Dois livros de uma comunidade por vir, segundo.
Como havíamos proposto em relação a Limbo, também este livro de Goblet proporciona uma contestação das relações habituais entre o texto existente num livro e as imagens que lhe estão associadas. Na verdade, no caso de Goblet, mesmo existindo uma noção ou conceito de “história” na origem de toda a matéria plástica, é esta que toma a dianteira do acto criativo e da sua presença final na tessitura, ou texto. São os textos verbais existentes, afinal, uma espécie de notação ilustrativa às imagens centrais, recordando - salvas as distâncias históricas, artísticas e até mesmo do contexto comercial contemporâneo - as experiências de Hogarth, Grandville ou outros.
Goblet volta a colaborar com Guy-Marc Hinant para a fabricação dos textos, mas desta feita toda a matéria verbal não é apresentada ao longo do livro, mas antes disposta em forma de pequenos quadros textuais nas “segundas guardas” no princípio e no fim do livro (isto é, as duplas páginas imediatamente depois e antes das verdadeiras, físicas, guardas, que retratam um grupo de caçadores, na primeira parte em plena acção, na segunda descontraídos, em pose de grupo a fotografar). A sua leitura é portanto dirigida de uma forma complementar. Ler na ordem física do livro, ler em primeiro lugar, ler após as imagens, não ler, são todas opções que cabem ser tomadas somente pelo leitor ou leitora. No entanto, a própria divisão assim estabelecida recria toda uma série de expectativas relativas à hierarquia ou pelo menos o interrelacionamento do texto e da imagem (como decorre em Limbo de Manouach).
Como em tantos outros projectos, a leitura destas imagens fará despertar linhas narrativas virtuais, pela repetição de certas imagens - a casa isolada na floresta, os homens de negócios, os coelhos, as cabeças de lobo, cenas relativamente sedutoras e outras claramente pornográficas, retratos de crianças isoladas, quase em perigo, cenas de densas florestas… Mais, a casa é repetida variadíssimas vezes, em esquemas cromáticos muito diferenciados (e possivelmente materiais, igualmente), o que, em termos representacionais, poderá fazer o leitor imaginar serem cenas em momentos diferentes, quer a longo de um dia (cenas diurnas versus nocturnas) quer ao longo das estações (Inverno versus Verão).
Esta aparente procissão de imagens autónomas para contradizer a natureza do objecto-livro. Tal como Roland Barthes havia escrito, em Leçon, que a literatura, mais do que utilizar a linguagem, a põe em cena, parece-nos que Les hommes-loups (e alguns outros livros desta banda desenhada a que, em outros momentos, chamámos de “experimental” ou “por vir”) exacerba essa ideia de pôr em cena. Há uma imanência nestas imagens presentes que obrigam os leitores a um esforço particularmente vincado para se tornarem co-autores, isto é, a obrigá-los a se consciencializarem - ou agirem, noutra hipótese, mesmo sem essa consciência verbalizada -, de que a autoria é uma função do texto. Logo, este livro não nos é ofertado sem resistência: impele-nos a fabricá-lo também.
Por outro lado, se recorremos a Walter Benjamin, descobrir-se-ão outras qualificações. Num dos fragmentos mais decisivos do Livro das Passagens (N3,1), ao falar do seu conceito da “imagem dialéctica”, que junta num “repente” o passado e o presente, que faz diluir a intenção, e que estabelece uma relação, não temporal entre o passado e o presente, mas uma relação dialéctica entre aquilo-que-foi e o agora, uma imagem figural (bildich), Benjamin termina assim: “A imagem que é lida - o que quer dizer a imagem no agora da sua qualidade de ser reconhecível (Jetzt der Erkennbarkeit) - é marcada no mais alto grau pelo selo do perigoso momento crítico em que toda a leitura é fundada”.
Este livro - e alguns dos outros que construiriam uma comunidade específica da banda desenhada - não são aquelas meras máquinas de ficção, fantasia, histórias, reflexos, que pedem pelo acto de actualização que a leitura, no seu sentido “fraco”, constitui, mas antes é ele mesmo constituído enquanto texto na leitura construidora, por assim dizer, que é garantida pelo(s) leitor(es). Não é portanto um texto existente, à espera de leitora, mas antes como se fosse esse acto o último ponto da cerzidura.
A argumentação de que este livro “faz” ou “não faz” parte do corpus e do mundo social da banda desenhada não é suficiente. Como diz Jean-Christophe Menu (La bande dessinée et son double), a existência de fronteiras auto-homologadas da banda desenhada leva muitas vezes a que ela não inclua em si mesmo experiências que a podem tornar um território mais vasto, diverso, poroso e, por isso mesmo, estética e culturalmente saudável. É preciso, portanto, identificar os elementos que são passíveis da aproximação da obra de Goblet à dessas tais fronteiras mais habituais. Les hommes-loups é um livro pensado em conjunto com os desenhos criados e que ele encerra, mas numa dinâmica autónoma e separável. Isto é, Goblet não pensa os desenhos como objectos autónomos para serem apresentados em exposição, e que por acaso são alvo de uma agregação num livro/catálogo, nem tampouco cria um livro cujos materiais de produção são passíveis - como quaisquer outros - de serem alvo de exposição. Ela pensa ambas as dimensões ao mesmo tempo, auscultando as possibilidades da variação de materialidade dos desenhos terem uma presença forte no significado legível num volume e pensando a espacialização expositiva fora das circunstâncias do livro. Há aqui desenhos (descrição física, disciplinar, produtiva), há uma ideia de série e sequência (repetição de elementos figurativos e/ou temáticos, construção de um eixo mínimo de relações interpessoais entre as personagens identificáveis, entre os espaços retratados, entre alguns elementos de tempo), há o formato do livro (que coordena as operações cognitivas do leitor/espectador).
Mais do que uma diegese classicamente disposta com os seus elementos, o que se apresenta é uma rede aparentemente desconexa de elementos singulares, independentes e descoordenados - algo que não deixa de ser uma falsa leitura, já que se são série e variação, não podem ser singulares, se se relacionam entre si formal, temática ou materialmente não são independentes, e se se encerram num conjunto significativo e formador de significados, o livro, não serão de todos desprovidos de coordenação. O que emerge, porém, dessa leitura atomizada, rizomática se quiserem?
Tal como faz parte da linguagem contínua de Goblet, há uma qualquer presença fantasmática que têm a ver com traumas associados à infância ou à vida familiar. Se Souvenir d’une journée parfaite era um trabalho de luto sobre uma figura paterna, Faire semblant c’est mentir a raiva que advém do confronto com uma figura materna, e Chronographie é um exercício de diálogo gráfico com a sua filha, Nikita Fossoul, apercebemo-nos de um padrão que bebe da sua experiência pessoal, mas sem que se permita consubstanciar-se em autobiografia ou em autoficção (como defesa?, como fuga do género?, como resposta complicada?, ou como forma própria de dar a ver o desvio provocado pelas memórias?). É outra coisa. É um aproveitamento de linhas de força, talvez, ou uma exploração de ecos emotivos, de “fantasmas”, de peles, que depois são transfiguradas na sua obra plástica e de banda desenhada.
Les hommes-loups pode ser visto como uma fábula sobre o avanço do capitalismo industrial e a destruição das paisagens naturais. Ou sobre a destruição do ser humano da natureza, vegetal e animal (outra coincidência, mas muito superficial, com Limbo). Ou uma versão complexa do Capuchinho Vermelho, fazendo emergir as suas interpretações hodiernas sobre os abusos sexuais feitos sobre crianças. Ou uma fábula sobre um lobo que é um homem, ou um homem que é um lobo, ou um monstro que habita as duas peles, e que recupera saberes e vivências antigas, populares, ou que têm hoje uma leitura psicológica nova e surpreendente. Ou é um diário pessoal em que muitas das observações e experiências atravessam um qualquer filtro transformador (algumas páginas têm anotações textuais, e algumas delas são claramente autobiográficas).
É também muito possível que nenhuma dessas - breves, esquemáticas, redutoras - interpretações esteja correcta, nem mesmo se forem combinadas entre si, já que qualquer tentativa de agregar os seus sentidos levaria sempre a uma desagregação dos módulos flutuantes de significado que atravessam o livro.
Ele é um território enérgico dos seus elementos, um tecido incompleto apenas antes da leitura, a qual se constitui como um desafio.
depois de ler o teu artigo parece-me que vou fazer (boas) compras na próxima viagem... é já daqui a um mês! ;-)
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