Tal como ocorre no livro dedicado a Jess Collins, também este outro volume se concentra num “capítulo”, digamos assim, de um artista. Neste caso, reúnem-se todos os trabalhos produzidos por Brainard nos quais estão presentes referências a Nancy, a personagem da famosa tira de banda desenhada de Ernie Bushmiller.
O denominador comum com Jess Collins terá a ver, em primeiríssimo lugar, com o processo de apropriação. Mas onde Jess seguia parâmetros de apropriação ao nível material, através da colagem de elementos anteriormente fabricados, Brainard apropria-se somente do ícone (no caso das imagens) ou da personagem/nome (no caso dos textos), remetendo a outro nível de re-criação e re-construção. Outro aspecto em comum parece-nos ser a genuína relação de afecto que ambos os artistas nutrem pelo material que citam. Vários críticos explicitam que a relação que Brainard estabelecera com esta personagem não era da mesma têmpera que aquela, mais generalizada, entre os vários nomes maiores da Pop Art - com a qual temporalmente partilha factores e palcos - e os vários ícones oriundos da cultura popular, da cultura de massas, comercial, industrial. Ao passo que as sopas Campbell, os Kennedy ou as vinhetas extraídas da banda desenhada eram, nas mãos respectivas de Warhol, Rauschenberg ou Lichtenstein pura e simplesmente matéria pronta a reempregar enquanto simbólicas de um certo estatuto da produção humana na economia dos valores, e, portanto, apta a um discurso secundário que desmontava as fontes ou as confrontava com outras estruturas de pensamento, Brainard, mesmo não totalmente na ausência desses meta-discursos, acabava por revelar uma espécie de admiração ou amor por esse mesmo objecto.
A repetição das Nancy apontaria a uma obsessão, mas a colecção de textos, de amigos, do editor do livro, do próprio artista, que esta antologia comporta impede-nos de fazermos qualquer reificação dessa mesma relação. Ron Padgett, um dos amigos, por exemplo, mostra como interpretar o significado de Nancy a partir da ideia da homossexualidade de Brainard seria erróneo, até mesmo em termos históricos ou locais, já que o termo “nancy” ou “nancy-boy” (equivalente a “maricas”, por exemplo) não era empregue na infância e adolescência do artista, no Oklahoma. Portanto, não haverá tanto uma “identificação” entre Brainard e Nancy - naquele sentido pobre que discutimos a propósito de Hellblazer -, mas antes uma afinidade com aquela personagem por razões artísticas, entendidas estas da forma mais profunda possível, que abarque aspectos icónicos, figurativos, plásticos, formais, conceptuais, mas sobretudo de afinidades afectivas.
Brainard parece atravessar toda a espécie de possibilidades de empregar Nancy. “Inscreve-a” numa folha de rascunhos famosa de Leonardo, sobrepõem o rosto dela numa fotografia de infância de André Breton, cria-lhe pinturas, pequenas colagens (entre as quais uma relativamente conhecida capa para a revista Art News Annual no. 34), cria bandas desenhadas em colaboração com poetas tais como Ted Berrigan, Ron Padgett, Bill Berkson (porno na qual “participa” ainda o Henry de Carl Anderson) e Frank O’Hara, cria uma série de desenhos lançando Nancy em situações hipotéticas (“Se Nancy fosse um cinzeiro”, “se fosse uma personagem dos underground comix”, “um De Kooning”, “um Larry Rivers”, “se tivesse uma afro”). Além do mais, Brainard era também escritor, tendo criado uma autobiografia original com I Remember, caracterizado por abdicar de uma forma clássica de organização diegética, e coligir uma série de frases todas iniciadas “I remember…” O livro reúne todos os materiais textuais, estranha mescla de auto-ficção e manifesto, que falam directamente da sua personagem-fetiche, revelando parte do fascínio que ela exercia em Brainard e do enigma assim constituído.
Este volume não reúne todos os trabalhos que alguma vez Brainard criou com a Nancy, já que é apresentada uma relação no final do mesmo de trabalhos ausentes (por razões editoriais e dos proprietários). Mas a forma como os que estão presentes são reunidos pretende ser não só a de uma tipologização cabal mas estimulante aos diálogos internos.
Se a propósito do livro de Jess nos referimos a Spiegelman, neste caso também deveríamos recordar os trabalhos de “mixagem” de Nancy feitos por Mark Newgarden, a saber, a história “Love’s Savage Fury” e o ensaio escrito com Paul Karasik “How to Read Nancy”. Mas se nestes casos o que se procura estudar é a sobejamente conhecida plasticidade minimal e modular do universo gráfico de Bushmiller (já agora recordemos o jogo Five Card Nancy inventado por Scott McCloud), no caso de Brainard há mesmo uma pesquisa por um uso quase cabal da mesma, uma espécie de “vestir-se” com Nancy, mesmo nos seus sentidos travestidos e sexuais. Ann Lauterbach, no seu ensaio introdutório, cita Susan Sontag, das suas “Notes on ‘Camp’”, de 1964, no qual ela o define como “um solvente da moralidade (…) Aprecia, mais do que julga, os pequenos triunfos e intensidades estranhas de ‘carácter’… Camp é um sentimento afectuoso” (18).
Lauterbach chama o “casal” Brainard-Nancy “perfeito”. E a diversidade tremenda dos trabalhos em todos os aspectos revelará muitas emoções, humores e até decências, se assim quiserem, mas todas se unem num terno afecto, quem sabe não apenas do artista em relação à sua “musa”, como da personagem em si face ao seu apropriador.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
Sem comentários:
Enviar um comentário