O trabalho de André Ruivo sempre viveu numa espécie de zona transfronteiriça de toda uma série de áreas criativas - desenho, ilustração de imprensa ou outra, banda desenhada, animação, música. De resto, experiência idêntica à de muitos outros autores em Portugal, que têm de procurar soluções de expressão num quadro apertado de circunstâncias editoriais (malgré os casos de editoras generalistas a produzirem títulos isolados, ou plataformas independentes a criarem excelentes antologias e projectos, já que o público leitor é conservador e prefere do mesmo, mesmo que requentado). No entanto, as circunstâncias e as apetências individuais deste autor têm-no levado a trabalhar sobre o que apenas se pode chamar de obsessões. Séries de desenhos todos agregados sob um denominador. Muitas vezes, personagens sem história, apenas de passagem, como as que enchem as páginas de Mystery Park.
Numa descrição sumária, poderemos dizer que esta é somente uma colecção de desenhos soltos. Todavia, isso não é suficiente para captar a intensidade que eles geram. O acompanhamento do blog do autor faz-nos entender que este livro acaba por criar algum grau de coerência ou procura de consistência no interior de uma maior diversidade de métodos de trabalho. Afinal, este livro apenas apresenta desenhos a linha preta, mas encontramos noutros locais desenhos utilizando marcadores, lápis de cor, ou até ferramentas digitais, já para não falar das questões de figuração, havendo episódios de abstracções geométricas que põem totalmente de lado as alucinações figurativas usuais. Mas os títulos das “secções” fazem com que nos inteiremos da vontade de criar séries, e os princípios organizadores que isso implica.
Em alguns sentidos esta antologia de desenhos faz-nos recordar outras tantas de artistas díspares como Robert Crumb, José Muñoz e Saul Steinberg. De Crumb sentimos o mesmo tipo de mergulho na distracção para libertar uma mão solta, de cujos rabiscos sairão os objectos mais diversos, aqui viaturas alucinadas em movimento ou cenas breves de músicos. De Muñoz, uma certa estilização geométrica, e destruição de zonas de conforto da perspectiva, da criação de um eixo espacial claro, e da atenção para com a expressividade máxima que se consegue retirar de um rosto delineado de forma rápida. De Steinberg, a sistematização das séries (pássaros, pessoas a ler, pessoas a fumar, pessoas a passear o cão), mas também alguns aspectos da estilização, da possibilidade de deixar a linha passear livremente e criar mundos breves mas complexos. Sublinhemos a ideia de “passeio”, e atente-se à forma como quase todas estas personagens, viaturas ou outras criaturas parecem ser captadas a meio de um qualquer movimento, acção, como se interessasse transmitir acima de tudo algo que apenas vislumbramos mas se distende num tempo impossível de capturar. Talvez seja parte do mistério anunciado no título.
A qualidade “nervosa” dos desenhos de Ruivo parecem surgir de uma urgência da sua parte em dar a lume estas suas observações (ou visões, se preferirem, ainda que essa palavra implique uma esfera espiritual ou catártica que não nos parece estar presente). São muitas as personagens que - face a uma norma anatómica - são incompletas, ou com contornos abertos, ou então cujas distorções dizem menos respeito à caricatura que à fundação de uma expressão muito particular. Outras estão preenchidas de uma maneira quase total pelas mesmas palavras repetidas (“super duper”) ou então estão acompanhadas de frases feitas ou inconsequentes, como se a linguagem falhasse no seu princípio estrutural. Objectos surgem ora impossíveis ora falhando na sua função (o semáforo aberto em duas luzes, uma chávena na cabeça, óculos que não deixam ver, instrumentos musicais ou chapéus que explodem as suas formas. Sem querer abusar da ideia de obsessão, repetição, série, de narrativa pouco clara, e muito menos querer transformar as circunstâncias materiais de alguns desenhos no modus operandi de toda a obra de Ruivo, há características suficientes para fazer aproximar o seu território daquele outro, larguíssimo, que pode responder pelo nome de “outsider art” ou então “art brut”, no seu sentido original de Dubuffet, quando este falava de “impulsos criativos puros e autênticos”. O seu emprego em relação a Ruivo terá menos a ver com a ortodoxia apresentada por Dubuffet, muito específico. Não se verifica aqui o horror vacui/amor infini, mas antes pelo contrário uma claríssima vontade em criar figuras isoladas. Tampouco terá a ver com a falta de educação artística, já que Ruivo é um artista treinado e sofisticado, sendo estes desenhos o apuro de uma prática de anos. E também não terá a ver com uma re-conquista da autenticidade e inocência supostamente presente em desenhos infantis, ou na arte dita “primitiva” (por contraste com a europeia), já que bem vistas as coisas Mystery Park apresenta detalhes de uma vida imersa na urbe contemporânea, e até numa visão algo cínica de alguns dos seus prazeres. Terá antes a ver com uma tomada de posição crítica em relação à cultura normalizada. A recusa da subsunção do desenho a um propósito narrativo claro (“conta uma história”) ou até a uma situação de representação identificável (“desenhos de x”). A apresentação de um mero gesto (isto é, visto positivamente, enquanto esse mesmo gesto e não um gesto que serve para outra coisa) que é produto dos tais “impulsos puros”.
Uma outra publicação recente de André Ruivo, pela sua chancela pessoal (que co-edita o presente volume), Biblioteca, num formato quase clássico de fanzine, seguiam-se desenhos atrás de desenhos de prateleiras ou tampos de mesa repletos de livros, dos quais se podiam ler os títulos: atlas, dicionários, catálogos de arte, livros de museus, ensaios e literatura. Não parecia haver nenhum tipo de categorização ou sistematização dessas junções, a não ser talvez uma ideia de que estariam relacionados com o período que Ruivo viveu em Londres (os mapas são da cidade, os museus são locais, etc.) e estarem ainda associados à sua actividade e interesses. Mas não havia, tal como não há em Mystery Park, qualquer tipo de informação extratextual (ou até textual, diga-se na verdade, já que na sua vertente gráfica a solo, mesmo que declaradamente narrativa, há uma abdicação de matéria verbal na sua maioria) que assegure com exactidão o propósito ou o conceito. Não porque não existam, mas porque eles devem ser procurados pelo leitor e não simplesmente ofertados de maneira simplista.
Podemos imaginar que partilhamos com o autor/narrador/graphiateur um mesmo intervalo de observação num parque, vendo estas personagens a passar-nos à frente dos olhos, e ao captá-las no desenho, transformando-as com os instrumentos gráficos, estarmos a inscrevê-las num outro jardin clos, o do caderno, e assim criar-se uma qualquer narrativa cheia de perguntas: quem são, que fazem, onde vão, como se relacionam?
Mas as respostas a todas essas perguntas têm a mesma resposta: desenho.
Nota: agradecimentos ao autor, pela oferta da publicação.
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