Estamos longe dos dias em que a Sida, sobretudo antes de ter ganho nome próprio, provocava uma ideia de contágio imediato, temor aumentado pela carga “moral” que lhe era instilada. Estamos longe. Ou talvez não estejamos longe o suficiente. Sabemos que podemos apertar a mão a um seropositivo, que o podemos beijar, que podemos partilhar uma refeição qualquer. Mas até que ponto sabemos que podemos mergulhar numa relação total, sem (muitas) barreiras, que é possível fomentar uma vida a dois, mesmo que haja sempre uma sombra entre os dois membros dessa relação? E que formas pode ganhar essa mesma sombra? Apenas aquela que os nossos corpos lançam nas paredes da casa? A minúscula projectada pelo ritual eterno de um comprimido diário? Ou a súbita forma de um rinoceronte que cria um obstáculo feito de dúvida, medo, insegurança? Estas são algumas das perguntas que Comprimidos azuis, de Frederik Peeters, tenta responder.
Comprimidos azuis é um dos livros que compõem um corpus abrangente de trabalhos (e que a exposição do FIBDA 2012 não era senão uma ínfima parte) que, atravessando o género da autobiografia, instilaram na banda desenhada contemporânea, sobretudo a europeia dos anos 1990, um novo fôlego que lhe permitiu atingir um público adulto e interessado em temas que correspondessem ao seu nível de desenvolvimento emotivo, intelectual e cultural. Por outras palavras – e passe a boutade da redução anedótica que se segue -, livros de banda desenhada que correspondem mais à ideia geral de “livros”, objectos que circulam na máxima diversidade de matérias e tratamentos, do que de “banda desenhada”, enquanto meio confinado a meia-dúzia de géneros e uma mão-cheia de escolas estilísticas, e que garantiam tão-somente a sobrevivência dos “sonhos eternos da infância”. Pela primeira vez na sua história, de um modo sustentado, contínuo, variegado e multiplicado, os leitores de banda desenhada haviam crescido e encontrado uma banda desenhada que crescia com eles e elas.
Recordemo-nos de que este é um livro criado em 2001, ou seja, no centro do furacão da emergência da autobiografia contemporânea como uma tendência, e mesmo género de grande sucesso crítico, no contexto francófono, sobretudo pela mão da L’Association e da ego comme x, ao lado de títulos de David B., Fabrice Neaud, Emmanuel Guibert, Jean-Christophe Menu, Marjane Satrapi, Baudoin e muitos outros (muitos dos quais tinham feito surgir as suas obras sob forma episódica nas revistas das editoras respectivas a meados dos anos 1990). Com alguma distância, agora, e apesar de nas nossas abordagens, com Lupus e Pachyderme, à obra de Peeters, termos demonstrado alguma desconfiança quanto à autonomia estilística e de voz do autor em relação a esse universo de referências, e nas quais mencionávamos obliquamente este título agora traduzido em português, continuamos sem uma certeza inabalável de que Comprimidos azuis possa ocupar um lugar de destaque crítico tal qual L’ascension du haut mal ou Maus ou Fun Home, mas não há dúvida de que é um livro que ocupa um certo grau da maturidade do meio da banda desenhada, do género autobiográfico em banda desenhada, e de um certo estilo de expressão pessoal. Aliás, sem querer criar hierarquias ou territórios demasiado fechados através de circunstâncias superficiais, a sua edição pela Biblioteca de Alice, ao lado de Blankets, é muito justa. Ambos os títulos partilham um desejo de pertença a um género alargado em que se sabe existirem outros exemplos de maior fortuna estética e poder emocional. Não obstante, a sua circulação entre nós é uma chamada, senão uma ordem, à sua atenta leitura e discussão. Neste momento, caso surja a oportunidade de um estudo concertado e disciplinado de uma certa valorização da voz própria, da autobiografia, em banda desenhada, não nos podemos escudar na inexistência de matéria produtiva a essa mesma abordagem. E Comprimidos azuis pertence, por direito próprio, a essa lista de leitura.
Ao contrário dessas outras “grandes autobiografias”, que usualmente elegem como seu centro nevrálgico um “trauma imenso” – o Holocausto, a morte de um membro da família, uma doença avassaladora ou que cria obstáculos aparentemente inultrapassáveis, uma tragédia disruptiva, uma crise profunda na esfera sexual -, Peeters tem dois pontos de diferença: em primeiro lugar, o trauma não lhe acontece a ele, mas antes à namorada nova, Cati, seropositiva, com quem começa uma relação, assim como o filho dela, que é apenas chamado de “Lobinho” e herda a doença. Sejamos claros: Fred, o protagonista, resolve iniciar ou dar continuidade à relação com Cati, mesmo depois de descobrir que ela é seropositiva, logo essa notícia não chega à sua vida emergindo no meio do processo, mas antes como “condição” dessa relação. Em segundo lugar, as dimensões da doença que Peeters resolve explorar não são as melodramáticas, mas antes as mais quotidianas e prementes do dia-a-dia. Como escreve Ph. Lançon, citação na badana desta tradução, “Peeters evita assim o sentimentalismo, a morbidez, o peso excessivo”.
Não deixa de ser notável a forma como Peeters não deixa de mostrar a dor a uma certa distância, como que obediente às leis antigas da tragédia grega que deixavam “obscenas”, isto é, “fora de cena”, todas aquelas representações que não deveriam ter lugar no palco. Ainda que existam crises abordadas - o preservativo que rompe, a crise do pequeno “lobinho” - elas jamais são enfrentadas com pormenores fisiológicos. Se por um lado isso é um ponto a favor de Peeters, evitando o melodrama, por outro não deixam de ser algo surpreendentes essas mesmas distâncias, talvez frias. O mesmo poderá ser dito em relação à família alargada deste casal. Apesar de ser explícito que a própria fabricação deste livro é, de certa forma, endereçada à família de Peeters – uma estratégia metalinguística típica do género, verificada em Spiegelman, David B., Bechdel, Alissa Torres -, a ausência das figuras dessa mesma família, sob qualquer forma, ou do imediato passado de Cati, cria uma rede actancial muito mais reduzida do que a que verificamos, por exemplo, em L’ascension du haut mal, que ainda julgamos ser o grande modelo inultrapassado de uma categoria abrangente de autobiografias em banda desenhada em relação à qual Comprimidos azuis se relaciona, quiçá como satélite. Existem alguns amigos que atravessam estas paisagens, o médico ansioso e estranhamente brincalhão, cujo papel vai para além de nexo doença-tratamento, mas se imiscui nos princípios que vão robustecendo a relação entre Fred e Cati, mas não surgem nunca aqueles que, emocionalmente pelo menos, teriam mais a dizer ou a debater face à decisão da vida a dois.
Não sendo a primeira nem a única autobiografia que tem uma doença como o nexo do sentido da vida das suas personagens (isto é, no interior da narrativa estruturada, não da vida real das pessoas a que se referem, que está e estará sempre fora de uma obra artística, por mais “completa” ou “conseguida” que ela seja) – pensemos em Binky Brown, Spiral Cage, Cancer Vixen, Stitches, Our Cancer Year – ou mesmo a Sida – não esqueçamos o magistral e vertiginoso Seven miles a second, de David Wojnarowicz com James Romberger – Comprimidos azuis lança um desafio sobre o autor/protagonista. Falámos acima de uma certa distância ou frieza, mas isso deve-se a ser a sua decisão, racional e de vigília, por assim dizer, que lhe permite tentar encontrar uma forma de manter a relação com Cati. Porque no seu fundo, ele está aterrorizado e esse medo ganha a forma de sintomas comportamentais, mentais e, acima de tudo, imaginários. E num meio cuja matéria principal são as imagens, não é de somenos importância que esses sintomas imaginários ganhem corpos imagéticos muito precisos.
Ao contrário de uma autora como Bechdel, ou Spiegelman, Peeters não tira partido de objectos transicionais como fotografias, cartas, mapas, ou outros, para construir um espaço de memória interpessoal ou intergeracional. Peeters confina-se à sua directa experiência, à sua imediata relação com Cati, e com a doença “entre” ambos e cria, tal qual a Genebra que habita, pequena e familiar, um espaço circunscrito. Mas essa experiência não é feita somente dos eventos partilháveis no plano histórico; os sonhos, os anseios, os medos, as súbitas imagens, tudo isso faz parte também do ser que é Fred e daí decorre que esses elementos ganhem direito à cidadania de imagem no livro. e tudo ganha forma quer através das suas linhas elegantes quer nos variadíssimos momentos em que se abandona a uma maior gestualidade e textura das pinceladas de tinta. Desde o sofá-ilha flutuando num mar ameno quando Cati e Fred falam numa festa, passando pelo famoso rinoceronte, e terminando no exercício de retórica com o mamute, todos esses aspectos que poderíamos julgar fantasiosos são tão-somente modos de dar a ver essa experiência mais rica (de novo, uma tendência que encontramos noutros autores, de Justin Green a Marco Mendes).
Dale Jacobs e Jay Dolmage, num ensaio sobre a autobiografia Stitches, de David Small (incluído no volume The Future of Text and Image), descrevem como “o trauma e a deficiência partilham o problema curioso de aparentemente parecerem indizíveis e individuados, mas ao mesmo tempo de serem sobredeterminados”, e como a banda desenhada é um “meio rico mas cheio de escolhos para cartografar as formas como os corpos são moldados” por essas duas realidades: da dor, do trauma, da deficiência. Isto é, toda e qualquer dor é impartilhável e intransmissível; todo e qualquer horror é incomparável; toda e qualquer calamidade não pode entrar num domínio e numa economia hierarquizável. Todavia, o que a arte permite, ou exige mesmo, é a comunicabilidade dessas mesmas dores, mesmo que aquilo que apenas se consegue dizer é que não se consegue dizer aquilo que se queria dizer. Peeters abdica de dizer algo grandioso e ontologicamente heróico e, por isso, falho, preferindo antes animar a continuidade da vida do seu amor com Cati (o fecho do livro, com uma promessa de uma viagem, apenas reforça essa ideia de futuro expansivo e feliz).
Pensemos em dois princípios. A do meio artístico e a da dor.
De acordo com o modo como alguns meios artísticos e expressivos têm sido lidos à luz de certas teorias culturais, como o cinema, por exemplo, e pensamos que a banda desenhada pode ganhar lugar nesse cálculo, esses meios são visto como que operando num espaço transicional no qual as fronteiras entre percepção e imaginação, exterior e interior, estão em permanente negociação e, logo, numa contínua mediação. É enquanto objectos de criação artística – afinal, não são uma pura expressão “natural” como a narrativa falada – que eles dão a ver essas passagens que apenas retrospectivamente e atravessando as categorias intelectuais construídas socialmente é que são entendidas como radicais, difíceis ou mesmo impossíveis.
A dor é sempre uma forma de conhecimento do corpo, sobretudo do seu interior. É por essas razões, combinadas na sua assinatura, que Peeters está menos preocupado com um olhar fetichista, objectificante, de “olhar a dor dos outros” - para citar o famoso título de Susan Sontag, na sua força original, e não na leve inflexão da sua tradução portuguesa -, do que ir para além da epiderme e mergulhar na escala molecular em busca de razões que nada têm a ver com a biologia ou o maquínico, mas sim com o que essa escala pode representar metaforicamente no que diz respeito às relações. É na cena inicial (establishing shot avesso) e numa breve rêverie que serve de interlúdio e de sinal do medo que essa passagem de escalas tem lugar. E essa travessia é apenas uma outra estratégia de negação do melodrama, e um sublinhar da especificidade do seu questionamento – cultural, ético, emocional – sobre as razões do sofrimento de Cati, da culpa que ela mostra sentir, e, ao mesmo tempo, e talvez aí se notem então alguns laivos de heroicidade partilhada, na total negação desse mesmo sofrimento e na assunção do quinhão de felicidade que lhes cabe.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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