Atravessamos um momento particularmente interessante no que diz respeito à recepção da banda desenhada em termos da sua história e papel político e social: temos mais acesso a edições de obras históricas, temos discussões disciplinares mais profundas e mais recorrentes sobre temas até agora raros, temos consequências mais visíveis do diálogo e negociação entre os vários mundos culturais (se os quisermos entender dessa maneira diferenciada). O recente exemplo da decisão judicial belga em relação a Tintin no Congo, que imediatamente espoletou uma defesa acrítica da parte dos tintinólatras, é um seu paradigma. (Mais)
A luta pela emancipação dos povos não terminou, de forma alguma, com a declaração da independência política de um número significativo de países em relação às suas antigas metrópoles coloniais (um punhado de nações). Bem vistas as coisas, a construção de dependências económicas e sociais continua até aos dias de hoje, e de uma maneira mais feliz para os centros decisórios e de poder, porque sem o mesmo tipo de “encargos”. E a exploração das riquezas, dos recursos naturais, da cultura local, das pessoas, têm mais do que uma face. É nesse sentido que os instrumentos culturais desenvolvidos nessa área transdisciplinar chamada de “pós-colonialismo” é de uma utilidade extrema: ajuda-nos a pensar melhor, a aprender a ver com os outros e, acima de tudo, a ver as nossas próprias responsabilidades na perpetuação dos problemas. É verdade que esta mesma construção de “nós” e “outros” é problemática, mas por isso é que temos sempre de assinalar de onde parte a nossa própria voz, e não pensarmos que ela vale pela de outros. No que diz respeito à representação dos negros pela parte dos ocidentais brancos, veja-se o que W.E.B. du Bois escreve, cunhando a noção de “consciência dupla”, em The Souls of Black Folk, no início do século XX: “é uma sensação estranha, esta consciência dupla, esta sensação de estarmos sempre a olharmo-nos a nós mesmos através dos olhos de outros, de medirmos a nossa própria alma pela medida de um mundo que nos olha com um desprezo divertido e com pena”. Para eliminar esses olhares mesclados de divertimento (a “bêdê da nossa infância”), desprezo (não conceber a emancipação total) e pena (“coitadinhos!”), é preciso ter de facto consciência da própria formação do olhar.
É claro que, estando nós - portugueses, brancos, criados num berço católico/cristão, capitalista-liberal, etc. - do lado dos perpetradores, queremos sempre “dourar a pílula”, “pôr água na fervura” ou até, pior expressão, “branquear o passado”, desresponsabilizando-nos da nossa própria herança cultural e histórica. E queremos defender, por vezes com unhas e dentes, aquelas coisas que nos parecem ser não só inocentes como até positivas (os jardins zoológicos, o Paris-Dakar, o programa Príncipes do Nada), mas que no fundo apresentam sempre uma visão perniciosa e única das coisas e das quais muitas vezes é difícil libertarmo-nos. Os livros de Tintin, por exemplo, pertencendo à nossa infância - querida, inocente, nostálgica, plena da insouciance citada pelo autor do livro que trazemos à discussão (pg. 30) - têm de ser defendidos precisamente porque são sinal dela: atacá-los é atacá-la, defendê-los é defendê-la. Só crescendo é que nos percebemos da possibilidade da sua destrinça final.
Apesar de existirem vários artigos e trabalhos de dissertação que abordem as questões pós-coloniais aplicadas a todo um corpus de banda desenhada, havia uma grave ausência de um livro que as focasse (“a banda desenhada infantil e os cartoons colonialistas são, hoje em dia, uma dimensão relativamente negligenciada no estudo académico da cultura imperialista francesa”, 51; se algo houver, são “tépidas discussões”, 61, ou rápidas menções, ora justificadas ora apontadas como de somenos importância face à genialidade dos mestres…). O livro de Mark McKinney [que editou um outro livro importante, de que demos conta aqui] serve vários propósitos a um só tempo: é uma análise de um corpus específico, mas também uma introdução, um primeiro passo e o lançamento de bases. Como ele escreve no final do volume, as últimas palavras mesmo, este livro “representa simplesmente um passo num processo crítico contínuo” (164), que terá a sua continuidade (ver entrevista). No entanto, é um passo fundador e que cobre fortemente o território. O estudo deste autor aborda a banda desenhada francófona, sobretudo francesa (se a língua não a diferencia da banda desenhada belga, a possessão de territórios coloniais diferentes entre ambos os países altera sobremaneira a matéria temática dos livros), e questões coloniais: a representação dos povos colonizados e dos colonizadores, e das várias funções mitificadas destes (civilizacional, educativa, humanitária, democratizante, etc.), o modo como a banda desenhada respondia a eventos relacionados com as colónias, desde exposições coloniais às travessias africanas (o Crosière Noire), os estereótipos raciais e o diálogo entre os povos, etc. Apesar de McKinney se concentrar sobretudo numa primeira parte em obras históricas de um período de formação da banda desenhada francófona, a saber, as séries Zig et Puce, de Alain de Saint-Ogan, o Tintin de Hergé, Les Pieds Nickelés, de Louis Forton, Bécassine, de Pinchon et al., ele também aborda obras anteriores (século XIX), assim como alguns cartoons da época, histórias serializadas ou editadas em álbum da época, a recuperação do imaginário colonialista dos anos 1980 (com, entre outros, Chaland) e ainda algumas obras contemporâneas, quer as reaccionárias/nostálgicas quer as que integram a crítica a essa realidade histórica (em maior ou menor grau, discute-se Joann Sfar e Yvan Alagbé, assim como Le roi noir n’est pas noir de Frédérique Logez e Pierre-Alban Delannoy). Escusado será dizer que Portugal, com a sua história colonial específica, a Exposição do Mundo Português, De Angola à contra-costa de Capelo e Ivens, e de Rocha Vieira a Jim Del Mónaco, matéria análoga não faltará…
Os propósitos são claríssimos, sobretudo no poder transformativo do diálogo desses textos e dos instrumentos culturais dos nossos dias: “produzir uma genealogia de temas coloniais na banda desenhada envolve perguntar como é que os elementos coloniais são transmitidos e modificados. Hoje em dia esse processo tem lugar, em parte, através da redistribuição de materiais do arquivo colonial, tornados acessíveis de novo pelos historiadores, e outros, através de debates entre indivíduos e grupos diferentes com elos à era colonial, e através da transformação da França pela imigração pós-colonial” (140, repare-se novamente a premente proximidade com a realidade portuguesa). “Os traços textuais destas questões perturbadoras na banda desenhada merecem uma investigação séria e sustentada, pois elas informam o conteúdo e a arte” (4, sublinhado no original), contrabalançando a falta de críticas a nível ideológico, social e histórico na banda desenhada - sentida sobretudo no circuito da banda desenhada francófona, e até mesmo da sua recepção crítica e académica. É portanto isso que McKinney, pelo menos em parte, corrigirá ou colmatará.
Tendo em conta que, apesar da diversidade contemporânea, a bande dessinée que preenche o corpus principal deste livro é de um tempo em que corresponde à mais presente das culturas populares, “uma área-chave para a disseminação e contestação do imperalismo” (43, sendo estas mais de disseminação do que de contestação, constituindo mesmo uma “pedagogia visual-textual do império”, 49, a qual doutrinava as crianças francesas, 57), o fito é compreender as origens da construção de um determinado imaginário que ainda não foi totalmente abandonado, e que “determina o que se mantém do colonialismo e do racismo na banda desenhada francesa actual, e a partir daí compreender até que ponto a banda desenhada foi descolonizada, e até que ponto se mantém uma formação cultural colonialista” (29).
As resistências a estes estudos não são de forma alguma justificáveis, ainda que sim compreensíveis, sobretudo pela tal defesa de um estádio da própria infância, que não se deseja “conspurcar” com a ideia de serem politicamente reprováveis. Mas são-no, e na verdade, se essa mesma abordagem não tem necessariamente que retirar o prazer que se terá tirado delas, todavia obriga a pensar duas vezes. A seguinte frase é surpreendente nesse sentido: “Estas bandas desenhadas constituem uma herança colonial nelas mesmas” (7). Logo, defender e reapresentar estes textos como “clássicos”, “universais”, “sempiternos”, etc., apenas confirma um posicionamento de aceitação, pelo menos de “naturalidade”, dessa mesma herança colonialista. Mais, por vezes denotam uma “nostalgia agressiva e reaccionária pelo colonialismo” (13). O presente livro tenta precisamente corrigir o que McKinney chama de ambivalência ou ambiguidade da parte dos leitores defensores dessas obras, as quais demonstram “a ausência de uma crítica claramente articulada da substância e contexto históricos de uma obra antiga, um mestre do passado, ou um estilo agora fora de moda” (9). No entanto, os obstáculos ou possibilidades em relação a cada um é desde logo um alerta às condições dessa mesma discussão. Em relação a Saint-Ogan, por exemplo, o autor utiliza toda a espécie de material disponível, desde cadernos de esboços a escritos, ou ilustrações, cartoons, passatempos que criou para várias publicações, etc. A mesma metodologia não é possível em relação a Hergé, havendo mesmo entraves a isso colocados pela Moulinsart, que guarda nos seus cofres, de forma acerba, impedindo assim uma abordagem fundamental - e científica - às criação do pai de Tintin. A participação de Saint-Ogan e Pinchon na propaganda oficial das exposições coloniais (sendo a mais debatida a de 1931), demonstrada por algum desse material, sublinha não tanto as “intenções” (impossíveis de analisar, e até mesmo anátema numa abordagem académica correcta) como as práticas e participações efectivas dos autores no programa ideológico do colonialismo. Essa situação torna-se aguda ao considerarmos que “a herança colonial é multifacetada quer em Zig et Puce quer em Tintin. Oferecem riqueza [herança literal] em ambos os casos, mas apenas no segundo é transformada numa fonte incessante de capital [o tesouro de Moulinsart] cujas origens sangrentas coloniais são convenientemente apagadas” (7). A tentativa de apagamento continua, ainda que por outras estratégias.
O autor estuda igualmente o modo como muitos destes clássicos são recuperados e institucionalizados de uma maneira que parece impedir que possam apresentar facetas criticáveis politicamente, desde o uso dos nomes de Alfred e l’Alph’art para prémios maiores às reedições acríticas e descontextualizadas (mas como indicações tais como “clássicos de sempre”, ou coisas quejandas), republicações as quais “levantam questões sobre a disseminação da ideologia e representações coloniais” (27).
Sendo a esmagadora maioria desses livros textos infanto-juvenis, eles tinham necessariamente um papel pedagógico, de transmissão de valores. Não se pode querer defender a sua importância educativa e depois negar as lições, ou querer que exista um entretenimento totalmente desprovido de inscrição ideológica. Estes trabalhos acabam por criar a tal pedagogia do império, com a sua história única: “a representação dos colonizados e dos seus países como exóticos e subalternos, acentuando as façanhas [achievements] imperialistas francesas nos espaços colonizados” (50). O que é que estes livros faziam (e fazem, daí o problema e a necessidade de os debater)? “Traziam (e trazem) Outros exóticos e colonizados para os lares de crianças francesas (e belgas, e americanas [e portuguesas]) - a colecção de banda desenhada agrega e apresenta uma disposição de outros étnicos exoticizados” (64): personagens vindas de locais exóticos como a Índia, o Congo, Vénus ou o Tibete, o país das múmias, ou das orelhas quebradas ou do ouro negro. Mais, não é somente o modo como os livros transmitiam a noção do programa colonial, como ele mesmo era transformado imaginativamente por esse meio e os seus géneros mais habituais. A aventura colonial é sempre uma aventura (associando-se assim ao género da prosa e da banda desenhada sobretudo com um público infanto-juvenil masculino que vem desde o século XIX, se não de antes), ou seja, “o colonialismo experienciado pelos europeus como uma aventura”, cujos avatares ao longo do tempo com muitas bandas desenhadas e temas “ajuda a reabilitar o colonialismo francês enquanto um glorioso épico nacional” (144).
A “genealogia problemática” (104) é-o sobretudo nas estratégicas como construíam as representações dos colonizados. Os estudos específicos e close readings de certas obras mostram como existiam identidades normativas (usualmente parisienses, formando-se mesmo “colonizações internas”, 62) contra as quais todas as outras surgiam como diferentes, por vezes “grotescamente” (vejam-se os estudos dos comportamentos, dos empregos da língua, das representações, das relações criadas entre personagens, e até os próprios nomes das personagens subalternizadas, quase sempre recorrendo a nomes de comida - Coco, Banania, Kokoa, Kacoco, etc., etc.) e necessitando de uma qualquer missão de educação.
O autor dá conta de muitas contra-narrativas na própria época de publicação de muitas destas obras, invertendo assim aquela argumentação, que muitas vezes peca pela falta de informação mais básica, ou talvez até mesmo de vontade em apreendê-la, que as obras “são do seu tempo”, como se nesse tempo todos pensassem da mesma maneira. Citam-se as contra-exposições, os jornais escritos por movimentos anti-colonialistas, alguns dos quais assinados pelos próprios subalternizados (a figura de Ho Chi Minh, por estar presente num dos livros, é largamente estudada) ou até mesmo os escândalos e críticos da época contra o tratamento desumanizante das pessoas, sobretudo aquelas trazidas das colónias para participarem dos “zoos humanos” das exposições (v., p. ex., pgs. 80 e ss.). E a consciencialização desses outros posicionamentos é de uma extrema importância pois fará compreender, infelizmente, que a banda desenhada, sendo um meio subsumido historicamente a um número fechado de géneros, estratégias de distribuição e circulação e de públicos-alvo, sofreu a consequência de falta de diversidade e de crescimento cultural interno durante um longo período. Contrastando com essa situação, a banda desenhada actual já consegue conquistar vários graus de discurso, ainda que lhe seja difícil conquistar espaço social de discussão idêntico ao de outras linguagens, como o cinema ou a literatura. Não deixa de ser paradoxal ver a Casterman a editar livros tais como Africa Dreams, do casal M. e J.-F. Charles e Frédéric Bihel, ao mesmo tempo que, instada pela Moulinsart, não altera as formas de re-editar os tais “clássicos de herança colonialista”.
Por isso, mesmo as subversões que se poderão verificar de quando em vez, no seio da banda desenhada, na época ou nas épocas subsequentes, servem para “restabelecer as fronteiras” (75), uma vez que essas representações nunca se dirigem a uma crítica verdadeira da violência que o colonialismo representou (representava, representa?) para esses mesmos povos, e muito menos a perpetuação da sua integração nos regimes económico-financeiros imperiais, que ainda hoje sobrevivem mesmo que de formas diferentes.
Como havíamos indicado, trabalhos mais recentes também são estudados e citados, mas não são todos necessariamente conducentes de um discurso anti-colonialista ou crítico em relação à história. Apesar de entrarem “outros factores também, como o grau e as formas de integração política, consciência histórica e identificação étnica da parte dos artistas” (91), isso não significa que se vejam obras de sinal idêntico. McKinney identifica mesmo uma tipologia de abordagem aos colonialismo (sobretudo em relação às exposições coloniais, mas que nos parece ser programático de todo o projecto), a saber, as atitudes “comemorativa-nostálgica”, “carnavalesca colonial” e a “crítica-histórica”, através de estratégias de renovação, reescrita e replicação intertextual. Algumas obras mesmo recentes são vistas como reproduzindo e perpetuando todo o discurso positivo sobre a “missão civilizadora” dos poderes coloniais (Les bâtisseurs d’empire, de Serge Saint-Michel e René Le Honzec), outras algo ambivalentes (Le centenaire, de Jacques Fernandez) e outras ainda “notavelmente” críticas (como Le chemin de Tuan, de Clément Baloup e Mathieu Jiro). Todavia, são muitos os títulos citados e debatidos e contrastados entre si, com maior ou menor profundidade. Na verdade, a prosa de McKinney, empregando um aparato crítico consolidado e vasto, torna-se por vezes contraproducente a uma leitura mais fluida, assegurando-se mais o propósito científico do que o da leitura prazenteira; contudo, será este um problema num objecto desta natureza? O rigor, o ancoramento documental e contextual é mais importante que a breve divulgação superficial.
Um dos argumentos muitas vezes esgrimado na defesa destas obras é que o racismo também existe da parte dos “outros” em relação a “nós”. O problema dessa afirmação não é que seja falsa, mas antes desequilibrada e que dispensa a compreensão das “realidades históricas do colonialismo e do racismo” (28) que a deveria qualificar. A identificação de um problema não é suficiente, é preciso compreender qual é a equação envolvida, e em questões raciais, tais como sexuais, por exemplo, não há comutabilidade: a violência pontual que as mulheres podem exercer sobre os homens não é de forma alguma idêntica à sistemática e estrutural violência que está instituída numa sociedade patriarcal em relação às mulheres, e o racismo que possa ocorrer nalguns locais em relação aos brancos não é de forma alguma ao peso de 500 anos de história de escravatura enquanto princípio basilar de um sistema de exploração económica e especulação financeira, destruição sistémica de culturas e tecidos sociais locais, criação de dependências económicas duradouras nem desinscrição cultural e política dos povos colonizados (ainda hoje em curso, por exemplo, na manutenção da ideia de “clássicos”, “literatura mundial”, “berço da cultura”, etc. em relação a “culturas locais”, “literaturas africanas”, e por aí adiante). Cada caso individual deve ser alvo de justiça, como é óbvio, mas as segundas relações são elemento permanente - por vezes visto como “normal” (“oh, menina, era só um elogio!”, “eh, pá, é ou não verdade que eles não falam bem português?”) - da nossa sociedade, logo, deveremos responsabilizar-nos em primeiro lugar, antes de procurar o que se erra noutras paragens.
Um dos aspectos dessa impossibilidade das relações representacionais serem comutáveis encontra-se na equação blackface/whiteface, isto é, nos episódios em que um branco se disfarça de negro e um negro se disfarça de branco. Historicamente, a primeira situação é algo que teve lugar numa certa cultura popular (ocidental), para começar com os menestréis/minstrels norte-americanos (de que o Mickey Mouse é um resultado, não nos esqueçamos). McKinney estuda alguns dos casos em que na banda desenhada - quase sempre confundida no seu todo com os géneros de humor, sobretudo com um público infanto-juvenil em mente (Zig et Puce, Tintin) mas igualmente mais adulto e até iconoclasta (Les Pieds Nickelés) - os protagonistas se mascaram de africanos negros, mascarrando o rosto com carvão, falando petit-nègre, etc., conseguindo enganar os nativos, e muitas vezes aproveitando-se dessa situação para enriquecer, ganhar algum tipo de poder, etc., e, inversamente, quando negros têm a oportunidade de se vestir “à europeu”, demonstram não estarem suficientemente educados, e usam golas sem camisas, esquecem-se dos sapatos, e por aí fora. Ou seja, nos primeiros casos os africanos são vistos como ingénuos fáceis de enganar e, nos segundos, falhos na educação. Repare-se como numa história curta de Raymond de la Nézière para o jornalinho “feminino” La Semaine de Suzette, precisamente na esteira da Exposição Colonial de Paris de 1931, mostra duas crianças a mascararem-se de negro (“a transformação é rápida”). Dessa forma a dinâmica de poder e as hierarquias criadas pela hegemonia eurocêntrica continuam a ser acentuadas, fazendo não apenas parte de um discurso continuado ao longo da história mas que constitui a própria “objectividade” que ainda hoje é defendida em muitos círculos.
O debate de McKinney emprega, portanto, vários instrumentos e dedica-se a várias frentes de atenção, desde os veículos de circulação das bandas desenhadas estudadas até aos complementos autorais possíveis de coligir, sem jamais esquecer a contextualização histórica, em todas as suas dimensões. Estando o foco ancorado nessas obras mais antigas, compreende-se a genealogia estabelecida, mesmo que o autor precise que muitos outros títulos poderiam ser citados e estudados (nos Anexos críticos, encontramos alguns dos instrumentos de identificação e cômputo dos elementos pertinentes). Este é, portanto, um contributo de uma importância extrema, não apenas no que diz respeito ao próprio território da banda desenhada mas até mesmo para o que compõe o tecido social das nossas sociedades contemporâneas. É um gesto que contribui para “um alinhamento com os desenvolvimentos da pesquisa académica, a publicação, e uma intervenção no debate público sobre como perspectivar a história colonial e como tratar as minorias pós-coloniais” (120). Lição a qual deveria ter reverberação em Portugal.
Como já é habitual em relação a obras de cariz académico, colocámos uma série de perguntas ao autor deste volume, que teve a amabilidade de as responder. A entrevista encontra-se aqui.
A pedido do autor, fica aqui a sua página, na qual encontrarão mais informações sobre Mark McKinney. Como havia acontecido com o artigo sobre Tintin, a plataforma Buala publicou este texto no site deles, e aqui fica o link directo. Obrigado!
Nota final. Agradecimentos à editora, pela oferta do livro, e ao autor, pela sua intercessão e simpatia.
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