5 de setembro de 2013

DC, The New 52 (Comic Books, parte 3).

Em 2011, a DC resolveu repetir uma política interna de “limpeza” do universo narrativo, mas levou isso a um novo paradigma: diminuiu todos os títulos mensais a um número mais fácil de gerir (52 títulos, supostamente), alterou a imagem, coordenou as equipas editoriais de um modo diferente e, mais importante, resolveu recomeçar todos os títulos, inclusive reformulando as personagens do zero, “deitando fora”, digamos assim, todas as histórias anteriores, para que houvesse um verdadeiro reboot. Ter-se-ia que estudar personagem a personagem para entender o que é que foi alterado e o que continuado (na verdade, tentar compreender a questão é complicado, porque é tudo uma gigantesca confusão). Quando falámos de Hellblazer, por exemplo, já acompanhávamos a série Justice League Dark, iniciada por Peter Milligan (que reduzira Constantine a uma caricatura vazia), depois substituído por Jeff Lemire, e com os desenhos sólidos de Mikel Janin, mas as primeiras histórias não tinham qualquer frescura. Aliás, uma crítica repetida por muitas frentes é que essa alteração tem mais razões económicas e negociais do que narrativas e estéticas, não se revelando nada de especial nos títulos. E se na frente dos negócios a aposta da DC foi ganha numa primeira fase, perguntamo-nos se será sustentável a longo prazo, face à forma mais expedita e coordenada que a Marvel gere a sua riqueza de personagens. Basta reparar que a Marvel tem um número maior de personagens conhecida do grande público do que a DC (compare-se, apenas a título de exemplo, as colecções Marvel e DC da Levoir).
Um mesmo sentimento de aborrecimento atravessou-nos ao tentar ler os dois, três primeiros números de Demon Knights, de Paul Cornell, mas não era possível dar-lhe continuidade. Cornell também ficara com Stormwatch (agora integrado no “universo” da DC) mas os desenhos de Sepúlveda retiram mesmo a vontade de ler a série. Tal como ocorrerá em muitos outros projectos, há uma espécie de interesse em conceitos ou ideias e estratégias criadas por autores maiores do género (estamos sempre a bater em ideias lançadas por Alan Moore ou Warren Ellis, por exemplo, óbvias razões nestes títulos citados), mas apenas explorando-se os efeitos de superfície, nunca as estruturas de fundo.
Outro exemplo: quer Animal Man e Swamp Thing parecem herdar as mesmas personagens anteriores, e até a construção de uma história paralela que depois se viria a cruzar tinha elementos empolgantes. Infelizmente, não apenas se arrastavam as coisas – possivelmente para coordenar ritmos criativos distintos – como ainda quiserem estender esse cruzamento (crossover) a outros títulos e acontecimentos no interior do “universo DC”, e mais uma vez isso rompeu o interesse e paciência. Animal Man estava nas mãos de Jeff Lemire (uma prova de que nem sempre autores “alternativos” trarão novos impulsos ao mainstream, como no caso de Brubaker e Bendis, se essa oposição fizer ainda algum sentido) e os artistas Travel Foreman e Steve Pugh, Swamp Thing nas de Scott Snyder, com Yannick Paquette (e interrupções péssimas). Ambas sofrem do tipo de intervenções editoriais a que provavelmente se vêem obrigados, ao invés de terem espaço autónomo de desenvolvimento e projecto. Destes dois títulos, em termos visuais, importa seguir com atenção e admiração o trabalho de Paquette, herdeiro das composições de página criativas (ou “decorativas”, num descritivo de Benoît Peeters) de um J. H. Williams III, mas também da era áurea de Bissette e Totleben com a mesma personagem. Uma das discussões preferidas dos fãs é saber se é a Marvel ou a DC que tem os melhores escritores, os melhores artistas, as melhores equipas, etc. Parece-nos, e depois de algumas discussões com outros seguidores, que a DC deixa uma maior responsabilidade no avanço dos seus projectos nas mãos dos escritores, até por ter como editores máximos os autores Dan DiDio e Jim Lee, mas sem que isso signifique melhores resultados gerais. A nosso ver a gestão da Marvel, que conta igualmente com uma boa coordenação dos editores e equipas criativas, tem levado a cabo melhores decisões (apesar do que foi dito nos posts anteriores).Ora, isto é muito diferente do que ocorreu em determinados momentos ou mesmo projectos pontuais desta editora, como se pode confirmar por alguns dos volumes que têm sido editados em português pela Levoir: nessa colecção, encontrar-se-ão alguns volumes que, na óptica do “arco narrativo” fechado num trade paperback – neste caso, um ou dois, e volumes de capa dura, mas o princípio é o mesmo -, são capazes de oferecer uma narrativa autocontida e satisfatória, e não necessariamente armadilhas que obriguem a ler mais outro e outro título… (esperamos vir a dar conta autonomamente dessa mesma colecção).
Precisamente pela dimensão da escrita ou narrativa, tivemos também uma viva curiosidade em seguir Dial H, porque era escrito por China Miéville, no que acreditamos ser a estreia na banda desenhada do escritor do fantástico, e uma vez que se tratava de um conceito divertido ainda que pateta: inventado nos anos 1960, a ideia é que quem usar uma espécie de telefone, ligando as letras H,E,R e O transforma-se num qualquer super-herói, sempre diferente e sempre fora do comum. Meio cómico, meio de acção, o título tinha algumas pérolas de alucinação, repetidas aqui (Boy Chimney, Captain Lachrymose, Pelican Army, entre outros). A entrada de Miéville fazia imaginar a possibilidade de experimentações inusitadas, um uso do género para direcções novas, um pouco à la Vertigo nos seus passos iniciais. Mesmos os desenhos de Mateus Santolouco, muitas vezes com soluções de composição menos comuns, e sempre de uma competência proporcional ao projecto, não seriam suficientes para manter vivo o interesse. A intriga arrasta-se a um ponto insuportável, a escolha pela repetição/variação, ou “prismatização” dos conceitos internos atinge níveis absurdos e que em nada servem a ideia central, e o que começou com um tom vivo foi perdendo ímpeto.
A dimensão económica, voltamos a repetir, é importante, e não somos a pessoa mais informada sobre essa dimensão, mas a verdade é que quase todos os indicadores apontam a um aumento de vendas relativo da DC em relação à Marvel (de longe, são elas que lideram o seu mercado, com a Image a Dark Horse longe dos seus números, ao passo que a Fantagraphics, a Drawn & Quarterly, etc. trabalham para nichos totalmente diferentes). No entanto, nada desses números deve surpreender a indústria, e os quais, quando comparando com os resultados de outros ramos do negócio (televisão, filmes, merchandising, etc.), é na verdade vulgar. O que deveria importar, porém, é o impacto estético, emotivo, sobre os leitores. Ora, na DC, aquele tipo de expectativas goradas é, em termos pessoais, um padrão demasiado repetido.
Uma vez que o interesse em seguir o novo Batman, depois de Night of the Owls de Scott Snyder esmoreceu, e o novo Super-Homem de Morrison era desprovido de quaisquer características interessantes (Morrison tentou regressar à personagem original de Siegel e Shuster, o defensor do New Deal, proletário e altaneiro, mas acaba por criar apenas um bruto jovem imbecil, anos luz do seu próprio All Star ou até do “clean cut” de Geoff Johns e Gary Frank, dupla que produziu duas histórias interessantes, sobretudo para “outsiders”), esperava-se usar a leitura de Batman/Superman, escrito por Greg Pak e desenhado pelo ultra-estilizado Jae Lee, para servir de porta de entrada à nova vida destas personagens. Porém, deparamo-nos com uma estrutura narrativa que os lança em travessias de universos paralelos que os colocam face a face com as mesmas personagens do universo referencial que foi substituído pelo New 52. Ou seja, para criar histórias que relançassem ou reconstruíssem estas personagens, utilizam-se afinal as personagens que já vinham de trás. Isto retira todo o tipo de credibilidade que poderia existir ao esforço de construção de personalidades que se imaginaria… Assim, o único título seguido com algum interesse foi o de Grant Morrison et al., Batman Incorporated. Na verdade, deveríamos acrescentar aqui todos os títulos associados a Batman que estiveram sob a alçada de Morrison nos últimos sete anos, com uma bateria de artistas, quase todos abaixo de uma média convencional (o momento com Quitely foi alto, mas não se coordenava tão bem como no caso de All Star Superman, e Chris Burnham, que fechou a saga, é tão convencional e normalizado que custa atravessar a leitura). A história longa é complexa: Batman descobriu ter um filho com a Talia Al-Ghul, chamado Damian, o qual se tornaria um novo e violento Robin, depois Batman “morreu” (veja-se o volume da Levoir sobre o seu “funeral”, Herança Maldita), caindo num vórtice temporal (o seu regresso implicou aventuras como homem das cavernas, pirata, justiceiro dos cristãos na América do século XVIII… as nossas desculpas), todos os para-Batman andaram à batatada para ver quem herdava a capa de morcego, vislumbrou-se um possível futuro em que o Batman Damian seria uma espécie de demónio, depois Bruce Wayne regressou, resolveu fundar uma multinacional de Batmen à escala global, teve de combater contra um inimigo que planeara uma teia planetária, Damian morreu e seguiu-se a vingança e conclusão previsível. O balanço final desta montanha russa, todavia, é fraco. Se Umberto Eco explicava como (na sua época, referindo-se às décadas de 1950 e 1960) cada comic book lançava uma aventura que o herói superava regressando ao status quo inicial, agora temos as mesmas personagens a atravessar arcos maiores, durante anos, e “eventos”, etc., para depois regressarem de novo ao “tudo na mesma”, retirando no fundo qualquer tipo de impacto emocional verdadeiro ou desenvolvimento perene. O surgimento e a morte de um filho, daqui a uns anos, será uma nota de rodapé, e não um momento decisivo e formador, como já foi noutros momentos: a morte de Gwen Stacy, por exemplo (também publicada em português, na colecção Super-heróis Marvel). Neste aspecto, Morrison é contraditório e aqui se demonstra que ter no currículo Arkham Asylum ou Gothic não significa automaticamente que se vá criar novos episódios interessantes com a mesma personagem. Neste run, Morrison criou uma personagem genuinamente interessante, Damian, a qual poderia vir a ter espaço para crescer e até alimentar os arcos narrativos futuros, assim como introduzir de uma forma decisiva a questão do tempo e mortalidade diária (o envelhecimento de um Batman pai face a um filho biológico), mas preferiu despachá-lo de uma forma algo gratuita. Claro que, considerando as coisas e a última imagem do comic book, é possível que possam vir a surgir clones e dezenas de filhos do Batman, mas mais uma vez é a opção barata ex machina. O momento alto do run, seja como for, está no conceito de conseguir incorporar, em retrospectiva, todos e quaisquer episódios do passado de Batman na sua história psicológica (aquelas estranhas aventuras dos anos 1960 seriam uma espécie de alucinação, treino mental, etc.), sem a necessidade de os eliminar à la Crise nas Terras Infinitas. E assim todas as facetas ridículas ganham uma nova dimensão: a bat-vaca!
No interior da companhia DC Comics, ainda importará falar de um projecto particular, Before Watchmen, mas esse receberá um post próprio a seguir, tal como alguns volumes da colecção da Levoir.

Nota final: agradecimentos a F.L. e M.R. pelo empréstimo de algumas das séries. Imagens colhidas na internet e ficheiros digitais.

4 comentários:

  1. Artigo interessante, para variar.

    Novo 52. Comecei por achar interessante mas, neste momento, com a sangria de alguns dos seus cridaores, há a impressão do sintoma de uma grave doença.

    De qq modo ainda existem alguns titulos que resistem na minha coleção mensal. Até ver.

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  2. Caro Sam,
    Fico contente que tenha achado interessante, se bem que o seu "para variar" dá a entender que isso é raro. pergunto-me se se deverá ao facto de haver uma atenção para uma diversidade da banda desenhada que não lhe interesse a si, pessoalmente, mas que ultrapassa em larga medida a província do tipo de banda desenhada a que os posts actuais se referem. Nesse caso, há uma missão cumprida.
    O que diz de títulos "resistirem" é totalmente de acordo com o que acredito, e muitas das coisas que sigo são por vezes até contrárias ao que gostaria de admitir...
    Obrigado,
    pedro

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  3. Desculpe, o para variar era irónico, ou seja, estava querer dizer exactamente o contrário. Não acredito na net como fórum para ventilar palavras negativas sobre o que quer que seja.

    Estava fracamente a elogiar os seus artigos que acho repetidamente interessantes. Ás vezes a palavra escrita não tem o mesmo entendimento que a oral e peço desculpa pelo mau entedido. Falha minha!

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  4. Caro Sam,
    Não leve a mal também a resposta, pois uma vez que é raro haver comentários, ou usualmente negativos, e só quando se fala de coisas mais mainstream parecem abrir as comportas, pensei que seria pelo território. Agradeço as palavras, mas mais importante é que possa eu ir contribuindo, de vez em quando, com algo menos conhecido a ser descoberto por mais gente (já que sobe a DC e a Marel não é novidade nenhuma).
    Obrigado,
    Pedro

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