Dois livros de uma comunidade por vir, primeiro.
Este projecto apresenta-se desde logo de um modo que, pensamos nós, é inédito no modo de relação entre o texto e as imagens, lançando uma linha de associação a Les hommes-loups, de Dominique Goblet, autora com quem o artista grego tem grandes afinidades criativas. Uma das possíveis maneiras de pensar a ilustração é a relação que se estabelece entre essas duas formas expressivas que parecem viver em pólos opostos de semioticidade (de uma perspectiva ocidental, moderna, etc.) a que damos o nome de escrita e imagem. Por um lado, o sistema da escrita alfabética, que utiliza um número relativamente reduzido de signos (nos nossos alfabetos entre 23 a 26 letras para representar sons simples vocálicos e consonânticos), os quais, combinados, permitem um número praticamente sem limite de enunciações; por outro, o das marcas gráficas icónicas, cuja comunicabilidade se restringe aos temas concretos - o que a imagem representa em si, para começo da conversa -, mas incidência é infinita, pois cada marca gráfica é única e irrepetível. Se existem imagens que parecem apenas cobrir conceitos mas não “objectos do mundo” concretos, como os diagramas ou alguns símbolos, e outros abarcam categorias transversais, como os pictogramas, outros ainda englobam concretudes, com menor (fotografia) ou maior grau de abstracção (a banda desenhada, o desenho). Ou, se preferirmos uma redução simbólica, temos aqui uma oposição entre dois sistemas, um analítico, outro sintético.
À relação física, presencial, das imagens e do texto podemos dar o nome, seguindo Michel Melot, de “concorrência”. Partindo do seu sentido etimológico, trata-se da distribuição física de ambos num plano visual - a página, por hipótese, mas poderia ser uma secção de uma página, ou a dupla página, ou uma qualquer unidade no interior de um livro ou outro objecto similar. Ora, o que ocorre em Limbo é algo inusitado: o texto surge num volume, as imagens noutro (veremos como em Goblet é algo diferente). Mais, a “unidade” que estes volumes compõem não é cromática - o volume textual é amarelo, o das imagens vermelho - nem de tamanho ou formato - o textual é menor, classicamente rectangular, o das imagens maior e mais quadrado - mas são ambos livros irmanados. Não apenas no título, no nome do autor, nas informações editoriais. Também na texturização das capas dos volumes (ainda que diferentes), na gravura de uma caricatura de um judeu - reconhecível como tal - com uma pala no olho, nas sobrecapas exteriores rasgadas (reminiscente de uma experiência similar da revista Raw, no seu sétimo número, de spiegelman e Mouly), no tipo de papel, etc. Não conseguimos conceber a existência de Limbo em que os dois volumes possam estar separados, enquanto unidade de significado. Mas tudo aponta para essa possibilidade física.
Os textos parecem ser descrições clínicas de operações laboratoriais operadas sobre várias plantas, sobretudo árvores: estudos de vacinas, de hipotermia, de degeneração das células, de aplicação de venenos, produtos químicos e desfolhantes, eflúvios de toda a espécie, e outras mais radicais: “As operações de modificação geológica consistem em agregar e queimar o número maior possível de árvores e arbustos, utilizando para esse fim todos os recursos tecnológicos disponíveis”. Listas de efeitos, observações, catalogação de todos os passos e resultados constituem a matéria destes textos: “O histórico destas operações foi conservado meticulosamente”. Estes textos têm uma qualidade clínica que quase apaga a ideia de um autor pelas suas maneiras mais usuais, não havendo qualquer busca por um grau de expressividade transmissível pelo uso da gramática, de um vocabulário marcado e pessoal, de um domínio qualquer de diferenciação… Parece estarmos a ler um manual.
Quanto às imagens, criadas por um grupo de 6 artistas, a saber, o próprio Manouach, André Lemos, Pascal Matthey, Tommi Musturi, Dimitris Baboulis e Alberto, são apresentadas sem qualquer ordem aparente, misturam-se entre elas, não têm registo de identificação (apenas assimilável por quem reconhecer os traços específicos das assinaturas “estilísticas” de cada um), e seguindo vários tipos de paginação, colocação no plano de composição, formatos, etc. E no que diz respeito ao que se figura e representa, aos modos de preenchimento da imagem, etc., não há qualquer valência consistente. Algumas imagens são figurativas, outras abstractas, outras misturam os registos. Alguns autores parecem fazer pequenas variações sobre um tema, ou provocar diferenças internas a um conjunto de imagens manipuláveis, outros devem seguir instintos momentâneos. Um dos artistas segue uma linguagem claramente infantil, representando animais (é mesmo possível que seja uma criança, não sabemos), outros carregam as imagens de referências de muitos quadrantes. A leitura aturada e cuidada das imagens e sua correlação com as imagens não é de todo impossível, mas é uma tarefa hercúlea tentar descortinar uma só linha de desenvolvimento e resposta.
As próprias opções gráficas do texto, paginado em blocos de uma reduzida elegância utilizando as letras em Impact a itálico e negrito, parecem querer apresentar uma ideia totalmente despojada de qualquer tipo de expressividade e beleza (algo que é impossível em absoluto, mas pode pelo menos criar essa ilusão ou transmitir essa impressão). Manouach obriga-nos a ponderar se a consideração do tipo de letra e o seu arranjo tipográfico pode fazer parte da análise viável da significação do texto, e estamos em crer que, pelo menos neste projecto, sim. É um grau de materialidade a ter em conta.
A estrutura do texto, daquilo que não sem alguma interpretação forçada chamaríamos de “história”, é tão regrada quanto aleatória parece ser a resposta das imagens. Primeiro dividindo as plantas nas duas grandes subdivisões de angiospérmicas e gimnospérmicas, e depois seguindo as consequentes classes, ordens, famílias, etc., visitam-se todas a divisões sistemáticas, separando-as de acordo com esses mesmos princípios, e votam estas a toda a espécie de (violentas, mortificantes senão mortíferas) experiências médicas, daquelas indicadas ao extermínio total. Como explica a primeiríssima frase do livro, o que se pretende é uma “modificação geológica” (que podemos imaginar como metonímia da própria estrutura do mundo, do universo, ou seja, de nós mesmos). Todo este exercício parece, repetimos, revestir-se de um tom desapaixonado, científico, clínico. E é-o, tendo como fim uma imitação de um outro discurso histórico: o do Holocausto.
Esta associação pode parecer gratuita, mas a ideia de “limbo”, reforçada por uma referência ao inferno japonês (Jigoku), pelo menos uma imagem figurativa de Manouach, e algumas imagens que representam pilhas de esqueletos ou esqueletos cumprindo algumas operações, já para não falar de outros projectos do autor-editor (como Katz), fazem com que o livro duplo seja uma espécie de ensaio poético e figurativo sobre esse acontecimento histórico, esse “buraco negro” do entendimento. Mesmo tendo corrigido a frase mais tarde, a ideia de Adorno de que escrever poesia depois de Auschwitz era obscena teve as suas repercussões, sobretudo a de ter tomado o pulso à impossibilidade de escrever poesia (ou qualquer outro tipo de linguagem criativa e significativa) com o mesmo tipo de inocência ou despreocupação para com a ideia de “mal” (por mais banal que fosse, nas palavras de Arendt) intrínseco ao ser humano.
O texto poderia ser assim entendido como a marcação clínica, regrada, pautada, burocrática, da máquina de extermínio montada, e as imagens como a resposta emotiva, desconexa, violenta, agressiva, dos testemunhos, ora próximos e implicados ora com alguma distância.
Será extremamente controverso, claro está, fazer comparações directas entre o que é descrito nos textos e os acontecimentos históricos e reais, ou as imagens e qualquer tipo de tentativa representacional desses mesmos acontecimentos (Claude Lanzmann e outros autores acham que não se deve sequer colocar as coisas em termos de representação, e apenas a sua ausência pode respeitar a realidade). Mas Manouach pretende precisamente esse tipo de confrontações e provocações, que tanto dizem respeito à forma como os discursos sobre o Holocausto se têm “naturalizado” sob a forma de frases feitas, sentimentos de circunstância ou abordagens patéticas, sentimentalistas e facilitistas que por terem grande distribuição correm o risco de delimitar o horror: são os gritantes casos de Schindler’s List e A vida é bela, mas também de livros como O Leitor, de B. Schlink ou O rapaz do pijama às riscas, de J. Boyne. Como comercializar e sacar “entertainment value” de um genocídio estipulado maquinalmente? Como escreve Dominick LaCapra em Writing History, Writing Trauma, “práticas sociais e instituições [geram] limites normativos que não têm de ser confundidos com normalização - limites que são afirmados como legítimos mas estão sempre abertos a serem desafiados, desregulados, transformados, e até mesmo a sofrerem desorientações radicais”. Ora, onde aquele tipo de narrativas “de sucesso” criam discursos rapidamente confundidos com a normalização - o “isto foi mesmo assim”, o esgotar os elementos passíveis de discussão ou experiência emocional e de pensamento histórico, etc. - surgem nestes projectos advindos de áreas menos contaminadas pela normalização práticas sociais de resistência. Limbo apresenta, sem dúvida, uma “radical desorientação” em relação aos limites levantados. Como é de esperar, o impacto deste projecto será delimitado, uma vez que opera ele mesmo no exterior de toda uma série de campos expressivos expectáveis (mais da ordem do “não é banda desenhada”, “não é livro de artista”, etc., do que de uma afirmação disciplinar), e a sua recepção será diminuta.
Que gestos poderão existir então de resistência às expectativas e previsões que não exijam um esforço dos seus leitores?
Nota: agradecimentos ao autor, pela oferta do(s) livro(s).
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