26 de dezembro de 2012

Keiji Nakazawa (1939-2012)

Faleceu há poucos dias um daqueles nomes que se confunde, em parte, com a fortuna de todo um meio. Keiji Nakazawa é um autor de uma obra monumental, no seu pleno sentido de monere, admoestar, advertir, ou até mesmo de aconselhar. Gen dos pés descalços não pode jamais ser lido como uma “mera” banda desenhada, um título de entretenimento, de obra somente estética cujo alcance pode ser maior ou menor nos vários componentes que a compõe. Ela é, acima de tudo, um bravo testemunho de uma vida sofrida, que serve também de signo a que não se repitam certos erros teimosos na existência humana.  
Hadashi no Gen [Barefoot Gen/Gen dos pés descalços] tem uma complicada história de produção. Se bem que o autor tenha trabalhado durante largos anos enquanto autor de banda desenhada comercial e até genérica, foi necessário, como rezam vários textos e as introduções a esta obra, que a mãe morresse em 1966 para que as suas memórias pessoais – Nakazawa sobreviveu ao bombardeamento atómico de 6 de Agosto de 1945 à cidade japonesa e porto militar de Hiroxima – voltassem a ganhar um ímpeto insubmisso e se aliassem à sua linguagem criativa para se lançar numa obra abertamente autobiográfica, algo pouco usual no seu contexto profissional.
Se numa primeira fase ainda utilizou os instrumentos fictivos para dar conta dessa experiência (com Kuroi Ame ni Utarete/Struck by Black Rain, a qual, se não estamos em erro, se encontra somente disponível nos vários sites de scanlation), na verdade, o primeiro gesto em que Keiji Nakazawa se dedicou ao tratamento desta matéria traumática e pessoal em banda desenhada foi com um trabalho mais curto, publicado numa revista periódica, e que terminaria com menos de 50 páginas, intitulado Ore wa Mita! [Eu vi!], em 1972. Curiosamente, esse seria um título imediatamente traduzido para inglês e distribuído nos Estados Unidos no final dessa década, tornando-o uma das primeiras mangás com circulação internacional, ainda que não propriamente impacto comercial.
No entanto, duas qualificações são necessárias. Em primeiro lugar, a razão dessa circulação prendeu-se antes com a matéria e as suas implicações políticas e sociais do que propriamente com um interesse particular e atreito à banda desenhada (o que, em si mesmo, não é um problema, bem pelo contrário, é um maior respeito pela idiossincracia da obra, em vez de a subsumir a uma qualquer mesmidade). Daí que tenha sido pelas mãos do grupo de voluntários internacionais Project Gen, sito em Tóquio e fundado em 1976, que a tradução da sua obra maior tenha ocorrido, com o fito de a transformarem em “uma mensagem do triunfo humano face a uma destruição sem precedentes e um alerta urgente ante a ameaça da guerra atômica em nossos dias” (como se lê na nota introdutória da versão brasileira, pela Conrad, de Gen). Em segundo lugar, é preciso ter em conta que não terá sido este título o responsável pelo “sucesso” imediato desse território (possivelmente, a saga do Lobo Solitário, associada a universos de géneros mais conhecidos, cumpriu esse papel). Aliás, mesmo em cômputos gerais sobre “as melhores mangás”, “mais vendidas”, é possível que Gen fique sempre num canto mais abscôndito.
É um ano após essa versão primeira que Nakazawa discorre sobre os mesmos acontecimentos de uma forma mais dilatada, criando entre 1973 e 1985 dez volumes deste marco, e que ganharia outras formas de divulgação nas suas versões cinematográficas (1976, 1980) e de animação (1983, 1986).
Logo de imediato, nesse modo de aproximação por tentativas, surgiria uma comparação possível com a obra de Art Spiegelman, que também “experimentou” uma primeira versão de Maus numa curta história para só mais tarde estenderia em vários episódios, que perfariam o volume que hoje conhecemos (e Spiegelman escreveu o prefácio à versão norte-americana de Gen, convidando a essa comparação ele-mesmo). Como se estas matérias – numa época em que a banda desenhada ainda batalhava por um papel de legitimação e diversidade de géneros nada assegurada – tivessem que surgir em primeiro lugar como ensaio antes de se consubstanciarem nos monumentos que se tornariam.
Há uma diferença substancial na forma como o tema do “atómico” é tratado por estas formas de cultura popular – e mesmo incorrendo no perigo da simplificação abusiva – no contexto japonês, que bebe da experiência directa do horror de Hiroshima e Nagasaki, levando à criação de títulos quer ficcionais, como o Astro Boy de Tezuka (iniciado em 1952), quer autobiográficas, como Gen, e no contexto norte-americano, que usa os acidentes radioactivos como oportunidades milagrosas de despertar nas suas vítimas poderes antes inconcebíveis (quase toda a família da Marvel dos anos 1960 se inscreve neste padrão, até mesmo em retcons sucessivos, como no caso do Capitão América). Mas além disso (e desta simplificação abusiva), há também a forma como todo o livro procura tactear as implicações deste evento. As redes sociais da época, pautadas pelo racismo e classismo inerentes à sociedade japonesa de então, o militarismo que tocava as raias da cegueira e uma religiosidade mórbida, o aproveitamento económico imediato da desgraça dos outros, o protelado silêncio feito por todas as partes envolvidas (japoneses e americanos) sobre o sofrimento da população local, os desconchavos familiares, a atenção para com o corpo como palco de inscrição da história, o humor genuíno que pode surgir do mais atroz dos sofrimentos, e, enfim, o modo como o espírito de um jovem – cujo tratamento super-humano, é verdade, estique por vezes a corda da credulidade, para com isso sublinhar ou reforçar as suas mensagens políticas, mas jamais rompendo a da empatia – pode sobreviver e fazer sobreviver os que o rodeiam nas condições mais adversas, abjectas e aparentemente derrotadoras. O heroísmo é um conceito que ganha nesta obra contornos muito, muito diversos dos habituais, e por isso, mais legítimo senão imprescindível.
É assim que, após a morte do seu autor, Gen dos pés descalços poderá ganhar ainda um novo fôlego de vida, importância e brilho para o futuro.

2 comentários:

  1. "Ore wa Mita!" na sua versão americana "I Saw It!" de 1982 é o único mangá que li até hoje. É de facto uma poderosa afirmação anti-nuclear e incluída com toda a legitimidade no Mammoth Book of Best War Comics editado pelo David Kendall em 2007.

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  2. Caro André Azevedo,
    É verdade, e apesar de ter escrito sobre esse livro neste blog, esqueci-me de lhe fazer referência. Agradeço-lhe a chamada de atenção. E se tem toda a razão sobre a sua força, convidá-lo-ia, porém, a descobrir outros trabalhos da banda desenhada japonesa. Não se arrependerá, seguramente.
    Obrigado,
    Pedro Moura

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