A primeira vez que tivemos acesso ao trabalho de Jess, a sua “tira transformada” Tricky Cad, baseada em Dick Tracy, foi nas páginas de um, agora algo obsoleto, mas no seu momento fulcral e importante The Penguin Book of Comics, de George Perry e Alan Aldrige, de 1967. O aspecto importante é que uma obra de suposta divulgação de banda desenhada, menos interessada
em perspectivas académicas ou conceptuais, teve a temeridade de misturar
géneros, estilos e até mesmo campos, incluindo o que era abertamente
uma obra obscura das (então) artes contemporâneas, de contornos
experimentais, no seio de um balanço sobre “as grandes obras-primas” da
banda desenhada. Não estando de forma alguma seguros do que diremos de
seguida, estamos porém em crer que não encontramos jamais referências a
este trabalho, até nos depararmos com uma versão redesenhada de Tricky Cad num dos últimos números da antologia alemã de banda desenhada Tonto.
Há uma outra referência-fantasma que não nos impediu de a esquecer, porém. Referimo-nos à banda desenhada experimental “Dead Dick” (na verdade, um dos lados da litografia Lead Pipe Sunday no. 1, de 1989) de Art Spiegelman, e que ainda teria alguns ecos em outras das suas bandas desenhadas curtas. A ela voltaremos.
Jess [Collins] é o nome “de plume”, simples, pelo qual Burgess Collins era conhecido no mundo das artes dos anos 1950 e 1960. Poderemos, até certo ponto, caracterizar a maioria da sua arte como tecendo-se em torno do que hoje se chamam “found images”, ou “apropriações”, inclusive as pinturas e as esculturas. Numa época em que ainda se cumpriam caminhos artísticos no interior de disciplinas e meios específicos (e não a categoria pós-conceptual mais alargada de “arte”), Jess era um praticante de diversos modos de fabricação e re-combinação de imagens. O presente volume reúne algumas das suas obras que têm uma qualquer relação com as artes do livro, seja pela via do múltiplo (livros de artista, postais, cartões de intertítulos para cinema) seja pela via da colagem que dialoga com a ilustração, a publicidade, a fotografia erótica e a banda desenhada (enfim, numa palavra, com uma certa linha da “cultura popular” do seu tempo).
Editado por Michael Duncan, comissário de uma exposição que está prestes a abrir dedicada a Jess e a Robert Duncan, poeta, colaborador e namorado de Jess de longa data (apesar das coincidências de nome, não há relação), este livro pode ser visto como um objecto-companheiro da mesma, mas não é um catálogo. Mais, um dos aspectos importantes deste volume, para além de algumas dessas colaborações Jess-Duncan, é que reúne na (quase) totalidade os trabalhos em torno da banda desenhada e reproduz na íntegra os seus livros de artista, inclusive um fac-símile de O!, incorporado num envelope [ver imagem acima]. Este livro pode ser lido conjunto com outro livro da mesma editora, em torno da obra de Joe Brainard dedicada à Nancy, personagem famosa da tira de Ernie Bushmiller, e de que falaremos no próximo post. Além disso, muitas das considerações possíveis em torno destes livros podem incorporar alguns elementos do texto de Marcos Farrajota no blog da Chili Com Carne (e também num dos Kuti Kuti), “Comix Remix”, uma antologização bastante alargada de uma prática cultural com muitos contornos, e que toca nas raias de alguma banda desenhada experimental. Dos Dada a diceindustries, encontraremos exemplos de um campo alargado da banda desenhada, e aos quais também se poderão candidatar os trabalhos de Jess.
Tricky Cad é um trabalho de 1952 em que se remisturam as tiras do famoso detective de Chester Gould. Jess produziu oito “Cases” (as II e III parecem estar perdidas), bebendo do trocadilho de “caso policial” e “vinheta”. Na nota de introdução (todo o livro tem notas do autor, que as tomou em vida), Jess explica que não fez quaisquer adições de texto ou de imagens, sendo os únicos novos elementos os instrumentos da cola (paste) e da tesoura. Mas aquilo que ele pretende fazer emergir é “a crítica hermética auto-contida da arte popular”, que deveria ser entendida mesmo como elogiosa, mas que, aparentemente, Gould detestou (“flatly abhorred by the creator”, pg. 17). Os outros trabalhos abertamente aproveitando material banda desenhístico são duas páginas de Ben Big Bolt (1954), uma tira do mesmo nome, sobre um boxeur, de E. Caplin e J. C. Murphy, e quatro tiras de Nance (1956), baseado no clássico Lance, de Warren Tufts (de que as edições de Manuel Caldas têm feito a sobejamente conhecida brilhante recuperação). De resto, existem séries de imagens que colam imagens vitorianas (um pouco à la Max Ernst, mas sem a mesma preocupação de estruturação para-narrativa), ou os corpos dos jovens musculados retirados da revista Physique Pictorial, talvez a mais famosa revista beefcake de sempre, e importante nexo da cultura gay norte-americana dos anos 1950 e 1960.
Em todos os casos, podemos dizer que o propósito de Jess não era propriamente construir uma paródia básica, nem sequer um exercício oubapiano avant la lettre. Ou melhor, se entendermos estes últimos como exercícios que pretendem refundir o acto narrativo, representativo, natural, linear do objecto primeiro, Jess pretende despertar antes sentidos muito mais obtusos e opacos, mas não por isso menos impactantes. Tricky Cad continua a revelar uma economia de acção e reacção, de ambiente policial, mas ao mesmo tempo surgem situações surreais no pleno sentido da palavra (a legenda “Whinemeal” continua a ressoar potencialidades imensas). Uma vez que Jess emprega em casa “case” apenas elementos de um mesmo “arco narrativo”, há uma coesão estilística - a cor, o tipo de traço de Gould, personagens recorrentes mesmo se “alteradas” por Jess, etc. - e até mesmo narrativa. É em contraste com esta forma de trabalhar que os exemplos de Spiegelman se revelam menos arriscados, e quase surgem como confirmações dos componentes dos trabalhos originais, não enquanto modos de relançamento do seu significado. Já Nance e Ben Big Bolt, até pela repetição de corpos numa mesma vinheta, e muitas vezes corpos masculinos despidos, e também influenciado pela série de colagens When a Young Lad Dreams of Manhood (1953, a tal a partir dos efebos da Pictorial), parece querer sublinhar os aspectos homoeróticos que essas aventuras masculinas continham desde logo (ler estas obras de Jess à luz dos ensaios de Wertham talvez lhes garantisse também uma capacidade de análise dos textos originais nesse mesmo sentido).
Algo de extrema importância neste volume, e no tratamento gráfico das imagens, é que a reprodução fotográfica não oculta de maneira nenhuma a materialidade original das colagens, a sua textura, a sua “bumpiness”, para recuperar um termo de Lynda Barry. A antologia da Penguin tinha uma má reprodução a cinzentos, num processo obsoleto que tornava o o “texto” algo “liso” e “monótono”. Na Tonto (apenas a “Case VII” [ver imagem ao lado]), o editor e autor, Helmut Kaplan, “transforma”, por assim dizer, esse material original num novo texto, redesenhando-o. Puxando os pretos e brancos, introduzindo um apontamento a vermelho, instalando uma lisura, o novo Tricky Cad de Kaplan procura efeitos de design que não existiam originalmente, como se fizesse parte de uma presença mais naturalizada. Seja como for, é esse mesmo o propósito dessa recuperação pela parte do editor, que a integra num corpus maior de referências (e que serviria de contexto precisamente para o trabalho de Jess e dos vários comix remix de Farrajota). Como se encontra em Jessoterica, porém, podemos estudar os processos de Jess. Vemos, palavra a palavra, onde e como ele recompõe as frases ditas pelas personagens, e apercebemo-nos como é que essas mesmas personagens, reformatadas, surgem a partir de elementos heteróclitos da tira original (funcionaria decerto um contraste directo, revelando mesmo princípios de análise interessante, mas que não tentaremos nós mesmos). E se por um lado, graças a essa visibilidade e textura compreendemos os elementos criativos e repetidos de Gould, como se tivéssemos acesso a um seu arquivo de gestos, formas e ideias, por outro nada nos impede de ficarmos surpresos com a estranheza (uncanniness) de palavras novas (“Arsywhere”, “Janucember”, “Octovember”, alguém a gritar “Soup! Police! Nuts!”) ou imagens inéditas (Toyee mascarado de mulher ou com uma estrela na testa, mãos sem corpo entrando em cena de nenhures, e sobreposições impossíveis).
Aparentemente, segundo os críticos, a parceria entre Jess e Duncan colocavam-nos numa senda que apontava desde logo a um culto da ironia, da distância mas ao mesmo tempo de uma genuína apreciação pelas mais variadas produções culturais, fossem elas vistas como eruditas ou populares, atitude que seria mais corrente a partir do final dos anos 1980 quer nas artes visuais quer na literatura. A palavra “mito” é repetidamente empregue, e apercebemo-nos dessa forma que há uma inscrição, se não na plena narrativa, pelo menos na fundação das condições para que possa emergir um imaginário com todas estas “peças”. Poderemos pensar mesmo que, no que diz respeito à técnica, metodologia ou processo mais corrente nestes trabalhos, a colagem, esta também pode ser vista como uma prática que implica um entendimento muito particular do “arquivo”, noção essa igualmente significativa no vocabulário crítico da filosofia da arte e outros campos. O arquivo não é uma figura objectiva de um repositório que supostamente encerrará todos aqueles objectos do passado que constituirão, depois (pois um arquivo trabalha sempre sob o signo de um tempo posterior), uma herança, uma tradição, um legado, mas antes o próprio processo de uma escolha, ele mesmo revelador de opções, circunstanciais ou ditadas por quaisquer princípios ideológicos que se mascaram a si mesmos, para chegar à tal ilusão de objectividade. Como escreve Jacques Derrida num seu ensaio decisivo, “Mal d’archive. Une impression freudienne”, o arquivo “nunca será memória ou anamnese enquanto experiência espontânea, viva e interna. Bem pelo contrário, o arquivo tem lugar no lugar da quebra originária e estrutural dessa mesma memória”. É no fim da memória que o arquivo emerge.
Por outro lado, aproveitando as lições de Ann Cvetkovich sobre Fun Home, de Bechdel, em torno igualmente do conceito de arquivo, poderemos entender que este aproveitamento material do recortado numa nova superfície e plano de composição que não procura a ilusão da coerência ou continuidade visual como uma forma de dar a ver a impossibilidade de assimilar a memória. Isto é, estes fragmentos ou elementos recuperados tornam-se parte de uma nova unidade de significado, mas são eles mesmos, ou mesmo no seu conjunto, signo da parcial emergência de uma unidade de sentido, de narrativa, de naturalização. A apropriação, portanto, nunca se disfarça a si mesma, ao contrário da ideologia. E permite, ela mesmo, no surgimento então de novos mitos. É possível então que a sua conjunção num novo objecto livresco possa levar à sua mais feliz circulação.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro, a Filipe Abranches, pelo empréstimo da(s) Tonto(s), e a Marcos Farrajota, por uma correcção importante.
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