Durante muitos anos era esse o panorama usual em toda a indústria; apesar de ser algo cozinhado no mainstream influenciaria igualmente a cena “alternativa”, herdeiros imediatos do underground dos anos 1960 mas procurando uma integração mais suave na economia de mercado norte-americana e, consequentemente, global. Editoras como a Fantagraphics, a Drawn & Quarterly, a Oni Press ou a Top Shelf, cultoras de uma banda desenhada mais diversificada em termos de géneros, políticas de edição e até formatos em comparação com a Marvel e a DC, seguiam esse método como podiam, com as suas publicações em formato de comic book. Editoras independentes mas inclinadas a seguirem os passos dos géneros mais tradicionais, como a Dark Horse, a Image, a Caliber ou a Avatar Press, como é natural, não tinham outro método senão se encaixarem nesse modelo. Esta é uma das razões pelas quais faz sentido distinguir-se entre banda desenhada “independente” e “alternativa”, divisão conceptual muito clara nos Estados Unidos, ainda que permita largas discussões de negociação entre este e aquele título, este e aquele autor, etc. De uma forma necessária, drástica e se calhar abusivamente de encurtar a história, podemos dizer que com a emergência cada vez mais maciça dos formatos em livro (graphic novels) e a sua cada vez mais sentida integração nos circuitos de legitimação cultural nos Estados Unidos (de discussões académicas a vendas em livrarias generalistas, de prémios literários a outras reapropriações e remediações), houve um consequente ofuscamento desse outro formato. Quer dizer, quanto mais a graphic novel (gn) parecia ser um formato legitimador – mesmo quando não são mais do que a compilação de material anteriormente publicado em comic books, isto é, trade paperbacks (tpb), sejam mainstream ou não – mais o comic book em si se tornava um resquício de uma cultura e uma prática cultural em retraimento. Esta situação tem sido drástica nos últimos dez anos e é até discutível se é a Marvel e a DC que constituem hoje o mainstream, se se considerar que as suas actividades editoriais devem rondar uns 20 a 25% dos lucros, em contraste com tudo o que se relaciona com os filmes, e que globalmente as vendas das gn/tpb ultrapassa de longe a dos comic books, quer em valor quer sobretudo em termos sociais. As comparações são sempre perigosas, pois cada caso tem especificidades: se The Walking Dead vende cerca de 30 000 cópias, Fun Home vende mais de 60 000, mas a primeira é uma série com 16+1 volumes até à data, e a segunda um só livro sem continuação. Mas se comprarmos com as 100 000 cópias de um só volume, a meio da série, de Naruto, e ainda considerarmos estarmos a falar da versão inglesa que vende sobretudo domesticamente – ao passo que aqueles outros títulos também são vendidos fora dos Estados Unidos -, perceberemos que a banda desenhada japonesa tem uma vantagem de mediatização insuperável por qualquer outro sector do meio…
Tentando regressar à nossa questão, é curioso que as nossas standing orders, ainda em vigor, sejam de títulos que entretanto desapareceram ou se alteraram drasticamente: Acme Novelty Library, Palookaville (que passou a ser um livro), Underwater, Artbabe, The Biologic Show, Blood Orange, Bête Noire (mas também Madman). É verdade que Adrian Tomine já nos havia habituado a interrupções drásticas, mas desde 2007 que a sua série Optic Nerve não chegava a um novo número…
É portanto um sentimento estranho receber mais um Optic Nerve em condições que já não faziam parte da prática cultural corrente, em relação a um autor alternativo. Tomine está consciente disso, como se depreende no que se publica neste número.
As duas histórias centrais basicamente retomam alguns dos temas caros a Tomine, sobretudo a segunda história, sobre uma jovem mulher que é confundida com uma estrela pornográfica e todas as suas relações, amorosas ou de amizade, se pautam por esse mal-entendido, colocando-a à margem de uma “integração” social total, tal como muitos dos jovens personagens deste autor, desde 32 Stories. A primeira história, porém, é sobre um homem mais velho, casado e com uma filha – mas incompreendido -, o que poderá ser um eco também da maturidade do autor e da sua própria vida pessoal que passou por essas fases (e é alvo de atenção em Impending Marriage e, enquanto cena visual, da curta história final deste Optic Nerve). Interessar-nos-á menos analisar as questões diegéticas de cada uma destas histórias do que avançar com uma possibilidade de interpretação, que tem tanto de generalista como de óbvia, na verdade.
"Amber Sweet", como se disse, é uma história em que uma jovem universitária, nunca nomeada, é confundida com uma estrela porno da net, e quando o descobre, não sabe muito bem como se defender disso, com as amigas a gozarem-na sobre o quão difícil lhe é ser confundida com uma “estrela famosa da pornografia” (isto é, que se encaixa nos padrões expectáveis da beleza feminina, e até mais do que isso, da sua disponibilidade sexual), e com os namorados ora não aguentando a pressão da comparação ora possivelmente fantasiando estarem com Amber e não com a rapariga. Esta história coaduna-se mais com os ambientes habituais de Tomine e até a forma como é contada – em retrospectiva, numa narração da protagonista a um possível novo namorado, e com um grande salto no tempo revelando uma mudança radical de visual e de vida e, até, o felizardo encontro casual com a tal estrela – recorda-nos as primeiras histórias curtas presentes na Optic Nerve na sua vida através da D&Q.
No entanto, pensamos ser claro onde se chegará: quer uma quer a outra história parecem ser espelhos levantados em relação ao próprio autor em relação a este mesmo projecto. Afinal, temos num caso um artista que insiste numa forma de arte relativamente inaudita, que mistura duas disciplinas reconhecidas numa terceira forma bastarda e não particularmente apreciada, e que encontra obstáculos financeiros, estéticos, legais e até conceptuais a cada passo. Apesar de insistir, como Tomine insiste no comic book, é possível que esteja votado ao fracasso. O outro caso é a do engano de identidades, quer dizer, pensar que uma pessoa é outra e, mesmo quando se sabe que não o é, haver uma qualquer expectativa em que esta seja como a outra (uma das razões pelas quais as pessoas, em geral, detestam ser comparadas com outra – “és tão parecido com x!” – por julgarmos sermos irrepetíveis ou, mesmo que fisicamente haja parecenças, haverá decerto diferenças abissais na personalidade… ou não?). Ora, Tomine é de facto colega de Brown, de Seth, de Ware, de Clowes, etc., mas não é eles, e a opção de trabalho daqueles autores não tem necessariamente de ser a dele: a escolha pelo comic book revela isso mesmo, e a incompreensão que se segue parece ser explorada nesta personagem feminina.
É possível, claro está, que tudo isto não passe de biografismo barato e colações demasiado fáceis.
No entanto, ainda é curioso notar como em "Hortisculpture" Tomine segue uma estrutura narrativa, estrutural e até visual algo similar às estratégias poligráficas de um Daniel Clowes: a maior parte das páginas são compostas por conjuntos de quatro vinhetas alinhadas 2 a 2, como se se tratassem de tiras diárias ou gags, e ao fim de seis destas hipotéticas “tiras” segue-se uma página completa, a cores, de uma grelha de 3 x 4; o próprio título da “tira” é diferenciado nas menores e na página completa, completando assim a imitação de uma fictícia tira para um jornal diário, e a complementar Sunday page. Alguns dos pormenores de modas, carros e até de ambiente parecem querer recordar o final dos anos 1970 e início dos 1980, trazendo mais uma camada de distanciamento ao tempo presente, oferecendo outra dimensão interpretativa. E finalmente o próprio desenho de Tomine parece aqui mais solto, mais cartoony, ora próximo de Clowes, mas tendo algumas personagens mais próximas de um Huizenga, ou um Porcellino, ou até um Paul Hornschemeier, quer dizer, uma família relativamente alargada e familiar de artistas que gostam de trabalhar com alguma flutuação temática e estilística. Mesmo o uso de onomatopeias, de expressões mais melodramáticas e situações cómicas – que por sua vez poderiam levar à comparação com tiras mais clássicas dos anos 1970 (Mort Walker, Chic Young) - afastam este trabalho da veia mais comum de Tomine, usualmente mais lúgubres, melancólica e individualista. No entanto, se aquela leitura avançada acima funcionar, mesmo esta leveza – e até o final feliz – acaba subsumida na melancolia voltada para o próprio autor.
Sem comentários:
Enviar um comentário