Ainda que a editora da Universidade do Mississippi continue, a nosso ver, a liderar enquanto plataforma da edição de trabalho académico com contornos significativos e que alargam o enquadramento teórico, histórico e crítico do estudo da banda desenhada, a McFarland continua o seu projecto igualmente interessante, de toda uma série de instrumentos de trabalho, talvez com preocupações mais imediatamente pragmáticas, como a sala de aula. No panorama português, não podemos falar de nenhum tipo de diversidade de oferta no ensino da banda desenhada, logo nem sequer importa fazer comparações. Qualquer alerta à bibliografia crescente é ainda uma necessidade premente.
Teaching Comics and Graphic Narratives. Essays on Theory, Strategy and Practice é um livro que, de certa forma, pode ser contrastado ou comparado com os projectos de Ann Miller, de Duncan e Smith, ou de Vergueiro e Ramos, dos quais falámos, mas que se integra numa bibliografia mais alargada que não é possível cobrir cabalmente. O aspecto diferenciador e significativo é que este livro não apresenta tanto projectos ou modelos abstractos de pedagogias, mas experiências levadas a cabo, efectivamente, em ambientes escolares. Todas as “lições” apresentadas atravessaram a sua exposição, teste, adaptação, e avaliação com grupos de estudantes. E a maioria dos ensaístas não se coíbe de confessar os pontos mais fracos, aqueles em que enfrentaram maiores problemas, obstáculos ou resistências, aqueles que obrigaram a desvios ou improvisações, as facetas menos aptas à elaboração final, onde e quando necessária.
Sendo fácil encontrar o índice do livro online, expliquemos somente que se reúnem aqui dezanove artigos, dispostos pelas seguintes secções: 1. Estudos Americanos, 2. Estudos Étnicos, 3. Estudos Femininos, 4. Estudos Culturais, 5. Estudos de Género [Literário] e 6. Composição, Retórica e Comunicação. Neles encontraremos muitos e diversos instrumentos e enquadramentos conceptuais e filosóficos, explorando-se questões de arte e comércio, da literacia visual, de diversidade cultural e de multiculturalismo, assim como questões de black politics ou relativas aos asiático-americanos. Estudos literários, jornalísticos, sobre representação de género e resistência, Trauma Studies e teorias em torno do auto-retrato são matérias igualmente presentes ou entrosadas pela banda desenhada. Quanto aos objectos de estudo, os textos de banda desenhada abordados, compreende-se The Boondocks, Citizen 13660, The Jew of New York, American Born Chinese, La Perdida, Berlin, City of Stones, Aya de Yopougon, as antologias dedicadas ao 11 de Setembro, entre outros títulos e trabalhos, estudados com maior ou menor concentração.
Em termos gerais, os artigos têm uma estrutura e uma camada de debate bastante simples. O fito é menos discutir as teorias em pormenor, do que expor aquilo que cada um dos educadores tentou no seu campo de experiência, como se de uma breve cartografia se tratasse. E partilhando essas estratégias, esperar que elas possam servir de modelo a seguir ou contrastar. Não obstante, existem muitos estudos que aprofundam de maneira crítica as suas metodologias ou conceitos, apresentando estratégias heurísticas e até mesmo “dando o flanco” aos aspectos que se verificaram mais problemáticos ou falhos nas experiências reais, como vimos. Bebendo de cursos que, aparentemente, foram dados entre 2006 e 2011, temos aqui muita matéria a ser considerada.
Como escreve Christina Meyer no seu texto, “As narrativas gráficas não são somente produtos discursivos daquilo que se poderá chamar os processos de enquadramento e desenquadramento [enframing and deframing] mas também asserções culturais e específicas a uma cultura de períodos históricos diferentes” (61). Logo, o trabalho de contextualização - das obras, dos públicos, das disciplinas, etc. - é levado a cabo com grande rigor e assim se poderá imaginar a sua aplicabilidade.
Algumas das combinações disciplinares são muito estimulantes, ainda (ou precisamente porque) exigem conhecimentos e balanços muito específicos, como a abordagem de Judith Richards e Cynthia M. Williams ao Persepolis de Marjane Satrapi e a obra artística (sobretudo a dimensão fotográfica) da sublime Shirin Neshat, focando no véu enquanto “um item de vestuário dramaticamente sobredeterminado com simbolismos competitivos”, numa citação de Reina Lewis, pg. 130, e no seio de disciplinas intituladas como Escrita de Mulheres Árabes e Muçulmanas. As professoras apontam desde logo à possibilidade de tratar a banda desenhada como um outro objecto cultural qualquer, com as suas especificidades, naturalmente, mas igualmente apta a um verdadeiro diálogo cultural transversal, e não somente como representantes de uma cultura localizada (por hipótese, a “popular”). E se encontramos de quando em vez, nalguns dos ensaios, algumas frases ou ideias instrumentalizadoras da banda desenhada, como se esta servisse para primeira abordagem, mais “fácil”, “imediata” ou “empática”, para chegar a textos mais complexos de literatura propriamente dita (é o caso, ligeiramente, do estudo de Aya, por Susanna Hoeness-Krupsaw), existem outros autores que abordam os textos de banda desenhada em total paridade ou tensão crítica com objectos maioritariamente textuais: são os casos de Edward Brunner, que no seio dos Trauma Studies agrega banda desenhada muito diversa, poesia e prosa, inclusive prosa “ilustrada”, como o romance Extremely Loud e Incredibly Close, de J. S. Foer, e de Adrielle Anna Mitchell, que aborda casos de não-ficção de banda desenhada para estimular várias noções pertencentes ao campo literário.
Outro dos frutos da leitura deste livro são as formas de interpretação geral nas quais a banda desenhada é ainda enquadrada. Muitos autores assumem - baseados nas suas experiências directas, logo, dificilmente refutáveis, mesmo que haja, da nossa parte, um desejo que não fosse assim - que as novas gerações de estudantes têm interesses moldados por toda uma série de culturas visuais necessariamente simplificadas em termos conceptuais, políticos ou de escopo, podendo falar-se de “gerações” MTV, Youtube, dos blockbusters de Hollywood, de vídeo-jogos, e por aí fora. Dessa forma, a banda desenhada surge então (como no caso explícito de Richards e Williams, pg. 131) como um espaço de negociação entre essa mesma cultura e a literatura e as questões conceptuais abordadas. Ou seja, há ainda uma certa ideia de instrumentalização ou de transformação da banda desenhada em ferramenta de primeiro passo, a caminho de um outro nível de proficiência cultural. Perguntamo-nos, porém, se o seu fito seria o abandono da própria banda desenhada enquanto plataforma, ela mesma, de negociação dessas mesmas questões e exigências.
Sem desprimor para qualquer dos ensaios, que têm matéria mais do que suficiente para nos ensinar muitos novos dados, novas perspectivas, ou fazer ponderar os seus instrumentos e metodologias, haverá sempre inclinações particulares que nos fazem fazer escolhas. Um texto que achamos excelente é o de Alexander Starre, que demonstra o que se pode ganhar em eleger como único texto primário uma antologia de banda desenhada. É claro que essa questão apenas se coloca se as circunstâncias a isso forçarem, mas nesse caso, uma antologia poderá fazer despertar não apenas o instrumentário formal e histórico premente aos textos coligidos, como igualmente o que esse mesmo processo de escolha significa em termos editoriais, políticos, de representação, de “canonização”, etc. O título escolhido por Starre, de um universo mais ou menos encurtado, não poderia ser mais perfeito: a McSweeney’s no. 13, a qual “consegue criar uma identidade colectiva significativa” (46), pronta a analisar e servir de ponto de partida para toda uma série de discussões.
Um outro texto excelente é o de Joshua Kavaloski, que estuda a “história multiperspectival” em Berlin, City of Stones, de Jason Lutes: estudando a forma como este projecto reúne características, ou melhor, “técnicas e estratégias” oriundas do modernismo literário, sobretudo anglófono (uma vez que os grandes nomes da literatura correspondente alemã da época, como Musil, Broch, Rilke, Kafka, Döblin e Mann, preferem concentrar-se num protagonista central), o autor identifica os modos como Lutes emprega o dinamismo (elegendo Walter Ruttman como modelo), a montagem (Joyce, Döblin) e os estados de consciência (Woolf, Joyce, Faulkner), assim como a polifonia estudada em Dostoevsky por Bakhtin (v. sobretudo 156 e ss.) para demonstrar como esta “graphic novel está menos interessada com a história em si mesma do que nas repercussões dela em vidas individuais”, isto é, das variadas personagens que habitam esse livro (153). Desta forma, como ocorre noutros textos, a nossa apreciação das obras reforçam-se, e contribui-se assim também para entender uma certa valorização retrospectiva de certos títulos, um corpus de que o livro de Lutes fará parte, decisivamente.
O parágrafo inaugural do estudo de Derek Parker Royal (que continua o seu estudo em torno dos estereótipos tais como instituídos na banda desenhada, e de uma forma mais matizada e interessante do que julgámos na vez anterior que com esse estudo nos cruzámos) apresenta como que uma espécie de sumário alongado do que a banda desenhada é [o verbo inicial é mesmo “ser”], que não sendo propriamente uma definição, oferece um quadro muito útil ao início desse debate infindo: “A banda desenhada é um texto compósito feito de palavras e imagens que, tomadas em conjunto, podem ter um impacto muito diferente daquele produzido por modos mais tradicionais da narrativa tais como o conto ou o romance. De forma parecida com os filmes, a banda desenhada apoia-se numa linguagem visual que encoraja um tempo de processamento mais imediato no leitor e, ao nível da interpretação, uma troca mais ‘eficiente’ entre autor(es) e público - pelo menos quando comparado com meios puramente baseados na língua. Isto não quer dizer que a banda desenhada seja um meio de narrativa [means of narrative, importante distinção de uma essencialização possível com ‘narrative means‘] (como muitos dos seus detractores quiseram historicamente debater), nem implica que haja uma ausência de ambiguidade de intenções ou de indeterminação no significado das narrativas gráficas. As imagens que servem de ícones referenciais são presas do mesmo tipo de escorregadela semântica que encontramos nos códigos linguísticos, que em si mesmos, na forma de letras e palavras, também funcionam como ícones de significado. Não obstante, há algo de relativamente ‘directo’ na imagem, na sua capacidade em afectar a reacção dos leitores. As figuras que compõem a banda desenhada têm uma fricção particular em com a realidade que as palavras não têm, revelando várias ideias feitas, predisposições, e preconceitos que os autores e os ilustradores possuirão” (67). Apesar de ser algo desencorajador a aparentemente eterna necessidade de se explicar a roda, este pequeno texto introdutório pode muito bem servir de elemento para discussão num contexto de ensino.
Muitos dos autores apoiam-se em bibliografias mais ou menos confinadas, se bem que em muitos dos casos ela seja sólida e pertinente, sobretudo no que diz respeito a cada um dos campos específicos do saber. Todavia, torna-se algo cansativo, no que diz respeito à banda desenhada em si, ver repetidas chamadas de apoio ao trabalho de Scott McCloud, ou a Will Eisner, como se o que estes dois artistas escrevessem fosse uma espécie, não diríamos de dogma, mas de conclusão convincente e quase impermeável à revisão. É o que se passa com a insustentável teoria de identificação de McCloud, repetida, ainda que com variações, por Royal, Cong-Huyen e Hong, Knight, etc. Recordemos que essa teoria aponta à ideia de que quanto mais icónica a representação de uma personagem - o rosto simplificado de Tintin, por oposição a desenhos mais realistas - maior será a identificação. Esta noção não se suporta, ao consideramos (com Baetens) a confusão que se está a fazer entre a identificação no seu sentido psicológico, de identificação complicada entre egos e projecções, e a mais simples gestão dos enquadramentos das interpretações cognitivas em curso no processo semiótico da leitura. Não é que McCloud não seja um excelente ponto de entrada para um certo grau de pensamento sobre a banda desenhada, no vazio, mas não pode ser nem tomado como a última palavra nem como uma autoridade em termos teóricos.
O estudo de Starre alerta ainda a questões mediais importantes, palavra essa entendida de acordo com a sua definição por Mark Hansen, “a especificidade das análises preocupadas com a materialidade do meio e dos media em geral” (47). Recordemos que aquela publicação, editada por Chris Ware, se apresenta como um volume em capa dura, com uma capa desdobrável que faz um poster-banda desenhada, do próprio Ware, vem acompanhada de dois livrinhos separáveis (por Ron Regé Jr. e Porcellino), e que agrega nomes históricos como Herriman e Schulz, pilares do underground como Crumb e Spiegelman, dos alternativos como Clowes, os irmãos Hernandez, Lynda Barry, entre tantos outros. Em si mesmo seria uma espécie de dínamo de algumas das questões abordadas por todos os outros capítulos. Mas não todas. E é isso o que é importante neste tipo de projectos: demonstrar como não há nunca nenhum escopo, por mais largo que aparente ser, que não existe metodologia singular, por mais abrangente que ela pareça funcionar, que esgote a atenção que as coisas merecem.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Imagens colhidas na internet.
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