Para além dos livros dedicados exclusivamente ao estudo ou apreciação da banda desenhada, o panorama académico vai também abrindo cada vez mais espaço nas suas publicações à inclusão de estudos que a elejam enquanto objecto de estudo sob o escrutínio das mais diversas metodologias, disciplinas ou focalizações temáticas. É o que tem sucedido, em contagem crescente, de há vinte anos a esta parte, sobretudo no contexto anglófono e, do que nos é possível determinar, germanófilo. É claro que existirão áreas que estarão desde logo mais sensibilizadas, quer no sentido emocional quer no fotográfico, a abarcarem-na, como a dos estudos as “conjunções literárias e visuais”, subtítulo desta colecção.
A relação entre o texto e as imagens é algo que tem fomentado, desde o seu surgimento no mundo ocidental, pelo menos, discussões profundas que tanto se referirão restritamente à grafia (palavra que deve compreender as marcas em ambos os casos), aos seus actos e elementos, e relações, como às implicações que têm sobre a visão ideológica do mundo, ou até mesmo sobre o aparelho cognitivo humano. De Platão a W.J.T. Mitchell, as discussões têm sido profícuas mas – como é próprio do pensamento humano – infindas, inconclusivas e sempre relançando-se. O nome de Mitchell não surge naquela frase como último ponto, nec plus ultra da discussão, mas sendo dele o texto curto de introdução a este livro, é justo que se o cite, pela forma decisiva e constante como tem contribuído para a mesma. Apesar de curto, este é desde logo um texto importante, já que o autor vai mais longe naquele conceito por ele cunhado de “imagemtexto”, aqui para marcar a indecibilidade das relações potenciais (ou virtuais, no sentido de Deleuze-Guattari) entre texto e imagem. O autor, nos seus vários livros, foi expondo como poderão existir relações de ruptura, de síntese e de relacionamento entre um e outra, à qual ele dava nome, tirando partido do significado dos traços gráficos que as unem, da seguinte forma: “imagem/texto”, “imagemtexto” e “imagem-texto”. Neste breve texto, Mitchell vai mais longe, como dizíamos, propondo o termo “imagemXtexto” ou “imagem X texto”, discutindo todo os cismas, abismos e cruzamentos possíveis, ao mesmo tempo que aponta para a necessidade da correcção dos termos empregues quando da sua discussão.
Por exemplo, apesar do subtítulo do livro, “visual” não pode operar na mesma categoria conceptual de que “literário”, já que o primeiro termo apela à esfera dos sentidos e o segundo a uma particular codificação de signos, sendo a literatura também capturável pelos sentidos – para ler é preciso ver – e sendo muita da matéria visual, para mais a “artística”, subsumida a códigos sociais e de significação. No estudo deste “campo mais alargado e reflexão sobre estética, semiótica e todo o próprio conceito de representação”, que constitui um “tecido articulado multiplamente”, versam-se, e vogam-se por, “canais sensoriais (o olho e o ouvido)”, “funções semióticas (semelhanças icónicas e símbolos arbitrários)”, “modalidades cognitivas (tempo e espaço)” e “códigos operacionais (o análogo e o digital)” (pg. 4). Citando Aristóteles, Hume, Saussure, Peirce, Lacan, Barthes, Goodman, Foucault e Kittler, o autor compõe um quadro que não pretende ser nem síntese nem tabela de correspondências, mas palco de impressão conceptual, por assim dizer, de como estas tensões relacionais têm sido pensadas. Como escreve Marianne Hirsch no texto final, espécie de breve balanço do volume, estas relações “de implicação mútua, interrelação e tradução” levam a que, “no limiar do verbal, a linguagem se torna material, visual, multisensorial” (346), processo que obriga quase todos os autores dos ensaios aqui presentes a formularem novos termos, neologismos, palavras compósitas, que permitam dar à estampa verbal, ao discurso académico, à argumentação escrita, as noções relacionais (por exemplo, “memórias fototextuais”, “imigrescrita”, “heterocrónica”, “heteroposicional”, etc.). Isto é de uma grande importância para nós, recordando aquela forma que desejávamos ter utilizado para baptizar este espaço, mesclando os verbos portugueses “ler” e “ver” na sua primeira letra, procurando uma terceira grafia possível (“verler”?).
Os ensaios coleccionados neste volume abordam o espectro previsto por Mitchell. Fala-se do uso da fotografia em textos literários, quer romances, poemas ou autobiografias (J. R. Ackerley, Sebald, etc.), fala-se das inflexões materiais e construtivas que o digital permite à visualização de imagens, a escrita da poesia e à participação dos leitores, fala-se de atomização e unidade em relação à poesia visual (futurista, no caso) e de articulações entre obras literárias e pictóricas; envolvem-se os conceitos de descrição, de metaforização, de sinestesia, de orientação, em relação aos textos literários, e de memória, trauma, afecto, em relação a obras visuais. E falam-se dos postais – na verdade, uma magnífica “close reading” (Tanya K. Rodrigue) de um só exemplo - da PostSecret, como uma forma de imagemtexto particularmente apta para providenciar um quadro expressivo e interpretativo individual que contorna e evita discursos dominantes, como a autobiografia, por exemplo, que criam necessariamente rotinas simbólicas e, logo, “criam identidades essencialistas” (55-56).
É algo surpreendente, na leitura de determinados autores que se dedicam a temas próximos, como Didi-Huberman, Deleuze, Rancière, entre outros, que apesar de vasculharem “high and low” em busca de exemplos pertinentes para as interpretações e conceptualizações que fazem destas relações texto-imagem ou de imagenstextos, a banda desenhada nunca faça parte da equação de exempla, por maior que seja o seu escopo. É possível que parte disso se deva à falta de conquista cultural, intelectual e conceptual de que esta arte padece há décadas (ou será “estruturalmente”, “essencialmente”?). Todavia, dada a oferta imensa contemporânea, essa distracção é hoje insustentável. Mitchell considera a banda desenhada como uma “forma de arte compósita”, na qual nem “texto” nem “imagem” seriam descritivos suficientes mas tampouco uma adição, suplementação, ou simbiose entre os dois. Dá a entender que há uma especificidade, ou especificidades, neste meio, que a tornam, não necessariamente um palco privilegiado (i.e., superior) para a discussão, mas pelo menos determinante. Algo positivo naquele “x”.
O livro tem dois ensaios que abordam a banda desenhada, e sem surpresa são ambas autobiografias contemporâneas, de grande sucesso crítico. O primeiro é por Molly Pulda, um estudo comparativo entre Fun Home, de Bechdel, e uma autobiografia de Ackerley, sob a perspectiva de como ambos – escritores homossexuais que sondam as sexualidades respectivas dos pais, depois destes morrerem – tentam deslocar “segredos” a partir de interpretações subjectivas e pós-memoriais (cf.o conceito de M. Hirsch) dos arquivos imagísticos deixados pelos progenitores. O segundo, por Dale Jacobs e Jay Dolmage, estuda o livro Stitches, do ilustrador David Small, para sublinhar como “a banda desenhada representa um meio rico mas ansioso [fraught] na cartografia das formas como os corpos são moldados por deficiências e pelo trauma” (70), de maneira, portanto, a criar uma diferenciação reivindicativa da “voz própria” (e no caso da autobiografia de Small, isto tem um significado literal) em relação a uma cultura normativa. Em ambos os casos, porém, e pelas afinidades disciplinares entre os dois ensaios, a banda desenhada surge como uma possível forma de arte capaz de contribuir para a construção de individuações - “[um] sentido envolvente do Si torna-se gráfica e retoricamente demonstrado na página” (81) - à margem ou para além dos discursos homogeneizantes de géneros literários e artísticos, assim como um meio cujas especificidades na estruturação relacional entre texto e imagem obriga a uma “leitura” implicada, intricada, empática e produtiva.
Apesar da inegável qualidade de ambas estas obras citadas, e a forma como as duas abrem o campo da banda desenhada para temas mais humanamente profundos do que mais desabrida fantasia, ou com repercussões filosóficas e políticas mais imediatas em relação à polis contemporânea do que os géneros mais clássicos do humor, da aventura, etc., a verdade é que não deixa de ser sintomático que os tratamentos interdisciplinares e intelectuais – para além de questões de representação - sejam muitas vezes feitos sobre este tipo de obras. É um caminho possível, e é aquele que tem sido trilhado sobretudo. Poderá levar a uma ideia algo desequilibrada da pertinência dos objectos a estudar – por exemplo, a multimodalidade é analisável em toda a banda desenhada, independentemente de género, e até de qualidade (diga-se que Jacobs, noutros ensaios, aborda outras tipologias, mais mainstream inclusive) – ou até a um afunilamento do corpus – na verdade, trata-se do processo de canonização. Contudo, o mais importante de assinalar talvez seja mesmo o seu entrosamento com estes discursos. Regressando ao ensaio de Jacobs e Dolmage, entende-se a banda desenhada não somente como um encontro entre uma camada visual e uma camada textual, mas um locus onde “o visual, o alfabético, o espacial, e o gestual se combinam entre si para criarem uma sequência multimodal complexa” (80). Com futuro, certamente.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
Sem comentários:
Enviar um comentário