Mais do que uma memória individual - para todos os efeitos, este livro é uma obra de ficção - o que se procura com a novela de Unterzakhn é sentir, através da vida de duas personagens, duas irmãs, a experiência de uma certa memória cultural, à qual Corman seguramente se arroga ser herdeira. Essa memória cultural tem menos a ver com essa vaga instituição da “memória colectiva” que está usualmente associada aos discursos do poder, às hegemonias da história e da política, e antes com uma específica experiência que conflui para a identidade própria de quem a reivindica. No caso particular, estamos a falar da memória cultural judaica-americana.
Há mesmo já uma tradição, por assim dizer, da banda desenhada (ou “graphic novel”) judaica, isto é, melhor dizendo, judaica-americana, não no mero sentido de ter sido a própria indústria dos comic books produzida e desenvolvida num cadinho habitado sobretudo por segundas gerações de emigrantes judeus da Europa, mas por ter temas abertamente relacionados com as culturas específicas judaicas do “Velho Mundo” e a sua adaptação ao “Novo”. Não tendo necessariamente que abordar a Shoah, esse continua a ser uma espécie de eixo comparativo, capaz de lançar a sua sombra e presença quer no “seu” passado - através das várias formas da violência anti-semita que se verificou pela Europa fora, sobretudo na Rússia, que tem um papel preponderante neste livro - quer no futuro, nosso presente - através de preconceitos vários que se continuam a verificar, imaginários que sobrevivem ou pura e simplesmente um quadro de referências em relação ao qual a identidade judaica se forma, com um menor ou maior grau de discussão. E em Unterzakhn a representação do bairro do Lower East Side como um shtetl, os diálogos temperados com iídiche, a memória da Rússia, as constantes referências anti-semitas à cultura e identidade judaica reforçam esse espaço imaginário. Se se pode ver em Maus, de spiegelman, o seu primeiro grande representante, nomes tais como os de Will Eisner, James Sturm, Miriam Katin, Ben Katchor, ou projectos híbridos como o livro de Bernice Eisenstein, fazem parte dessa linha contínua (e ainda haverá a presença de traços distintivos dessa tradição em trabalhos mais convencionais, e mesmo da indústria mainstream). Fora dos Estados Unidos, talvez Joann Sfar seja o nome maior desta tradição que “olha para trás”. Há mesmo um volume académico dedicado a esta tradição, The Jewish Graphic Novel: Critical Approaches. Ora Unterzakhn inscreve-se aí.
Se a trama se prende ou concentra no crescimento de duas irmãs, filhas de emigrantes judeus russos nas primeiras décadas do século XX numa Nova Iorque em que a mobilidade social se faz através dos mais variados meios, o retrato que Unterzakhn propõe é bem mais alargado. O título remete a um termo iídiche que diz respeito à “roupa interior”, mas que tanto diz respeito ao pequeno atelier que a mãe de Esther e Fanya tem, mas igualmente a uma ideia que seria expressa em bom português de “roupa suja lavada em praça pública”. Apesar de estarmos a falar da cidade de Nova Iorque, a concentração numa meia-dúzia de ruas ou bairros e de uma rede circunscrita de personagens faz pensar sem dúvida numa pequena aldeia em que não só todos se conhecem como todos têm algo a dizer (maldizer) do outro a um terceiro. As duas irmãs revelam pequenas diferenças logo na infância, e que lhes ditará os caminhos de educação e sobrevivência de cada uma, cada vez mais divergentes, ainda que a natureza de uma obra de ficção fechada dite a que se procure uma qualquer espécie de desenlace reequilibrador.
Uma vez que esta história revela alguns elementos do melodrama, no sentido em que paradoxalmente pode apresentar uma faceta escapista, dada ao exagero das emoções, sobretudo as mais dramáticas, e uma certa exploração da esqualidez da vida das protagonistas, mas ao mesmo tempo revelar um aspecto subversivo pois dá corpo e voz a classes usualmente longe das representações, ficcionais ou outras, não é de estranhar que preencha aquele fito indicado pela teórica de cinema E. Ann Kaplan de oferecer um “contexto de uma procura por uma identidade, ordem social e regras morais nítidas segundo as quais viver na modernidade”. Partilhará ainda, e igualmente, elementos que já vêm da tragédia, como a da “catástrofe”, no seu sentido literário, do resultado final advindo da tensão entre aquilo que estava previsto desde o início (a pobreza, a impossibilidade de ascensão social, a inevitabilidade judaica) e os desafios a que as personagens se entregam para escapar desse destino: Fanya aprendendo a ler, envolvendo-se com uma espécie de ginecologista, assistente social e feminista da primeira vaga, trabalhando em abortos, contraceptivos, tentativas de educação das mulheres das classes sociais mais desfavorecidas em relação à higiene, ao planeamento familiar, mas igualmente aos seus direitos, quer em casa quer enquanto cidadãs lutando pelo direito de voto; Esther começando como empregada num bordel e depois tornando-se, sequentemente, prostituta, entertainer e grande estrela do vaudeville da época. A catástrofe é literal, uma vez que a dor e a morte são o corolário do “progresso” dessas duas irmãs que se reencontram no fim, depois da crise - económica, moral - as ter separado. Não sendo a última imagem, nem a última cena, quando Esther abraça a irmã na cama, que sofre das dores da gravidez complicada, e lhe assegura estar ali para ela, o regresso da harmonia não poderia ser mais marcada.
O uso da palavra progresso não é por acaso. É na verdade tentador olhar para este livro sob a luz, longínqua mas decisiva, do ciclo de doze gravuras Industry and Idleness, de William Hogarth. Nesse ciclo, o autor inglês expunha em paralelo o progresso moral e profissional de dois aprendizes de tecelão, um dos quais se apresentava com todas as características de um bom cristão - empreendedor, dedicado, cheio das virtudes cristão da fortaleza, caridade e temperança, e por isso recompensado socialmente - ao passo que o outro padece de todos os pecados capitais - é ocioso, dado ao jogo, não respeita a eucaristia, e é por isso condenado. Leela Corman, em muitos aspectos, segue as pisadas dessa e de muitas outras histórias em que se constrói uma alegoria moral em torno de duas personagens que partem de um mesmo ponto comum, e cujos caminhos divergentes levarão a desfechos contrários. A partir desses desfechos, a moral é exposta. Porém, como não poderia deixar de ser em relação a uma obra contemporânea, inteligente e até mesmo respeitando um certo espírito de contradição interna cultivado no judaísmo, algo estranhamente socrático, que prefere responder às perguntas com mais perguntas, Corman não constrói uma fábula moral linear e indiscutível. Ambas as personagens sofrem de contradições internas, e nenhuma delas pode ser vista como a “boa irmã” ou a “ovelha negra”. O contexto social e cultural tem um terrível peso na equação do crescimento de ambas.
Afinal, se o trabalho social e político de Fanya a vai tornando uma mulher que molda toda uma série de princípios éticos que tenta pôr em prática na sua vida, não é morosa a sua descoberta da hipocrisia que a rodeia e das dificuldades insuportáveis que é levar a bom porto essa disciplina ética férrea. Aliás, será mesmo no seu corpo que se inscreverá o erro e a ironia da sua vida. Por seu lado, Esther parece mergulhar no mais abjecto dos mundos, mas é o seu pragmatismo que acaba por se revelar como um traço superior de sobrevivência e até de providência. De certa forma, há em Unterzakhn uma noção enviesada de que a conquista da mulher pela sua própria força e personalidade pode passar por escolhas que as feministas, de primeira ou outras vagas, julgariam como impensáveis e degradantes. E, por isso, mais efectivas, duradouras e valorizadas do que a miséria de um “caminho moralizador”. Contudo, não se entenda esta mera descrição como desprovida de reduções drásticas. Não há, a nosso ver, qualquer tipo de julgamento da parte da autora/narrativa; bem pelo contrário, este é um retrato mais do ser humano do que de figuras alegóricas de uma moral, e nesse sentido está muito afastado do programa de Hogarth.
Portanto, temos neste livro uma complexa mescla entre retrato de uma época, sobretudo na luta pela identidade e criação de direitos de classes desfavorecidas a vários graus (mulheres, pobres, judias, em profissões “de risco”), fábula moral, e re-lançamento de uma memória cultural na qual a autora poderá reivindicar as suas raízes (se bem que não existam traços facilmente identificáveis que iluminassem o papel da própria banda desenhada no seu contexto actual enquanto reflexo das outras artes tratadas no livro, na sua época histórica).
A combinação - e necessária negociação e tensão - entre a história das duas irmãs e a do pai na Rússia, fugindo dos pogroms dos cossacos, é muito própria dessa tradição indicada (podendo mesmo encontrar em Maus o seu gesto inaugural neste território criativo, mas tendo raízes literárias). Essa é uma interrupção longa na diegese que faz repensar a ideia de destino, tão típica do judaísmo, mas também serve para não só reconstruir a imagem do pai que fora possível até esse momento como ainda servirá de entendimento das conquistas entretanto conquistadas… O desfecho do livro volta a empregar uma analepse, dando a entender que as memórias felizes têm de ser necessariamente portos de abrigo suficientes para o sofrimento do presente. Como diz um provérbio iídiche (parafraseamos de cor), “os vermes comem-te morto, as preocupações comem-te vivo”. A memória serve assim de consolo, mesmo que momentâneo.
Corman tira partido, em alguns momentos, da compressão dos eventos, empregando aquilo que Scott McCloud chama de “transições de cena a cena”, mas de uma maneira que permite compreender o modo como as relações entre as personagens se vão alterando à medida que o tempo passa, assim como a subentender os eventos que não são representados de forma directa, mas que influem nessas mesmas relações. Isto permite que, numa economia representacional (isto é, um número circunscrito de vinhetas e/ou pranchas), se avance a largos passos no tempo diegético e na complexidade dos eventos. Os actos de maior violência - duas violações, assassínios, as mortes de algumas personagens - nunca são representados de modo directo (algo que, por exemplo, Craig Thompson não se coíbe de fazer, senão mesmo explorar, em Habibi), precisamente para haver uma maior focalização nos seus efeitos afectivos sobre as personagens envolventes.
Os desenhos da autora, assim como o seu trabalho de composição, de gestão entre texto e silêncio, figuração e colocação das personagens, é relativamente convencional e simples, mas de uma extrema pertinência e com um grau de expressividade pessoal que lhe garante o poder de assinatura. Algumas personagens, por exemplo, apresentam cabelos “selvagens”, e estes são representados por manchas cruas ora de lápis ora de tinta meio-seca, sendo trabalhos de diferenciação gráfica interna ao livro (e essas pilosidades têm alguma importância no trabalho de identidade dos judeus neste livro). Alguns cenários são construídos de forma sumária, quase como apontamentos, para haver uma maior concentração na expressividade das personagens. Há um equilíbrio significativo entre momentos de imitação de grafismos da época (cartazes, panfletos, montras, pormenores de vestuário ou de arquitectura) e outros em que o pincel se abandona à mais repentina das passagens. E o trabalho de legendagem é tão pessoal que unifica todas as palavras num contínuo plano, unindo as personagens a um quadro coeso.
A autora tem alguns livros publicados, como a sua série pós-punk Subway Series, mas parece-nos que esta é a sua produção mais acabada, quer em termos de desenvolvimento gráfico quer literário (no seu mais integrado aspecto no plano da banda desenhada, como é natural). Seguramente, porém, Unterzakhn se tornará uma referência maior, citada, influente e estudada.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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