É inevitável que um qualquer livro venha com um “horizonte de expectativas” agarrado antes mesmo de o abrirmos, antes de o lermos, naquele espaço entre o seu folhear rápido e irreflectido, a consulta dos dados paratextuais do título, autor e editora, e a sua efectiva, pausada e consentânea leitura. É essa amálgama de expectativas, sensações e conceitos que forma a inclusão da leitura destes dois livros num espaço como este, mas atravessando as dúvidas de sempre: tratar-se-á de um livro passível de ser lido enquanto banda desenhada? E considerando essa como uma massa de práticas artísticas ou enquanto espaço social? Ou trata-se antes de um livro de artista, mescla de catálogo de desenhos expostos e objecto singular? Ou antes um delírio autoral da ilustradora, um exercício de des/articulação dos desejos, fora de um encaminhamento regrado?
Seja como for, os dois pequenos volumes devem ser lidos de forma complementar, circular e holística: são um todo, ainda que permitam entradas de todas as maneiras. Compõem uma unidade em termos estilísticos, temáticos e até infra-narrativos.
O primeiro volume (nossa opção), de capa vermelha, apresenta um homem na capa, que é, poderemos considerar, o seu protagonista. “Já Natal” ou “Já é Natal”, reza o seu título: a consideração da data constata a sua chegada, mas não há forma de perceber se é alívio ou desilusão (“Já!” ou “Já?”). O segundo, de capa negra, mostra uma mulher, protagonista desse segundo volume. “Em breve o Verão”, e novamente a ambivalência do tom: cansaço ou esperança?
A leitura dos livros, com mais atenção, revelará que o homem é menos protagonista do seu volume do que a mulher do dela. Não existindo matéria verbal que nos ajude a construir um enquadramento narrativo nítido, os indícios visuais levam-nos a imaginar que se trata de um casal. Ela vai surgindo aqui e ali ao lado do homem no “Já Natal”, mas ela parece isolada consigo mesma em “Em breve o Verão”.
Cada livro é constituído por o que parecem ser cenas soltas, apontamentos diarísticos, gráficos, projeccionais, de cenas desirmanadas mas que gravitam em torno destas personagens e das suas preocupações mais ou menos concentradas. Um segundo nível de atenção permitirá deslindar que haverá tantas sequências como interrupções das mesmas: é possível coordenar cenas, ora em unidades de páginas duplas, ora em cenas comunicantes, mais ou menos alargadas ao longo de páginas, ora apresentadas em cenas singulares, mas de alguma forma modulares e que vão fazendo “crescer um sentido” à medida que se lêem estas páginas… As variações e associações gráficas, que atravessam ambos os tomos, criam a ideia de um fio vermelho que deve ser perseguido, atinja-se ou não uma conclusão, uma decisão.
Há matéria verbal. Mas se por vezes parece inconsequente, por outras parece enamorar-se de si mesma e cair graças à gravidade da sua presença: listas, números sequentes, contas, discursos que irrompem do nada e continuam para além da legibilidade, mas não parecem oferecer ancoramento nenhum, e até páginas de texto invertido, confundindo ainda mais as suas funções - expectáveis - de esclarecimento. Além disso, no seu interior, a autora dá primazia a jogos de palavras, rimas, homofonias, variações, espécies de lenga-lengas e de destrava-línguas ou então fórmulas feitas e esvaziadas (como os próprios títulos), que põem em causa, num grau adicional, a comunicabilidade esperada da língua. “Não é por aí”, parecem dizer…Mas o ritmo é insistente e faz compreender que há uma musicalidade que deve ser fruída e que ajuda à construção dos sentidos emocionais de ambos os volumes.
Que exploram estes dois livros? Um universo doméstico, em grandes linhas, onde o homem se preocupa com questões de carreira, progressão, felicidade material, bem-estar social, e os outros, e a mulher ronda em torno dos afazeres em casa, do cuidado de si e dos outros, da imagem. Se há domesticidade, ela parece expressar-se pelo controlo que a mulher deseja exercer, uma certa demonização das tarefas, no seu sentido de providência e tutela. Um movimento por dentro do espaço do lar, até criar linhas de força que se estendem para o seu exterior. Não é por acaso que a autora recorra a uma imagem da mulher com cabeça ou tronco substituídos por uma casa, recordando a série de La femme-maison de Louise Bourgeois, variação por sua vez da cena de Alice crescendo no interior de uma casa: noções de espaço interior/exterior, impenetrabilidade e desejo de fuga, prisão societal versus liberdade expansiva… Em déjà noël o homem surge sempre como figura protectora, por vezes muito maior que a mulher, como se se tratasse de uma imagem antiga e hierática. Nesse sentido, poderíamos ler o segundo volume como emancipação? Há uma narrativa clara de um para outro livro?
Os melodramas existem, mesmo que fugidios, e são feitos dessa matéria de tensões domésticas. Há “une histoire”, quase apagada. Entre um “já” e um “em breve”, talvez estes livros sejam uma tentativa de fazer o retrato de uma coisa, também ela fugidia, mas perseguida pelas duas personagens, encontrada e logo perdida, ou presente precisamente porque fugaz: uma espécie de felicidade, “uma felicidade banal. Parar de acreditar que é a felicidade ideal no interior do mundo onde estamos destinados a nascer e a morrer, sem um além”.
Nota: agradecimentos a Isabel Baraona, pelo empréstimo dos livros.
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