Na leitura de muitas entrevistas ou declarações de artistas visuais, ou artistas, que trabalham na ilustração - por razões económicas, por uma qualquer questão de estratégia, de circulação, etc. - há por vezes um desconcerto com essa tarefa, demonstrada através do desagrado ou mesmo desprezo pela palavra em si, como se essa atitude desde logo revelasse uma superioridade à acção que cumpriram. É muito corrente dizerem que “não fizeram ilustração” ou que “não é bem ilustração o que fizeram”, etc. Ora, é claro que esta observação é demasiado generalista para ter alguma importância analítica, mas ela é uma constante nalguns círculos. As mais das vezes ela é também um sintoma do facto de que as imagens são criadas sem qualquer articulação com os textos que as acompanham. Não é que procurar as linhas de força e de intensidade que podem nascer de um encontro fortuito não possa levar a resultados surpreendentes, e até produtivos para o pensamento, mas a maior parte das vezes é uma questão de displicência: o artista prefere seguir as suas fórmulas de criação imagética a encontrar inflexões próprias, questões levantadas, dúvidas que possam nascer, se não dos textos propriamente ditos, da ocasião desse mesmo encontro.
Ora, a nosso ver, um artista é tão poderoso ou mais quando entende de uma forma mais interessada essa mesma tarefa. Quando não se escuda numa diferenciação social e de prestígio cultural pelos apodos policiados de “artista” e “ilustrador” - o primeiro de glória e o segundo de abaixamento, as mais das vezes - e simplesmente faz mover a sua mão para um gesto de resposta aos textos ofertados. Recorrentemente, Tiago Manuel tem esse papel acabado. Os adjectivos que se lhe queiram impor são de somenos importância. O que interessa é ver as brechas que ele provoca entre os textos que ilustra e as imagens com que os ilustra. Brecha essa que não é uma fenda negativa, mas antes o espaço de reflexão a que obriga.
Não é, de forma alguma, a primeira vez que Tiago Manuel se entrega aos prazeres da tradução das letras. Recordemos o já longínquo José do Telhado, de Camilo (1990), ou um número da Colóquio/Letras dedicado a João Cabral de Melo Neto, que se irmanará de modo oblíquo e algo disconjunto das lâminas em torno de Dante ou de Mishima, nas suas duas exposições respectivas.
São dois livros que trazemos agora à consideração. A antologia de Mário de Sá-Carneiro faz parte da colecção da Kalandraka que tem reunido uma mão-cheia de poemas de poetas de referência absoluta na poesia portuguesa (Bocage, Florbela Espanca, Cesário Verde), encontrando este título, aí, um lugar natural. Não se tratando de edições críticas, de estudo, ou que perseguem uma qualquer linha de análise particular, estes finos volumes servem, de um modo directo e descomplexado, dois propósitos, parece-nos. O primeiro é mais chão e comum: tratar-se-iam de volumes que podem servir de introdução à obra destes poetas, ora breve livro de oferta, ora compra para um jovem, ora de chave para um estudante... Nesse aspecto, estariam a concorrer com muitos outros títulos. Porém, mesmo que fosse esse (apenas ou sequer) o caso, os volumes da Kalandraka tinham desde logo uma vantagem: é que em vez de propiciarem um “florilégio da poesia portuguesa” preparada para crianças, em que se procurariam caminhos de relativo falta de exigência e brio e redução do acto poético a “conteúdos fáceis” ou “próximos da experiência real” ou seja o que for, estas antologias, ainda que cingidas a nomes canónicos indiscutíveis (mas que não têm necessariamente de solicitar uma cega obediência de todos), fazem avançar o acto poético original, custoso, denso, pouco familiar, que verdadeiramente pode afectar os seus leitores atentos. Mas o segundo propósito detectado pertencerá ao universo de referencialidade da editora, que é o da criação de imagens. Na frase que tanto repetimos de Tsvetaeva, de dar a ver algo de novo pela primeira vez, encontramos em plena afirmação o que se passa neste projecto, e como sempre, de forma particularmente intensa com Tiago Manuel, cujo instrumentário parece coincidir desde logo mais próximo ao acto literário do que, digamos, ao design, à fabricação de imagens, à modelação de figuras. Aliás, numa nota final deste volume, o artista escreve mesmo, depois de uma explicação, que “escrev[eu] os poemas e [Mário de Sá-Carneiro] fez os desenhos”. Essa circularidade não é de toda desprovida de sentido, e mais do que uma apropriação metafórica, ou acto de retórica, deve ser lida como um encontro e entrosamento de uma matéria na outra.
Por instrumentário, queremos falar menos dos pincéis e tintas do que da experiência, do discernimento, da acutilância muito própria de Tiago Manuel em se apropriar do acto literário e refundi-lo pelas imagens. Não deve, claro está, chocar o nosso uso da palavra “apropriar”, já que não se trata de uma substituição, de uma usurpação, ou de um qualquer tipo de apagamento dos poemas. Não é só a sua sobrevivência textual e material que se mantém, mas é precisamente a sobrevida deles que se garante nestas revisitações.
Poeta da confessada “dispersão interior”, encontramos em Mário de Sá-Carneiro uma mescla entre um lirismo que vinha de trás, de Baudelaire, onde o sujeito se abandona às teias do que parece ser o destino, e umas soluções repentinas que ecoam as vanguardas com as quais o poeta ombreava. Não está aqui incluído o magnífico Manucure, pois arriscar-nos-íamos a dizer que esse poema é a sua própria ilustração, no seu sentido pleno de imagem, mas há um conjunto coeso da sua produção lírica que revela bastamente todas as contradições internas de Mário de Sá-Carneiro. Desde um erotismo muito pouco velado (“- Se me dói hoje o bem que me fizeste”) a tentativas de colocar o espírito em esferas mais nebulosas (“Sou esfinge sem mistério no poente”). E Tiago Manuel faz balançar o seu trabalho por modos igualmente contraditórios, diversos, de forma a acompanhar essa mesmo baloiçar sobre várias águas: imagens escuras e carregadas de pormenores ou manchas, outras de brancos imaculados, umas coloridas ou texturadas com jouissance e outras mais nocturnas, ou líquidas ou mesmo parcimoniosas.
Para As adivinhas da tia Lígia, Tiago Manuel opta por uma continuidade das suas conhecidas explorações de metáforas visuais - e mais uma vez, seguimos o seu sentido restrito tal como proposto por Noël Carrol - mas operando no interior da economia proposta pelos textos, a esmagadora maioria das quais são, apetece dizer, quadras ao gosto popular, que instituem pequenos e simples enigmas textuais para adivinhar a que animal se referem. Propósito o qual, diga-se de passagem, é algo derrotado, mesmo para os seus leitores mais jovens, se tiverem acesso ao livro e à leitura eles mesmos (em vez de se entregarem a uma escuta lúdica), uma vez que bastará olhar o animal - presente em figura, silhueta ou outras estratégia visual ligeiramente mais complexa - para obter a resposta, mesmo em detrimento do texto. A economia a que nos referimos desarmam a mordacidade usual do artista, que desmonta, por uso precisamente da sua montagem objectual nessas metáforas, de uma qualquer camada escondida nas nossas máscaras sociais. Não é que estas novas metáforas não operem sob o mesmo princípio, mas os sentidos que fazem deslocar - de uma esfera do apenas distraída senão inconscientemente válido para a do expresso - são relativamente domesticados: um cão-conforto, uma formiga-carrinha de ferro velho, um elefante-veículo/circo/universo...
Sem qualquer desprimor para com os poemas de Lígia Mendes, estes tratam-se de composições mais simples, com um público e um fito muito particulares e muito endereçados. Mas, talvez por essa mesma razão, esta poesia evita moralidades, evita lições de cultura à força, evita precisamente a ideia de uma "poesia barata”, delíricodoce muitas vezes em voga, sobretudo por escritores que navegam noutros territórios e que, por uma outra razão, julgam-se na obrigação de escrever géneros que lhe darão um qualquer tipo de prestígio na moda (escrever para crianças, escrever um livro de receitas, um livro de viagens, etc.). Estas “adivinhas” em forma de poemas de estrutura simples recuperam uma espécie de alegria lúdica que não deixa de encontrar junto às crianças - pois aqui é a elas que é dirigido, sem criar caminhos de confusão entre leitores (bem-vindos noutros projectos e esferas, mas que não tem de ser repetido por todos) - as reacções e os afectos mais correctos. O timbre certo. Não obstante, estes poemas não se coíbem de alguma dimensão ética que ultrapassa a mera descrição e identificação dos animais: são vários os momentos em que os animais confessam a melancolia em se verem reduzidos, na nossa sociedade, a criaturas controladas nos zoológicos ou circos ou a caças (o leão, o elefante, a baleia), ou em que renegam a sua comparação aos seres humanos por serem mais nobres que esses, cuja apelidação com os nomes dos animais aponta a comportamentos indizíveis nos bichos originais (o camelo, o macaco). A poeta não abdica de mergulhar nalgumas ideias feitas ou nos comportamentos atribuídos a certas espécies, mas isso serve em contínuo aquela simplicidade e felicidade a que aludimos. Não se trata de um tratado de biologia, nem de aferição de conhecimentos, mas uma espécie de tratado dos afectos e das relações através dos animais mais comuns.
Mais sentido em Adivinhas do que no livro de Sá-Carneiro, o artista procura espalhar as manchas gráficas inclusive naquele espaço que estaria reservado em exclusividade ao texto. Se a poesia do poeta modernista se encontra composta tipograficamente em páginas imaculadas, com a página ao lado totalmente coberta (havendo esta e aquela generosa em brancos) pelas imagens, Adivinhas não só “espalha” a imagem por cada unidade, composta de duas páginas (um página dupla), como os textos são compostos muitas vezes no interior ou em complementação directa com o trabalho plástico da ilustração. E quer num caso quer no outro não há falta de exemplos de ilustrações que incorporam ou manipulam a matéria verbal dos textos, sob a forma de um verso repetido, uma constelação de palavras soltas, ou estruturas significativas típicas da banda desenhada (balões de fala, balões ocupados por outras imagens, pontos tipográficos flutuantes, riscos de surpresa das personagens, etc.), desdobrando essas mesmas palavras em duas camadas concorrenciais, duas intensidades paralelas, ou perscrutando a possibilidade de isolamento simbólico de um qualquer “centro” desses mesmos poemas. Nenhum destes pormenores de execução são alheios às pequenas obrinhas de exemplares únicos que Tiago Manuel tem criado, fazendo circular num grupo restrito de amigos, e de que alguns já foram alvo de exposição pública.
Uma análise dos elementos que compõem cada imagem - isto é, a violência de as escortinhar em troços ruinosos fora do seu corpo uno - poderá revelar as características estilísticas repetidas, que podem ou não possuir um significado em si mesmas, mas o qual só é acessível aos seus leitores. Não deixa de ser curioso esse exercício, quando confrontamos por exemplo a textura de um cérebro na cabeça do papagaio das Adivinhas e de um piano no poema de Sá-Carneiro, “El-Rei”... Mas ao ler o verso, desse mesmo poema, “Meu Dislate a conventos longos orça” coloca-nos logo o aviso de seguir esse caminho com cuidado...
Nota final: agradecimentos a ambas as editoras, e ao ilustrador, pela oferta dos livros.
Olá Pedro, desculpe escrever por aqui, mas não encontrei nenhum email.
ResponderEliminarComo sou leitor assíduo do seu blog, achei interessante mandar o vídeo do primeiro episódio de uma série sobre quadrinistas que estou produzindo:
https://vimeo.com/61778435
espero que você goste!
abraços! Ricardo Sêco
Olá, Ricardo.
ResponderEliminarMuito obrigado pela consideração. Eu também fiz um documentário televisivo sobre quadrinistas portugueses há uns anos (o "Verbd"). Por favor, escreve-me para pedrovmoura (arroba) gmail (ponto) com, que trocamos mais umas palavras.
Vou ver com atenção!
Pedro