géneros, modelos e estilos”, 161). Em Kirby, porém, o sentido de inassimilável, de aterrador, de magnificente, do Sublime, algo que de tão grandioso nos torna pequenos mas que nos exalta em vez de diminuir, algo que nos assusta porque nos encontramos em segurança, ganha uma dimensão associada à exploração de temas associadas â ficção científica, ele mesmo um género “que inclui o fantástico, o onírico, o surreal e o alegórico” (150). Kirby era muito versado no género, e procurava qualquer instrumento - mais inventivo do que ancorado em factos puros da ciência - para criar as suas histórias, primeiro em trabalhos mais classicamente desse género (Challengers of the Unknown), depois procurando misturas com outros géneros, como o de super-heróis e o novelesco (Quarteto Fantástico), depois abrindo a porta ao seu entrosamento com o mítico (as história a solo com Thor e depois os épico-cósmicos Fourth World e The Eternals). Hatfield repete que Kirby parece seguir aquele princípio de Arthur C. Clarke, de que “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinta da magia”. Apesar de se poderem apontar muitas invenções de Kirby, talvez a das Mother Boxes seja a mais marcante, uma “mistura de vida orgânica e artificial e um sentido de interdependência entre pessoa e máquina” (191), algo produzido numa altura em que essa mesma discussão ainda não fazia parte totalmente das discussões hodiernas a um nível popular.
Um aspecto estrutural e de argumentação de grande importância em Hand of Fire, e na continuidade desses contributos conceptuais, é o modo como Hatfield, afinal ele mesmo uma referência importante no estudo da banda desenhada contemporânea, devido ao seu anterior Alternative Comics: an Emerging Literature, integra a produção académica e de investigação que existe, quer a norte-americana quer a europeia (ele cita Thierry Groensteen, Benoît Peeters, Philippe Marion, Fresnault-Deruelle, Harry Morgan, etc.). Há um vívido interesse em querer contribuir para este edifício em construção, sem querer com isso imaginá-lo ainda pelas fundações. [Veja-se a entrevista ao autor, no fim deste post.]
O trânsito pelas várias disciplinas é, já o vimos, indispensável no estudo da banda desenhada. Por isso, parte da argumentação de Hatfield é dedicada aos processos de produção, comercialização, venda, circulação, distribuição do que faz o campo social onde Kirby trabalhava. Em vez de repetir fórmulas gastas, vazias e francamente falsas de Kirby ser um “original”, “criar de raiz isto ou aquilo”, vai demonstrando que tipo e passos pequenos foram sendo dados, quer criativa quer social quer ainda economicamente nesse mesmo campo, para irmos descobrindo a real valência do contributo de Kirby. Por exemplo, a convoluta história da companhia Marvel (ou Timely-Atlas-Marvel) é um enigma que ainda não foi totalmente destrinçado pela história destes aspectos comerciais, económicos e institucionais da banda desenhada comercial norte-americana, mas Charles Hatfield apresenta um relato suficientemente claro ou organizado para criar o aspecto de fundo importante: esta indústria cultural era tudo menos clara, e a herança do grande fundador Martin Goodman é a de um negócio com contornos provavelmente conducentes a ilegalidades. De certa forma, é o que Alan Moore explica numa sua citação famosa em que equipara os barões desta indústria com a Máfia. A importância da maneira como as próprias revistas eram comercializadas, algo de muito, muito diverso do que se faz hoje, é também um factor que se deve ter em conta na leitura da obra de Kirby, a qual, muito francamente, foi ainda feita numa altura em que não se imaginava a sua sobrevivência comercial alargada. Ler hoje Kirby nos volumes de capa dura da Marvel e DC não é, de maneira nenhuma, o mesmo processo cognitivo que foi a sua exposição revista a revista, mês a mês, na sua época, e Hatfield incorpora esse factor nas suas leituras.
Hatfield não se coíbe, portanto, de questões extremamente complicadas, algumas das quais revelando da semiótica, outras da estética, outras ainda dizendo respeito à complicadíssima novela dos “ele disse que” do conflito Kirby/Marvel ou Kirby/Lee. Mas como escreve sobre algumas dessas facetas, “Este problema é básico mas mesmo assim insolúvel [intractable]” (42). Por outras palavras, existem questões que são algo ridículas de colocar, mas mais ridículo ainda seria não as colocar e querer passar por elas em silêncio. Por vezes, tentar pensar, mesmo que não se chegue a conclusão nenhuma, é uma vitória imensa comparada ao não querer pensar sequer. A relação com Stan Lee é então também abordada. O mito - veiculado nas próprias histórias dos anos 1960 da Marvel e depois por Lee em todas as plataformas possíveis - de que havia uma colaboração amigável e produtiva e equilibrada entre Lee e os seus artistas (Kirby e Ditko na linha da frente, mas muitos outros envolvidos não podem ser esquecidos) é precisamente isso: um mito. No entanto, a forma como os defensores de Kirby rapidamente correm para o outro lado da equação, no sentido de demonizar totalmente Lee pela forma como a Marvel se iria comportar em relação a Kirby, não é de todo um posicionamento criticamente aceitável. A “verdade”, ainda que sendo metafisicamente improvável de ser capturada na suposta totalidade, pode ser aproximada em termos históricos, graças à documentação, à investigação e ao exercício da inteligência. Hatfield emprega tudo isso para chegar a uma ideia mais equilibrada, mesmo que admita que nunca será possível ter uma ideia exacta e fechada de como as coisas se processavam. Afinal, esta era uma indústria que bebia de uma colaboração constante entre os empregados de uma companhia, mas em que esta acaba por sempre ter a última palavra - e, isto é importante, legalmente correcta. O facto das práticas se terem vindo a alterar não pode legislar retroactivamente.
O ponto mais importante, nesta parte do debate, é que Kirby foi um agente crucial na escrita de muitas das personagens e histórias da Marvel. É para isso que é empregue o conceito do “desenho narrativo” de Hatfield, para demonstrar que Kirby escrevia desenhando: “era ele quem tomava as decisões centrais sobre como é que a história deveria ser estruturada e a página composta, decisões que serviriam para ritmar e encenar a acção” (69). Este aspecto da importância de Kirby na criação - lançamento de ideias, desenvolvimento de um conceito, estruturação da forma e do meio que veiculará esse mesmo conceito, etc., e não apenas o alinhavar de matéria verbal - das mais icónicas personagens da Marvel ganha uma importância suplementar no seu papel em relação ao Homem-Aranha. Teve ou não responsabilidades no que viria a tornar-se essa personagem? Terá sido Lee o único somente a criá-la? E que papel teve Ditko em tudo isto? Bom, eis uma discussão que tão cedo não terminará, e para a qual Hatfield não deseja sequer apresentar solução. O mais importante não é alimentar a controvérsia que apenas leva a posições extremas, mas a compreender os mecanismos criativos desta arte em particular, e neste campo sócio-económico em particular (esta indústria específica), para deles fazer emergir o mais relevante para a discussão.
“Porque é que é tão difícil entender quem fez o quê na Marvel? A contribuição de Kirby para a empresa foi ocultada em parte pela própria forma como trabalhava. O chamado ‘método Marvel’ de produção tornava difícil determinar o contributo individual nos trabalhos finalizados, criando uma situação em que tanto o argumentista [scripter] (na maioria parte das vezes, nos primeiros tempos, [Stan] Lee), e o desenhador [penciller], ou artista da composição [breakdowns], poderiam reivindicar uma parte de leão do crédito dos conceitos basilares e do desenvolvimento narrativo página a página das histórias” (90); “Poderíamos dizer que, discutivelmente, não existe nenhum autor singular da Marvel Comics, ou um arquitecto singular do Universo Marvel” (94). Onde reside a importância então? “Em suma, a Marvel, sob Kirby, introduziu uma abordagem épica no género dos super-heróis que era ‘mítica’ quer na escala quer nas suas complicações de panteão” (138), “transformando essa banda desenhada de super-heróis formulaica muito mais permeável à complexidade emocional e muito mais ampla em escopo” (139).
E neste ponto preciso, a discussão sobre o modo como Kirby contribui de uma forma muito especial para a emergência da política da “continuidade” é imperativo. Em vez de termos cada comic book com uma história autónoma mais ou menos desligada das anteriores, a partir de certo momento da história dessa indústria, cada companhia foi começando a tecer uma rede densa de inter-referências, em que as várias personagens passam a habitar um mesmo espaço ficcional e cujas acções terão consequências de título para título e na vida futura delas mesmas. Ora, se essa situação anterior, de autonomia quase total, era o ponto de partida teórico que permitiu a Umberto Eco escrever o seu seminal ensaio “O Mito do Superhomem”, de 1963 (ainda hoje importante, mas que não pode ser lido com aplicabilidade total hoje), isso alterar-se-ia profundamente com a emergência desse conceito, numa primeira fase - com grande responsabilidade de Kirby - com frutos positivos em termos produtivos, criativos e até de retorno económico - mas depois elaborando um espartilho cada vez maior e obsessivo que ainda hoje faz sentir as suas consequências (os múltiplos “eventos”, os “crossovers” abusivos, a complicadíssima trama de referências impenetrável para os não-iniciados; mesmo com o relançamento recente da DC a mesma complicação mantém-se). Ora Hatfield demonstra como, se essa continuidade era uma benesse criativa para Kirby ao início, viria a tornar-se a razão da sua “queda” a partir dos anos 1970 (sobretudo o retorno a Capitão América, e Black Panther). E mais, demonstrando-se assim como “o género dos super-heróis não era apenas uma rede textual mas igualmente social” (142). No seu estudo mais detalhado de The Fourth World, Hatfield contrasta aquilo que pareciam ser os desejos de Kirby (que nunca na sua carreira foi de “grandes planos” mas de improvisos circunstanciais, cujo fim era trabalhar ao máximo para poder providenciar a família com dinheiro, e não cair na miséria na qual nasceu) e a realidade do que conseguir fazer.
A comparação com o que seria mais tarde conta corrente, mas nas mãos de um batalhão de escritores e editores, torna os seus esforços criativos ainda mais marcantes. “Projectos como esses [o Shadowline de Archie Goodwin, o Ultraverse da Malibu, o New Universe da Marvel em 1986, o Dakota Universe da Milestone, o universo dos Comic’s Greatest World da Dark Horse, etc.], quer criados por um só autor (…) ou por uma equipa (…), exigiam os esforços concertados de grandes grupos de editores e criadores para os instituírem no mercado, em contraste com o voo solitário de Kirby por todos os lados”; “a diferença, claro, está no facto de que aquilo que Kirby havia originalmente imaginado mas não conseguido (a oportunidade de trabalhar e dirigir outros criadores) tornar-se-ia, mais tarde, normativo” (185).
A obra de Kirby tem conhecido um muito recente esforço de reedição, de quase todos os géneros em que trabalhou, a que se acrescenta a contínua da Jack Kirby Collector, na qual Hatfield colabora activamente, um pouco mais nostálgica e encomiástica, mas que encerra em si pequenos contributos decisivos. Não se tratando nem de biografia nem de análise exaustiva da obra de Kirby, Hand of Fire é um volume importante na maneira como incorpora os vários instrumentos e disciplinas disponíveis para os comics studies, e seguramente que tanto se tornará um textbook pela sua matéria central como um modelo a seguir em relação a outros autores ou contextos.
Como de costume na nossa abordagem a livros desta natureza, temos de agradecer a Charles Hatfield, por ter dedicado parte do seu tempo a responder a um conjunto de perguntas, numa entrevista que podem ler, em português, aqui.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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