Na continuidade da tendência da recuperação da memória da banda desenhada, tentada por várias frentes, poderíamos dizer encontrarmos três grandes instrumentos: o contextualizador, o recuperador-arquivista e o da precisão gráfica. Estes são descritivos gerais, não uma identificação exacta e sempre aplicável. O contextualizador verifica-se em todas aquelas edições em que se apresenta um qualquer ensaio alargado que apresente os contextos sócio-económicos em que dada obra emergiu e se desenvolveu, procurando a sua total inscrição crítica no tempo para compreender os seus contornos estéticos e políticos: estando todos eles necessariamente associados à reedição/republicação de obras consideradas históricas, podemos verificá-los, por exemplo, nos textos que têm acompanhado a edição integral de Krazy Kat, pela Fantagraphics. O recuperador-arquivista estará mais relacionado com a arqueologia de trabalhos menos celebrados, ou até mesmo esquecidos ou secundários face a uma determinada perspectiva histórica, e que se preocupa mais no retorno à circulação desses trabalhos do que a uma procura quer pela exaustividade ou sua integração: sendo raro que isso ocorra desligado dos outros instrumentos, ainda assim poderíamos dizer que é o que ocorre com as colecções “Marvel Masterworks” e “Archive” da DC Comics, ou ainda Art Out of Time, Art In Time e Forgotten Fantasy. Finalmente, o da precisão gráfica ocorre em edições que procuram fazer emergir a materialidade das imagens acima de tudo, sendo relativamente secundária quer a exaustividade quer a integração histórica. É o caso de alguns dos casos de livros e projectos que envolvem Chipp Kidd ou as edições de Manuel Caldas (inclusive de Krazy Kat), se bem que cada um deles siga vias muito diferentes quer em termos de packaging e design quer em termos da atitude para com os “textos visuais” originais.
O que importa, porém, e repetimos esta ideia, é que vivemos num momento em que temos mais acesso como nunca à história da banda desenhada em edições acessíveis e disponíveis, apesar das ausências, apesar das falhas, apesar dos preços. Esta edição de Dot & Dash é precisamente atenta a um filão que, por vezes, poderá parecer secundário e votado ao esquecimento. Como é sabido, as páginas de Domingo da banda desenhada de jornais nos Estados Unidos, na sua época gloriosa - em termos materialistas económicos e de circulação - dos anos 1910-1930, tinham por vezes uma parte superior (ou inferior) onde se desenvolvia uma história secundária, pelo mesmo autor da obra principal dessa página. Podia ser um cartoon isolado, uma tira, com ou sem relação com a história principal (a história da obra de Herriman mostra um caso paradigmático de passagem). E era mais “descartável” do que a própria descartabilidade natural das páginas de banda desenhada da época, uma vez que alguns dos jornais que contratavam a tira principal poderia dispensar esta “topper”. Recordemo-nos uma vez mais que os autores destas eras não estavam a trabalhar para uma qualquer posteridade, mas uma fama imediata, que poderia ter frutos de mais encomendas ou presença em mais jornais, mas não equivaleria à mesma fama prometida pelas letras e pelas artes, que se sabia perene no tempo (à partida, em termos de campo disciplinar). Logo, torna-se ainda mais magnífica a glória criadas nessas mesmas páginas. E estas tiras secundárias estariam assim livres de quaisquer espartilhos, e poderia perseguir linhas de força bem diferenciadoras.
Esta edição oblonga tenta tirar o melhor partido do corpus integral da pequena obra de Sterrett, ele mesmo autor celebrado por outras vias (recordemo-nos a edição abortada da Kitchen Sink, da mais recente da IDW, e a sua “entrada” em vários balanços canonizadores), incorporando toda a sua matéria: o momento em que se intitulava Damon and Pythias, com um cão e um gato (uns seis meses, de Fevereiro a Setembro de 1926, o tempo em que manteve as mesmas personagens mas mudara de título (até Fevereiro de 1927) e depois a sua fase final, mais alargada (até Junho de 1928). Algumas das tiras são precisamente uma tira (quase sempre com cinco vinhetas, de larguras variáveis), mas a esmagadora de duas. Assim, o arranjo feito por Caldas é justo e torna o livro “navegável”. Acrescentam-se ainda alguns materiais suplementares, como páginas de Polly and Her Pals em que entram estas personagens. Esta edição é acompanhada ainda de uma introdução de Domingos Isabelinho, que apresenta uma invejável capacidade de, a um só tempo, síntese e concentração do fulcro que esta obrinha representa. Nela estão as razões que tornam este novo livro do projecto editorial de Manuel Caldas um gesto daquela “recuperação” indicada acima, tecendo de uma forma relativamente equilibrada os instrumentos contextualizador, recuperador-arquivista e da precisão gráfica.
Aquela passagem entre os protagonistas cão-gato para dupla de cães é abrupta, tornada mais vincada ainda nesta publicação, por sobreposição da tira de 6 de Fevereiro de 1927, mostrando a última história com a dupla cão-gato, ambos adoentados, e a de 13 do mesmo mês, já com os dois cachorrinhos. Mais significativo ainda é o facto de que a doença do dia 6 atinge primeiro o cão, e depois é o gato que a sente… é como se atravessasse uma morte e transformação (numa referência despropositada, mas que não conseguimos evitar, faz recordar o modo como a banda The Residents incorporou a perda/“morte” de uma das máscaras-olho originais transformando-a numa caveira).
Domingos Isabelinho acentua a importância que os jogos metareferenciais assumem nesta tira (também presentes em Polly, mas num grau menor, mais subsumido ao género): são vários os trocadilhos visuais entre linhas pretas e ausência de espaço, as manchas de tinta da esfera autora com as da esfera da referencialidade na ficção, já para não falar dos inúmeros jogos de sombras, reflexos, superfícies transparentes, ilusões ópticas ou de perspectiva, confrontos de observação entre personagens antagónicas, ou em que uma rápida distracção, que implica o não ver, leva a surpresas. Isto também tem implicações na própria apreciação dos desenhos em si: veja-se a casa isolada na noite nevada (27 de Fevereiro de 1927), pormenor da qual o editor escolheu para a construção da capa, em que o céu e a fachada não-visível da casa se confundem no negro da tinta.
Por exemplo, é nessa óptica que se torna producente ler a tira de 10 de Abril de 1927 como vendo o gato interveniente como o “actor gráfico” preterido (“morto”). É claro que, na economia narrativa destas tiras, há toda uma série de recorrências que nos levam a entender que Sterrett optava pela circunstancialidade do seu trabalho para repetir fórmulas (as bombinhas a explodir no 4 de Julho, as cenas associadas ao Natal, os primeiros sinais de Primavera, a “caça” a uma criatura que, juntando-se ao progenitor, se torna a ameaça, etc.). Não estando tão próximas da sensibilidade aparentemente simples, mas no fundo sofisticada, do tema-e-variação de um George Herriman, ou até de algum Charles Schulz, Isabelinho é muito preciso quando indica que estas tiras não só permitem a Sterrett “a oportunidade de se exprimir livremente”, isto é, fora das “convenções narrativas” da sua obra “principal” - que pouco mais é uma variação graficamente opulenta das novelas familiares burguesas também presentes em Bringing Up Father, de McManus (iniciada em 1913), talvez o apogeu desse género - mas também atingir uma “poética da simplicidade”, transmitida pela capacidade que estes dois animais têm de apreciar coisas aparentemente inócuas: a queda da neve, o calor da fogueira, as tropelias dos animais.
Dot e Dash não são muito diferentes de muitas outras personagens, humanas ou antropomorfizadas, ao longo da história da banda desenhada, acompanhadas de textos jocosos ou em pantomima, sendo a “travessura” a sua matéria principal narrativa (um território larguíssimo, de Max und Moritz a Calvin & Hobbes). Mas é um facto que algumas das histórias parecem suspender a progressão temporal e de acção, preferindo antes a análise - por vezes através da decomposição gráfica (em que as "emanata" ganham como que uma cidadania idêntica aos objectos fictícios) - da stasis de uma sensação. De regresso às preocupações de Isabelinho, integradas nas de Caldas, ficamos, com este livro em mãos, com mais um elemento para uma história, senão mesmo uma perspectiva, alternativa da banda desenhada.
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