Este post serve apenas para dar conta do pequeno mas rico catálogo da exposição antológica da obra dos irmãos Quay, suscitada pela leitura da monografia de S. Buchan.
Tendo estado patente no ano de 2012, esta exposição apresentava não somente as pequenas câmara-cenário que eles criaram para os seus filmes de animação de volumes (as quais estiveram patentes em Lisboa, no Museu das marionetas, em 2008, sob o título Dormitorium), como objectos-instalação, posters, capas de livros, ilustrações, projecções de filmes, e “coisas”, à falta de melhor termo, criadas de propósito para a exposição, como as caligrafias anarmóficas nas paredes. Este catálogo, que tem pouco mais que sessenta páginas, reúne stills de filmes, fotografias das tais instalações e dos cenários, dos bonecos-actores e dos cenários para teatro e ópera, algumas fotografias pessoais, imagens da sua carreira em ilustração, e muitas referências das suas formações artísticas, académicas e culturais.
No que diz respeito a textos, apresenta dois textos curtos, mas muito incisivos. O primeiro é de Ron Magliozzi, comissário desta exposição e responsável no museu pelo departamento de cinema, e que apresenta uma contextualização e uma biografia breves, sem no entanto deixar de tecer algumas interpretações sobre temas recorrentes (a ideia de gémeos, a importância da dança, as relações entre espaços interiores, exteriores e inanalisáveis, como os dos sonhos ou dos trompe-l’oeil). O segundo é de Edwin Carels, importante investigador de Ghent, sobre as relações entre a animação e as artes “em geral”. Intitulando-se “Aqueles que desejam para sempre. A ruminação enquanto ‘máquina celibatária’” (a primeira metade do título remete ao subtítulo do filme Nocturna Artificialia), Carels elege “máquinas celibatárias” dos Quay (o que remete a um ponto discutido no livro de Buchan) como ponto nevrálgico do, digamos assim, funcionamento dos seus filmes, como a propósito da cena inicial, introdutória, de Street of Crocodiles, em que se dá a transição, ou relação, ou negociação, importante entre filme e espectador: “de encenar um olhar para a câmara à captura do espectador no interior de uma configuração espacial”. A exposição Dormitorium, de acordo com Carels, convidava o visitante a “activar [aqueles] espaços”, mas os seus filmes atingem uma mais completa “interpenetração sensória”. Num elaborado processo de crítica à emergência da museificação da cultura, mas relacionando essas instituições aos seus imediatos predecessores, as “Wunderkammer” ou “gabinetes de curiosidades” (e o objecto de transição, a vitrine, que implica o princípio “vê mas não toques”), o autor pretende demonstrar como o cinema eleva essa diferenciação absoluta entre o visual - sempre visível, sempre penetrante - e o táctil - sempre fora do alcance, corroborando a transformação que teve lugar quando a “experiência foi substituída pelo conhecimento”, uma lição que, não sendo citada, soa a Walter Benjamin. No entanto, o cinema particular dos Quay, que convida o espectador, nos mais recônditos rincões dos seus corpos e mentes, a transporem as fronteiras existentes entre vigília e sonho, entre tempo(s) e espaço(s), negam muitas vezes o conhecimento para remeterem a uma nova experiência.
Segue-se uma entrevista aos Quay conduzida por Heinrych Holtzmüller, compositor, no seu sentido gráfico, do século XVI, num desses exercícios tão queridos aos autores de apocrifia, palimpsesto e anamorfose com a matéria da história e das suas vidas e obra. Mais do que revelarem pouco de si mesmos, revelam sempre através destes filtros ficcionais, corroborando a mistificação que muitas vezes desejam fazer em torno deles (por serem gémeos, supostamente “reclusos”, etc.). Essa entrevista permite-lhes não somente atravessarem referências usualmente esquecidas mas fulcrais na sua obra (do teatro de marionetas de Michel de Ghelderode a uma marca de cerveja belga vendida num bar favorito, La Mort Subite) ou questão mais metafísicas mas igualmente instrumentalizadoras nas suas pesquisas. A forma como, por exemplo, as suas opções em alterarem a escala do que a câmara pode “ver”, para dessa forma auscultarem sons imperceptíveis, os outros lados da música, o que uma só letra pode encerrar, ou que mundo se esconde quando simplesmente “nos baixamos” à escala das marionetas (citando, precisamente, Ghelderode).
Nota final: as duas primeiras imagens foram tiradas da internet, através de urls directos.
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