Quando se fala em arte interactiva, pensa-se as mais das vezes em obras de arte que empregam uma ou outra estrutura electrónica que permite a manipulação da parte do espectador de alguma das facetas visíveis, audíveis ou sensoriais dessa peça. Mas tomando em conta que a etimologia dessa palavra muito recente significa tão-somente “agir uma coisa sobre a outra”, deveria ser mais do que óbvio que toda a arte age sobre o seu espectador, acção cujas valências e consequências são multiformes e infinitas. Não é preciso tocar botões ou accionar feixes de infravermelhos: ler um poema, assistir a uma peça teatral, ver um filme, escutar um concerto pode alterar-nos. Mas há muitos graus dessa forma como a arte nos toca. Abandonemos porém as altas esferas do transporte sublime e transfigurador e vejamos outra forma das artes nos “tocarem”.
Não é propósito deste post discutir - nem teríamos capacidade para tal - se a pornografia pode ser vista em algumas, ou todas, circunstâncias como arte. Nem nos interessará, para já, as suas implicações sociais, culturais e políticas. Mas não haverá dúvidas de que todas as formas de arte (a pintura, o desenho, a fotografia, o cinema e até a música) podem ser empregues enquanto meios, veículos, para obras cujos conteúdos são pornográficos, isto é, com elementos que produzem uma interacção muito particular nos seus leitores, que poderá ir desde um afluxo sanguíneo a zonas particulares, aceleração dos ciclos cardíacos e de respiração, secura nuns lados do corpo e humidade noutras. Evitemos a armadilha do “erótico” nestes casos… Falamos de hardcore, 1º escalão, foco centralizado e planos aproximados.
A banda desenhada não é alheia à pornografia, como saberão os leitores das Tijuana Bibles, e de tantos nomes modernos. A interactividade permitida pela leitura desses livros é bem notável. A Requin Marteaux abriu uma nova colecção de banda desenhada pornográfica - com vários graus de permissividade e satisfação -, intitulada com o trocadilho BD Cul, utilizando aspectos paratextuais quer reminiscentes de livrinhos de banda desenhada barata, humorística e pornográfica (quando não ambas ao mesmo tempo) quer de livros pornográficos (de fotos ou texto). O seu formato de bolso, possível de ler com uma mão apenas, quer para o leitor masculino quer para o feminino (se bem que os temas nos pareçam ser mais dirigidos a um público masculino), apenas o confirma.
Estes livros, portanto, devido aos “sinais exteriores de interactividade” que podem proporcionar, não devem ser lidos em público com peças de roupa leves…
Teddy Beat. Morgan Navarro.
A personagem de um urso antropomórfico adolescente, que recordará uma longa tradição da banda desenhada infanto-juvenil europeia e norte-americana, garridamente colorida, faz parte do instrumentário gráfico habitual deste autor. Os seus livros, alguns dos quais dirigidos a um público mais jovem, por vezes mesmo infantil, confirmam o seu território, mas já havia surgido nas páginas da Ferraille Illustré uma “versão”, digamos assim, da mesma veia mas desviada para conteúdos adultos. Navarro, quer nessa atitude quer mesmo no aspecto visual, recorda-nos Mattioli, sobretudo pelo seu Squeak the Mouse (as secções triple-x, não as gore). Ainda que repitamos a ideia de que não existirá forma livre de conteúdo nem conteúdo que não seja transmitido por uma forma, e a sua divisão seja apenas um exercício analítico de abstracção, é quando nos confrontamos com um “hábito” - de encontrarmos certas “formas” empregues em certos “conteúdos” - transformado que percebemos como poderá funcionar a ironia, o desvio, a paródia, etc. E Navarro, quando cria pequenos contos pornográficos com estas suas criaturas, trilha um caminho que nada tem a ver com os mais costumeiros “porno”. Há uma dimensão de humor, que tampouco é algo descurado na história da pornografia, desde Everready Horton a Garganta Funda.
É difícil não ler estas histórias de Teddy Beat como as milhentas fantasias que se desenrolam na mente adolescente masculina, em que literalmente se espera que tropecemos em ocasiões que nos permitam experiências explosivas e perigosas, mas não só de onde tiraremos um prazer enorme como demonstraremos igualmente as capacidades de reciprocidade. O jovem Teddy, artista de banda desenhada adolescente e skater, encontra-se em várias situações nas quais se lhe torna possível - com uma à-vontade desconcertante mas próprio do universo pornográfico - fazer sexo com uma miríade de raparigas. Ainda que se obedeçam aqui às distribuições habituais de sexos, iniciativa e expectativas sociais, não deixa de ser divertido ver que as “mulheres” não são apenas animais antropomorfizados (coelhas, porcas, cadelas, ursas, uh, pássaras), mas também diabas, bonecas de neve, mulheres-chupa-chupa, feitas de tijolo ou areia, etc. De certa forma, poderíamos imaginar que o que está em curso é a própria imaginação do jovem Teddy, capaz de sexualizar seja o que for na sua sede de fantasia masturbatória.
Não há muito a dizer das estruturas de banda desenhada, uma vez que cada conto pequeno é relativamente linear, simples e directo. A exploração que estas literais bandes dessinées desejam é a da colorida e desabrida mente - e acção - do jovem Teddy. E, eventualmente, o retorno dos seus leitores, típicos cultores de uma ironia pós-moderna, consciente da história da banda desenhada, dos seus instrumentos, géneros, modos de distribuição, etc., a um momento no seu passado, correspondendo ele ou não a uma realidade.
Les Melons de la Colère. Bastien Vivès.
Não estamos seguros se este livro, muito diferente em forma e espírito do de Navarro, foi publicado antes ou depois de La Famille, mas é certo que a sua produção é contemporânea pois partilham ambos a mesma “anedota” de partida: uma adolescente, Magalie, com “protuberâncias mamilares deveras excitantes” (citamos Zappa) é impedida pelo pai de fazer uma operação médica de redução. Isso prende-se a uma crença primitivista do pai, que coloca a sua família num cenário idílico e rural, com apenas alguns rudimentos permitidos pela tecnologia (o tractor é a única excepção). A capa e o título remetem a um aparente melodrama na paisagem da Casa na Pradaria…
Magalie, porém, acaba por adoecer e é examinada por um médico. E depois por um especialista. E outro, e outro. Cada um deles, porém, abusa sexualmente da moça, que é ingénua ao ponto de não se aperceber que o que fazem não são exames médicos… A exploração pornográfica de todo o livro, na sua esmagadora maioria, são as cenas em que Magalie é violentada pelos médicos. Estamos em crer que, pela maneira como o autor coloca essas imagens disponíveis ao leitor - que é sempre cúmplice nos crimes perpetrados no livro, uma vez que é no seio dessa violência que encontrará (eventualmente) a fonte do seu próprio prazer -, elas pretendem pôr em causa o suporto “mecanicismo” da pornografia: as imagens são muitas vezes isoladas em vinhetas de página inteira, com um ligeiro tratamento de distribuição das gradações de cinzento, dos brancos e negros, diferente do habitual, sem qualquer tipo de texto. Isola-se assim o crime.
Além disso, num outro tipo de desvio da banalidade sexual deste tipo de produções, e sem que se procure fetichizar o incesto, descobrimos que o jovem irmão Paul é munido de um órgão sexual descomunal, e que nos faz recordar uma série pornográfica portuguesa intitulada Pedrinho (de que falámos a propósito d‘O Pénis Assassino), que partia do mesmo pressuposto, mas apresentando conteúdos que dariam hoje ordem de prisão ao seu autor (e leitores, possivelmente). Aqui encontra-se outra cena de desconforto para a leitura homogénea expectável da pornografia, até porque Bastien Vivès apresenta as coisas de uma perspectiva “semi-ignorante” da parte dos dois miúdos… tornando tudo bem complicado.
Os desenhos são feitos a linhas e manchas, a que nos habituámos já, quase numa forma de estruturar rapidamente a leitura. A própria composição utiliza um ritmo quase contínuo de duas vinhetas horizontais, se bem que possam ocorrer subdivisões e vinhetas ocupando toda uma página, ora quebrando os movimentos ora dramatizando um momento. O formato desta colecção não é alheio a essas escolhas, mas uma comparação com La Famille mostrará que Vivés não segue fórmulas, mas procura alicerçar os melhores instrumentos conforme o projecto em si. Essas velocidades a que aludimos não deixam de estar presentes no livro de Navarro, e apesar de existir essa mesma tradição na Europa, não nos deixamos de interrogar até que ponto a influência da mangá terá aqui algum papel.
Por outro lado, a oposição entre a velocidade da leitura e a necessária pausa para que surja o olhar pornográfico encontra aqui uma negociação tensa, sendo esses os elementos que compõem precisamente o “frenesim do visível”, como lhe chamou Linda Williams. De resto, é raro que a pornografia ponha em causa a maneira como os papéis sexuais são distribuídos socialmente, ou o uso do corpo (sobretudo do feminino) enquanto mercadoria reificada e passível de relações de poder, económicas, publicitárias, etc. Quase sempre a economia do prazer é androcêntrica. No caso do livro de Navarro, essa situação é claríssima, e mesmo em Vivès as acções são sempre das personagens masculinas, inclusive a vingança - anunciada no título - do pai. O único episódio em que temos um desvio é o da masturbação que Magalie faz ao jovem irmão. Estes livros, portanto, ainda que levantem algumas breves questões de representação e de forma em relação à pornografia, não a disputam totalmente. E, claro, estamos muito distantes de todos aqueles autores que confirmam as regras societais com a pornografia, sejam Manara ou Pichard. Edie Fake, em Gaylord Phoenix, introduz cenas “explícitas” mas desprovidas do seu impacto devido à subsunção nos jogos figurativos e estruturais das imagens. Celulloid, de Dave McKean, tenta em parte debater a distribuição dos poderes relativos à representação e agência sexual…
Estes dois volumes, de contraposições leves, são ainda assim livros a manipular com cuidado.
Nota: agradecimentos a Richard Câmara, pelo empréstimo do livro de Vivès.
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