Apesar do texto de Unearthing, de Alan Moore, já existir há mais de seis anos, a razão que nos leva a escrever sobre ele neste momento é sua edição “de luxo” pela Top Shelf. Um monumental volume de mais ou menos 22 por 30 cm, de capa dura, de edição limitada, e que traz uma dimensão “ilustrativa”, através das fotografias de Mitch Jenkins [com um cartão em letterpress, assinado por ambos autores, numa edição ainda mais especial, de 300 exemplares, que serviu de incentivo e garante da impressão, um dos modos mais usuais de pequenas editoras, como é o caso, de assegurarem o sucesso comercial das suas empresas].
Não é o primeiro texto que Moore cria sem ter, numa primeira fase, uma sua dimensão visual, se bem que mesmo os contos, poemas ou outro tipo de projectos textuais que se pretendiam como tal, sem mais, cedo ou tarde ganharam uma sua adaptação, se bem que nem sempre interessante (precisamente por ser adaptação, e não um projecto pensado de raiz). Mas Unearthing acaba por se tornar um nódulo extremamente curioso, já que nasce e mergulha de novo numa complexa constelação de colaborações.
Uma forma de tornar explícito o que “isto” é, é chamar-lhe biografia. O objecto de inquirição de Unearthing é um amigo de longa data e mesmo mentor de Alan Moore, Steve Moore. Apesar da coincidência dos apelidos, não são do mesmo sangue, se bem que sejam já família há muito tempo. Conhecendo-se desde a adolescência (Alan tinha 13 anos, Steve era um jovem adulto), Steve foi quem, de certa forma, “ensinou” Alan a tornar-se um melhor escritor para banda desenhada, introduzindo-o ao mundo da 2000 AD e, mais tarde, partilhando o caminho de entrada na via real da magia e do ocultismo. Neste último campo, ambos os Moore preparam uma espécie de compêndio sobre magia para a Top Shelf, ainda sem data marcada.
Mas “biografia” não é um descritivo preciso, ou totalmente correcto. É tão-simplesmente uma categoria que serve de armadilha para aprisionar algo que escapa em larga medida a quaisquer possibilidades de categorização. Talvez esse seja apenas o termo da desculpa para tecer um objecto textual que desdobra considerações psicogeográficas de um local “electrificado” pela vida de Steve Moore, que aparentemente nunca saiu de um espaço relativamente confinado, desde que nasceu até à sua idade actual (61 anos). Assim, Unearthing é também uma história mística de Londres (à la Iain Sinclair ou Peter Ackroyd) - ou mais especificamente Shooter’s Hill, no sul da cidade -, uma saga de uma viagem espiritual e das travessias mágicas de S. Moore, e uma composição livre, que alguém já havia comparado ao jazz.
O texto em si já havia sido escrito em 2006, e publicado, aparentemente, na antologia London: City of Disappearances, editada precisamente por Iain Sinclair. Graças a várias versões ou formas de leitura pública do texto, em 2010 ganharia uma dimensão sonora através de um projecto que reunia variadíssimos músicos (com nomes como os de Zach Hill, Stuart Braithwaite, Justin Broadrick, Adam Drucker, dos cLOUDEAD, e Mike Patton, mostrando desde logo uma compreensão bastante alargada do que se pode constituir enquanto camada musical), em que Moore lê os textos integrados em ambientes sonoros post-noise, uma espécie de audiobook com contornos de spoken word. Moore lê os seus textos de uma maneira cadenciada, com um sotaque muito particular, e que, sublinhado pelos sons que envolvem a voz, ganha uma qualidade quase hipnótica, seguramente pretendida.
Finalmente, uma dimensão visual e de estruturação veio a ser garantida na colaboração com o fotógrafo e realizador de videoclips britânico Mitch Jenkins, que, como Moore, é de Northampton, e com quem já havia trabalhado na revista Dodgem Logic. Jenkins trabalha sobretudo no mundo comercial da publicidade ou do glamour televisivo, sendo um profissional muito afamado trabalhando na camada superior desses mundos, o que se notará pelos tiques técnicos (determinadas formas de tratar a composição, a diferenciação de planos, a escala cromática e a iluminação, os retoques em Photoshop, etc.). A colaboração com Moore poderia ser vista, do ponto de vista financeiro, uma “descida”, mas em termos de criatividade, liberdade, estímulo intelectual, Jenkins confessa que foi como novo oxigénio. Trabalharam nalgumas imagens, incluídas no box set dos CDs e Lps, depois no livro que agora temos em mãos, e além do mais, têm colaborado numa série de filmes curtos que comporão uma unidade maior intitulada The Show, de certa forma sobre o bas fond de Northampton. Na internet, podem-se ver, até à data, o “prelúdio”, Act of Faith, e o trailer de Jimmy’s End. Numa primeira abordagem, parece-nos que o tipo de intensidade a que Moore nos habituou em determinados títulos da sua lavra na banda desenhada não encontra no cinema a mesma felicidade. O primeiro filme até parece firmar a contínua crítica a Moore de que parece de alguma forma obcecado pelo sofrimento das mulheres, mormente associada ao sexo. No entanto, é necessário que todo o projecto (multimédia, hipertextual) arranque para termos uma imagem mais consistente e definida do mesmo. E no que diz respeito à visualização permitida por Jenkins, a ela voltaremos.
Não obstante, todas estas linhas de desenvolvimento, na verdade, influenciam-se umas às outras, num natural processo circular de linhas de desenvolvimento, soluções, estruturas, e feedback. Se o texto se encontra no centro da tempestade, por assim dizer, a tempestade em si alimenta-se das várias zonas de fricção entre os colaboradores.
Daí que a experiência deste livro foi feita por nós de uma maneira muito expectável, acompanhando os textos, pelo menos numa das fases, ao som da voz de Alan Moore a partir as gravações musicadas, tentando compreender os pontos de convergência e de divergência entre, por um lado, os ritmos construídos e harmoniosos entre a voz e os sons, e, por outro, pelo arranjo tipográfico do texto e os contrapontos fotográficos. Se são duas estruturas diferentes (ou mesmo duas estruturas duplas, por serem “diálogos” entre texto escrito e imagem, e entre texto oral e música), haverá momentos que nos estimulam a imaginar ora harmonizações felizes ora dissonâncias significativas.
A leitura, desta forma, permite compreendermos o texto, que não deixa de ser denso e complicado quer pelas suas referências, as quais exigem erudição, quer pela sua qualidade gramatical, nem sempre imediata. Escutar apenas os textos poderia tornar-se eventualmente obscuro para a esmagadora maioria do público (mesmo o anglófono), e somente lê-los lançar-nos-ia na possibilidade de ritmos desconexos. Nesta opção, ambas as dimensões guiam a atenção e reforçam o foco, absolutamente necessário num trajecto tão pouco linear e de contornos difusos.
O livro não se encontra organizado propriamente num conjunto de capítulos, que pudessem corresponder às faixas do projecto musical, mas é possível, se assim quisermos, entender algumas das separações como criando unidades textuais. De resto, não há uma correspondência directa entre os “intervalos” das faixas e a composição do texto no livro. Se uma primeira parte se pode entender como introdutória, fazendo-se uma larguíssima e densa história de Shooter’s Hill e a sua área circundante - desde a pré-história geológica até a conquista romana, passando pela expansão isabelina e a era industrial, os ataques da Luftwaffe e a miséria dos anos Tatcher -, rapidamente se coloca a tónica na vida da família de Steve Moore até se chegar aos acontecimentos pertencentes à sua vida: formação, escola, primeiras relações amorosas e grandes tragédias do coração, os primeiros empregos, as primeiras obras e as conquistas da carreira, os percursos, o início do fascínio, fortuito aparentemente, com Selene, o pequeno retrato que faz [mostrado acima], e a consequente formação dela numa ideia mais forte, até se coalescer em algo sem descrição lógica. A um só tempo, há uma organização lógica e a possibilidade do seu desvio, as mais das vezes conseguida pelo conhecido burilar textual de Alan Moore, que associa através de adjectivos ou fugas de atenção um qualquer pormenor prosaico às suas associações quasi-universais, sempre para sublinhar as coincidências maravilhosas que o mundo ainda permite, a quem quiser olhar com olhos de ver.
O texto entra e sai das mais variadas escalas: humana, geológica, animal, vegetal, cósmica, histórica, mágica. Não há forma de dar forma sinóptica ou explicativa de todos os seus elementos, que não são propriamente livres, num movimento browniano, mas que exercem uma qualquer força gravitacional entre si, permitindo elos subtis e afinidades electivas entre os fósseis selenites rhomboidalis e o planeta Uniceptor IV, da série Dr. Who. Uma das frases do primeiro capítulo parece ser suficientemente programática: “[Steve Moore] dreams [Shooter’s H]ill. The hill dreams London”. Mas não se julgue que o sonho surge somente como portão ou passagem. Não há nenhum aspecto da vida que não possa encontrar uma forma de ser trabalhado enquanto ponto de significação. Mais, muitos aspectos domésticos, e até mesmo sociais e políticos, são sublinhados precisamente para deles se libertarem com maior força e efeito as dimensões mágicas.
Pois apesar de tudo, se há progressão na “diegese”, ela dirige-se à tal relação com Selene, ou pelo menos com a Selene que Steve Moore conjurará para si mesmo. As referências aglomeram-se: Crowley, Algernon Blackwood, a tulpa, o sistema do I Ching; tudo isso na contínua exploração do espaço que a magia tem no mundo. Os momentos de maior intensidade aural, no projecto musical, são precisamente os rituais que deram fruto: o primeiro passo quando escuta, num sonho premonitório, a palavra “Endymion”, às quatro da manhã em Outubro de 1973, o encontro com Alan a 7 de Janeiro de 1994 (possivelmente o primeiro momento em que Alan veio a conhecer Glycon, o “seu” deus), e finalmente - na economia da narrativa que nos é dada a seguir - o desvendar de Selene a Alan no início de 2001. Em várias entrevistas, Alan Moore já expôs como interpretou estas experiências, não descartando a noção de uma alucinação, mas nem evitando que ela faça parte da experiência, logo, real da própria pessoa, ou que ela não possa ser fruto de uma partilha com outra pessoa (que é precisamente o caso dos dois Moores) ou que altere a forma de compreender o universo. Assim sendo, Unearthing pode ser tanto lido como pura ficção, como efabulação obscurantista entre os dois amigos, ou a criação de um diário sobre o acesso a outro reino de experiências.
Tal como Alan Moore tem como seu totem - não é o termo exacto - o deus-boneco-serpente Glycon, Steve Moore elegeu a deusa grega Selene como sua figura maximal (num momento em que Alan se introduz a ele mesmo no tecido da narrativa, recorda-nos que é Steve também o mentor e percursor nessa senda). Steve havia encontrado uma espada divinatória chinesa, feita de moedas, e num ritual improptu foi encontrando respostas ou estímulos às decisões que precisava de tomar, levando-o então a uma relação duradoura com aquela figura divina. A compreensão de “magia”, neste contexto, é muito específica, e nada tem de mistificadora, mas bem pelo contrário, relaciona-se com uma compreensão profunda dos espaços que ainda existem de liberdade e total decisão humana nos interstícios da lógica, da racionalização ou da escala “humana”. Menos do que obscurantismo, tem antes a ver com uma aceitação da estranheza que ainda não controlamos. De certo modo, a pesquisa que Alan Moore faz do local onde o amigo Steve vive, Shooter’s Hill, levou-a a uma compreensão causa-consequência sobre a origem da cidade de Londres, já que aquele local foi “criado” pelo colapso de um leito de giz, que por sua vez levaria à formação do vale do Tamisa e, logo, à possibilidade da fundação da cidade. Um dos eixos principais, senão mesmo aquele que mais importa, e que se deve notar em todas as considerações sobre a produção destes projectos, as relações entre as pessoas, e as dimensões da vida quotidiana e a vida “mágica”, é a da existência do feedback, que em português se diz “retroalimentação”, isto é, aquela parte de matéria que é ofertada ao mundo e que acaba por regressar e alimentar a fonte. Os rituais de magia, assim, são compreendidos como gestos que de uma maneira ou outra acabarão por exercer uma qualquer espécie de força e manipular o mundo de que partiram. É exercer uma vontade, por exemplo através da escrita, que se manifestará no mundo. Unearthing está cheio desse tipo de relações, tal como muitas das discussões de Moore em entrevistas, ou outros autores.
Ta como noutros trabalhos de Moore, acima de tudo Promethea, espécie de compêndio-através-de-uma-narrativa, a “magia” aqui não é entendida de forma alguma como uma forma de ilusão, truques de cabaret, ou princípios organizativos de uma qualquer seita. Aliás, a forma como estes dois autores se desligam de grupos organizados e auto-proclamados demonstram a total liberdade não só da prática como do conceito. O problema está em deslocar essa poderosa ideia de todo um edifício de mistificação e popularidade facilista. Repescando a ideia de Crowley de que a magia é uma “doença da linguagem” (também no documentário The Mindscape of Alan Moore este discute a proximidade de “gramática” e “grimório”), lemos neste livro o seguinte: “A maior parte da população tornou-se imune [a essa “doença da linguagem”, com o seu “vocabulário aceso e a sua sintaxe alucinada”] devido a C. S. Lewis, Tolkien, J. K. Rowling, Buffy, através da exposição ao vírus sob a forma de uma cultura morta, algo que forçará anticorpos que não aceitam ilogicidades, e os quais surtirão efeito sem o perigo de um encantamento totalmente desenvolvido. Textos que agem como desinfectantes, linguagem pasteurizada para consumo vulgar, com todo o bolor azul ontológico raspado”… Mas o que se pretende é mesmo uma intoxicação com esse bolor, um encantamento total que retire quaisquer referências e lance as pessoas num novo e alargado quadro existencial. “A ideia de deus é o deus”, escreveu o autor uma vez, impedindo desde logo a assunção de sistemas ou dogmas ou caminhos perigosos de hierarquias. O que importa é formar um caminho particular, e que tem tudo a ver com acção, não recepção.
Por isso, Unearthing serve para ser lido e ouvido e visto como um programa que tenta colocar em acção, noutras dimensões, o texto, e de certa forma convidar não apenas a conhecer a história - crendo nela - de Steve Moore, mas igualmente a novas acções.
As relações entre os sons e as imagens e os textos são por vezes claras, directas, “ilustrativas”. Algumas das fotografias de Jenkins pura e simplesmente mostram aquilo que se fala no texto, desde uma representação de Anne of Cleves (baseada na pintura de Holbein, mas mais velha), a um campo de golfe com uma bandeira caída para dar conta da morte do pai de Steve, passando por personagens que o representam a ele mesmo, a imagens de uma taberna antiga local. Outras abrem mais a interpretações deslocadas, mas no cômputo geral tudo é particularmente domesticado, por assim dizer. Numa entrevista sobre os filmes que estão a produzir, e respondendo a uma comparação que alguém fizera com a cinematografia de David Lynch, Mitch demonstra logo a sua pretensão de naturalizar as coisas, quando diz que, ao contrário do realizador norte-americano, ele deseja “explicar” as histórias e personagens, deseja que os espectadores compreendam os contornos da ficção. Contudo, não nos parece que isso seja particularmente enriquecedor, sobretudo se estamos perante um programa de esclarecimento, e não de abertura de espaços interrogativos, que é o que a arte deve criar. Quanto aos sons, estes são por vezes limitados igualmente a aspectos claros - Zach Hill a martelar complexamente a bateria no rápido progresso histórico de “Wappling Street”, sons mais violentos nas descrições decisivas nas conquistas indicadas por Moore, etc.
Há uma grande legibilidade de todo o projecto, mas não deixa o design de recordar práticas dos anos 1990, sim, com a Raygun acima de tudo. A acumulação das mais variadas fontes, a construção de parágrafos livres, certos tipos de “ruído” na sua composição, a utilização de toda a espécie de fotografias, inclusive fotogramas, fita-cola, rasganços, anotações “manuais”, o isolamento de palavras em algumas composições para efeito dramático, o uso de situações encenadas e altamente produzidas, a oscilação entre imagens quase escuras, nocturnas, e outras claramente manipuladas e “publicitárias”… tudo discursos mais ou menos perenes e tipificados do mundo comercial de que Jenkins emerge.
Nota: todas as imagens colhidas da internet ou dos materiais promocionais.
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