Queremos deixar aqui apenas uma nota brevíssima sobre uma pequena publicação recebida do Brasil, associada à revista (e site) Beleléu, e que parece tratar-se de um formato retomado de experiências anteriores (se bem que o número 1565 pareça ser mais jogo mítico do que real). (Mais)
Pequeno e picante exercício oubapiano, o ponto de partida do projecto é um brevíssimo poema (julgamos poder descrevê-lo como tal) de Stêvz: “A noite me envolvia quando François apareceu, misterioso e sedutor/Nossos corpos trêmulos se tocaram/No estupor do momento, perdi a razão/Nunca mais o vi, jamais o esqueci”. A partir daí, esse texto é associado às mais díspares situações que partem desde um pressuposto “natural” - as relações amorosas de um casal - aos mais inesperados encontros de objectos. Se começamos com uma cena entre um típico rei e uma rainha de um baralho de cartas, passamos por secções de órgãos humanos, dois pugilistas, duas peças de xadrez, um alienígena e uma mulher raptada, um mosquito e a sua presa, chaves e fechaduras, aspirinas e copos de água, peças de roupa e a máquina de lavar…
Desta forma, é muito curioso que o texto, o qual se revesteria da função de “ancoramento”, segundo Barthes, perca a “dimensão repressiva” do semiólogo. Quer dizer, ele acaba por se revelar suficientemente aberto à interpretação - sempre provida de um grande humor, naturalmente - dos autores, que conseguem destrinçar nele desde confissões de uma intimidade emocional comovente (a relação de amor) à mais desbragada das sexualidades (a mão e o pénis), passando por estranhos enleios quase-mecânicos (duas células fundindo-se) ou relações desapaixonadas e biologicamente necessárias (uma orca comendo um pinguim). Algumas das ideias repetem-se de uma forma muito próxima, imaginando-se ora coincidências de solução adaptativa ora de colaborações laboratoriais. Assim, este livro poderá servir como um exemplo idêntico aos “exercícios de estilo” famosos de Matt Madden, ou os vários volumes da Oubapo, de plataforma conducente a novos exercícios, questionamentos e práticas espoletadoras de criação.
O texto é adaptado à banda desenhada por um conjunto de 12 autores, a saber, Daniel Carvalho, Daniel Lafayette, Eduardo Arruda, Eduardo Belga, Elcerdo, Koostella, Ltg, Mateus Acioli, Pablo Carranza, Rafael Campos Rocha e Rafael Sica (um autor com um trabalho bem desenvolto num campo misto entre o experimental, o absurdo e a tira “clássica”, e que possivelmente revisitaremos em breve). Alguns empregam desenho a linha, outros optam por manchas de cor mais difusas, e há também manipulação digital de recortes ou de fotografias. Existem abordagens próximas de um humor tipificado, inclusive em termos de figuração, das tiras de banda desenhada, e outras que recordam cenas mais alternativas, íntimas e contemporâneas. Materialmente balançamos entre as imagens mais claras e as mais vagas, entre a nitidez do propósito e uma mais obscura tradução. Quase todos os autores optam por uma estruturação de 2x2 vinhetas, mas existem excepções, que não apenas confirmam a naturalidade “da tira” como abrem espaço às suas variações, sempre corroborando, portanto, a multiplicidade infecciosa de todos os trabalhos.
De certa forma, por razões paratextuais, de contexto editorial e de circunstâncias da recepção pessoal, este volume pode ser visto como companheiro do novo romance-pastiche de Bruno Azevêdo, A Intrusa, de que daremos conta em breve.
Nota final: agradecimentos a Bruno Azevêdo, pela oferta da publicação.
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