Antes de tecer algumas breves considerações sobre os títulos que compõem a série, permitam-nos um longo enquadramento. Como se sabe, esta série atravessou alguma celeuma ou “controvérsia”. Tomar uma posição “contra” ou “a favor” da existência de Before Watchmen, todavia, é um pouco estranho. Estes textos existem, estão disponíveis, não os ler não os elimina. Já a ideia de “boicote” pode ser mais pertinente, mas ainda assim cai numa série de contradições ou paradoxos, não sendo a reificação (o corrector automático propõe “deificação”, e não está longe da verdade) da obra “original” a menor.
Não pode haver dúvidas de que Watchmen foi um título decisivo. Ainda que a divisão da história da banda desenhada em “eras” (golden/dourada, silver/prateada, e por aí fora, chegando mesmo à retrospectiva era “de platina”) demonstre um certo provincianismo, uma vez que apenas faz sentido em relação ao género & formato específico dos comic books de super-heróis norte-americanos, a sua publicação estruturaria todo um feixe de forças que garantiu à banda desenhada como um todo, primeiro nos E.U.A. e depois internacionalmente, uma exposição que não havia tido até à data. Publicado em 12 números e depois coleccionado num volume em 1987, seria, juntamente com outro projecto do mesmo território, o The Dark Knight Returns de Frank Miller, e outro objecto totalmente distinto, Maus, de Art Spiegelman, a tríade que (re)colocaria a banda desenhada no concerto cultural. Na verdade, cada um desses objectos tem características distintas, e um papel determinado, e não se pode pensar que houve uma transformação automática. A palavra “graphic novel” foi ganhando cada vez mais cachet cultural, mas se por um lado essa conquista na praia intelectual, literária e académica apenas seria garantida com o surgimento de títulos tais como Persepolis e Fun Home, por exemplo, portanto já mais tardiamente, no caso da banda desenhada mainstream essa palavra serviria para duas coisas: uma nova forma de “reempacotar” a banda desenhada e, consequentemente (mas apenas nos anos 1990 isso seria assegurado), um acesso permanente à história de décadas do género. Se Maus conquistou peso cultural, os títulos de Miller e de Moore e Gibbons permitiram às grandes editoras Marvel e DC (praticamente sozinhas no mercado então) começarem a apostar em colecções de comics em volumes de capa brochada, os trade paperbacks, e a manterem esses mesmos materiais sempre acessíveis. Alan Moore era já considerado um nome importante e um valor novo na indústria norte-americana quando iniciou Watchmen. Apesar de não ser o primeiro autor britânico a “emigrar” (o trabalho, não ele-mesmo) para esse campo, a verdade é que seria ele o cabecilha da chamada “Invasão Britânica”, isto é, a “importação” de talento literário e artístico do Reino Unido para os Estados Unidos. Moore começaria essa onda com o seu mítico run de Swamp Thing (se bem que já tinha no currículo trabalhos “revisionistas” de super-heróis como Captain Britain e Marvelman/Miracleman), o que levaria a três consequências importantes: primo, contribuiria para o advento da Vertigo, uma editora subsidiária da DC que apostava em trabalhos mais “maduros”, explorando géneros como o terror, a fantasia e o fantástico, com misturas suficientes com géneros mais normalizados (super-heróis, western, ficção científica, etc.) e virados para leitores de perfis mais adultos e específicos; subsequentemente, secondo, isso abriria as portas a autores como Neil Gaiman, Jamie Delano e Grant Morrison, numa primeira fase, e a Garth Ennis, Warren Ellis e Mark Millar, mais tarde; este foco em escritores (apesar dos artistas Gibbons, Brian Bolland, Alan Davis, Chris Weston, etc.) levaria finalmente a, tertio, a emergência do culto dos escritores, transformando a economia de maior atenção dos fãs para com os artistas para estas novas super-estrelas, pace Stan Lee.
Sem entrar em pormenores que podem ser verificados noutras fontes melhores (Moore desistindo de trabalhar com a DC, abdicando de muitos dos direitos de autor para os artistas, esperando que lhe fossem devolvidos os direitos após o livro estar fora de circulação – relembremos que não costumava existirem “livros”, e muito menos reedições -, mas a DC mantendo-o precisamente para manter a “galinha dos ovos de ouro”, as suas duras críticas em relação à adaptação cinematográfica, etc.), o que interessa é que para os fãs, acólitos ou defensores de Moore – e não deixamos de pertencer a esse número, sem vergonha – este projecto surgia como crime de lesa-majestade, misturando-se também nesse sentimento uma ideia qualquer elevada de “autoria” e “autonomia estética” que, no fim de contas, não tem lugar nesta indústria. Ou melhor, tem, mas numa capacidade totalmente distinta da de outros territórios, e que deve ser compreendida como tal.
Nada do que sucedeu pode redimir a DC Comics, enquanto corporação, da forma como trata os seus artistas, como explora vampiricamente toda e qualquer das suas propriedades – mas, no fim de contas, não nos podemos esquecer que são suas propriedades – e como re-aproveita os interesses de um público volátil e sistematicamente em busca de novas “unidades de prazer”. Este caso, juntamente com toda a tinta que correu em torno da relação da DC com Siegel e Shuster, da Marvel com Kirby, o caso “Miracleman” e o caso “Angela” (envolvendo Moore, Gaiman, McFarlane, etc., e que por sua vez remonta ao caso legal que opôs o Super-Homem ao Capitão Marvel nos anos 1940-1950), e miríades de outros em torno dos direitos de autor na indústria norte-americana, encontra aqui mais um caso complexo e iluminador. E seguramente que fará um contraste curioso com o futuro projecto de Neil Gaiman, intitulado Sandman: Overture, em que é o próprio Gaiman a controlar a “prequela” da saga da sua personagem mais famosa. Um aspecto histórico importante é que Watchmen foi criado de uma maneira que sublinhava abertamente uma determinada “política de autores”, no interior do que era possível na indústria. Toda a série foi impressa em melhor papel, com uma capa cuidada e um design (então) arrojado e pouco convencional, não havia anúncios a interromper a narrativa, existia todo um material adicional feito pelos autores - os artigos e entrevistas apócrifos, etc. -, mas fundamental para a compreensão do mundo diegético interno do título, etc. Ora o projecto actual está no centro de estratégias bem diferentes, acima de tudo, comerciais. Todavia, é necessário também ter em conta que o próprio projecto Watchmen não deixa de estar no seguimento dessas políticas, não estando totalmente desligado delas: afinal de contas, e como é por demais sabido, houve um momento em que Moore pensou vir a utilizar as personagens que a DC havia adquirido da Charlton, e foi por decisão editorial - para que as pudessem ainda usar, o que seria impossível depois de Watchmen - que o autor criou versões “prismáticas” dessas personagens, que podia usar como aprouvesse. Além do mais, depois da saída, Moore continuaria a explorar de várias formas a sua própria nostalgia pelos super-heróis, e até mesmo num ambiente ante-Watchmen: basta ler as páginas do “seu” Supreme e de Tom Strong, sobretudo. E o que é The League of Extraordinary Gentlemen, senão um riff sobre personagens “clássicas” de que Moore se apropria para criar novas histórias, e até mesmo novas configurações mentais/culturais? No entanto – como se apercebem, qualquer discussão em torno destas questões leva a uma incessante espiral de qualificações, correcções e excursos -, o trabalho de Moore e Gibbons (ou de Moore em termos gerais) revela uma prática de controlo e entrega autoral que não só era de facto inédita ao tempo de Moore (no interior do género, mas suspeitamos que na arte em geral), como raramente seria superada ou igualada. E Before Watchmen encaixa-se mais directamente nas práticas correntes, comuns da indústria.
Existem investigadores que, estudando as formas específicas como este género se reinventa a si mesmo, entre os quais aqueles que, ao contrário de Geoff Klock e outros, acham que a desconstrução e revisionismo é da própria natureza do género (pense-se nos originais Superman e Batman, rapidamente “desaparecidos” na continuidade), encontra em toda esta espécie de estratégias – spin-offs, Elseworlds, prequelas, variações noutros universos ou companhias (e Watchmen é-o, logo à partida) – uma forma de “re-escrita”, que expande e reelabora narrativas previamente existentes (até Maus poderia ser visto dessa forma, tendo nascido como uma história de três páginas, em Funny Aminals). Mas convenhamos que existem graus (ou será naturezas?) diferentes entre variações internas e autorais (veja-se tudo o que é relativo ao Sandman), e encontros felizes de plataformas comerciais e criações autorais (p. ex., DC: New Frontier, de Darwyn Cooke, ou Superman: Red Son, de Mark Millar et al.), espirais descontroladas de premissas editoriais e/ou crasso comercialismo (muitos dos títulos ridículos de Elseworlds, sobretudo com o Batman – veja-se Batman: Holy Terror, de Brennert e Breyfogle), a projectos autorais falhos (Holy Terror, Batman!, de Miller, que acabou por se transformar). Ou até paródias do crasso comercialismo: recordam-se de “Watchmen Babies in V for Vacation” em The Simpsons? E de Saturday Morning Watchmen? Desse espectro virtual, surge a pergunta, em que ponto se encontrará Before Watchmen? Ou então: Before Watchmen acrescenta alguma coisa ao mythos de Watchmen? O primeiro problema de Before Watchmen é aquele que, de resto, assola quase toda a indústria da banda desenhada mainstream de super-heróis actual (ou desde sempre, diriam os “de fora”, os incrédulos do género). A falta de novos conceitos e ideias. Mas o mesmo talvez poderia ser dito do cinema e de certas linhas da música pop rock: tudo apenas requenta e re-emprata receitas anteriores. Na excelente série televisiva The Trip, com Steve Coogan e Rob Brydon, este segundo diz o seguinte: “Já tudo foi feito. A única coisa que podemos fazer é algo que já alguém fez antes, mas fazê-lo melhor, ou diferentemente”. Infelizmente, parece que a esmagadora maioria dos autores no interior das companhias (isto é, daquelas estruturas que não garantem direitos de autor individuais, mas antes produção de material para a própria companhia) prefere simplesmente fazer o mesmo com uma mínima diferença, variações de “cor” e “timbre” somente: zombies Marvel, Vingadores Negros, Elseworlds em catadupa, reboot atrás de reboot… Numa discussão sobre a afirmação de Dan DiDio sobre a vontade dos leitores quererem “mais Watchmen”, Orion Kidder escreve, na comics scholars list, que é típico que a perspectiva corporativa se centre mais no ordenhar superficial de uma ideia do que a construção de “um argumento sólido, significado político, profundeza de carácter das personagens, e boa arte”. Só que às vezes há falhas comerciais. Apesar de não podermos discutir com conhecimento total e estarmos limitados pela nossa inépcia em lidar com esses dados, é que nem sequer esta se trata de uma indústria que venda muito. Os comic books são caros individualmente, e não têm lucro suficiente para cobrir as despesas (por exemplo, falar de “um milhão de cópias vendidas” é, para qualquer coisa nos E.U.A., risível, bastando comparar com as vendas de romances populares). Tem mesmo de existir os tpb, as estatuetas, os brinquedos, os filmes…
Durante muito tempo, nas proximidades da estreia da versão cinematográfica, a DC anunciava alguns dos seus títulos, desde comic books individuais a séries, e de muitas qualidades, com uma tarja apontando qualquer coisa como “o que se segue a Watchmen?” Havia a ideia de que esse título havia atingido um patamar de que nenhum outro se aproximava, e dessa forma, com essa publicidade, tentava-se criar essa “apetência” por coisas novas, por assim dizer. O passo seguinte era, portanto, óbvio. Em Fevereiro de 2012 foi anunciada a máxi-série, constituída de vários títulos individuais (quase 40 comic books), que serviria de “prequela”. Esta última palavra significa uma narrativa analéptica em relação à diegese central de Watchmen (a qual já tinha vários momentos de uma cronologia alargada), destilando as origens ou aventuras prévias das várias personagens, “preenchendo” os momentos que não conhecíamos ou apenas se haviam mencionado de raspão, esperando que se adensasse mais as suas personalidades ou estruturas narrativas.
Pense-se no caso paradigmático de Batman. A história original da sua origem (em Detective Comics no. 33) representa a morte dos pais de Bruce em apenas quatro vinhetas, e a sua jura de vingança no quarto, à luz de uma vela, assim como a entrada fortuita de um morcego na sua sala pela janela aberta, já em adulto. Ao longo dos tempos (sete décadas!), estes acontecimentos foram sendo desdobrados, aumentados, até descobrirmos que o pai de Wayne há se havia mascarado de morcego antes, que o pequeno Bruce caíra numa caverna em criança, que o assassino dos pais era Joe Chill, depois que não havia sido um roubo fortuito mas um assassinato planeado, que Bruce se havia chateado com o pai antes deste ser morto, etc. Até chegarmos às memoráveis cenas de obsessão do velho Wayne em The Dark Knight Returns, com o colar de pérolas desfazendo-se em “câmara lenta”. Se muitos outros autores depois de Miller tentaram ainda aumentar mais essa imagem, ela ficou cristalizada para sempre (ou quase, dado o New 52). Mas aí é que entra a ideia de multiplicidade e compossibilidade dos leitores: aos poucos, são eles que vão coalescendo todos os contributos díspares numa qualquer ideia coesa, mesmo que absorva variações incompatíveis. Está nas mãos dos autores saberem contribuir com adições significativas que consigam conquistar o seu espaço. Ora este projecto quer fazer isso de uma forma tão aberta, tão clara, mas tão programada, e ao mesmo tempo “a medo” face à grandiosidade (falsa ou verdadeira, pouco importa agora) do livro original, que não nos parece conseguir fazê-lo. Existindo “factos” incompatíveis de série para série, opções diferentes para uma mesma “realidade” em Watchmen, todas elas seriam compossíveis para os leitores, não se anulam mutuamente, já que este género permite essa convivência (e o Dr. Manhattan explicaria as razões quânticas disso).
Todavia, um dos aspectos curiosos deste tipo de projectos editoriais, que mesclam princípios da “continuidade”, dos “eventos” e de narrativa multifacetada, é que pode ser lida de vários modos. O primeiro era acompanhar cada comic book à medida que ia sendo publicado, levando a que se intercalassem os episódios/números das múltiplas séries (inclusive a do pirata Crimson Corsair, que é contada em episódios de duas páginas em cada um dos comic books), a maioria delas oscilando entre 4 e 6 números, o que poderia levar à noção de que as informações de cada episódio iam contribuindo para uma estrutura narrativa coesa entre todos. É claro que no fim de contas todos os contributos pretendem chegar ao mesmo fim: desembocarem numa história maior dos Watchmen, mas em que a ordem de leitura é significativa (nalguns casos, as pistas são explícitas, já para não mencionar a saga, ordenada, do pirata), isto é, cria uma cronologia, não necessariamente linear. Uma história ilumina um aspecto de outra, mas como dissemos sem que todas as peças se encaixem na perfeição, nem sendo isso desejado, pois o que se prende sublinhar é a existência de “verdades” (como é exposto explicitamente no Minutemen de Cooke). Outro modo é esperar - já estão disponíveis, diga-se de passagem - que cada série seja reunida num volume, se torne como que uma “graphic novel” autónoma, e possa ser lida ora solitária ora coordenadamente no todo.
Para efeitos de simplicidade, e até do nosso próprio acompanhamento, falaremos de cada título separadamente, sem ordem particular. The Curse of the Crimson Corsair. Len Wein e John Higgins. Comecemos pelo fim. Ou pela “parte de trás”. No universo diegético de Watchmen, uma vez que pessoas com poderes extraordinários existiam mesmo, não fazia sentido, segundo a lógica de Moore, que o género mais amado de banda desenhada mainstream fosse de super-heróis. Os autores inventaram então uma série de comic books, que o leitor vai tendo acesso em níveis secundários e/ou mesclados com o primário, intitulada The Black Freighter, autorada por um tal de Max Shea, e que não deixava de ser uma sentida homenagem a uma tradição que não medrou, a da EC Comics, antes do Comic Code (sobretudo Piracy). Se esse comic book hipodiegético se ligava à história principal através de modos muito subtis, começando pela sua própria leitura por um rapaz que morrerá na catástrofe final em Nova Iorque, Crimson Corsair parece um relativamente desinspirado exercício de pastiche: entram zombies, o Holandês Voador, objectos mágicos do mar alto (mais sob a sombra de Piratas das Caraíbas do que qualquer outra coisa). Se os desenhos de Higgins são algo reminiscentes daquela materialidade pulposa e rugosa de um Reed Crandall ou Wally Wood, ou mesmo semi-caricatural de Jack Davis, mas sem o mesmo panache, ou mestria, a história é demasiado linear, pobre e desagregada do resto do universo narrativo. Este é o aspecto menos conseguido: sendo na série original uma história “ficcional” que criava sentidos alegóricos ou especulares sobre os acontecimentos “reais”, aqui é apenas mais um aproveitamento genérico. Tendo surgido duas páginas à vez no final de todos os números individuais das séries, já era aborrecida (recordando os ritmos de algumas tiras de continuidade clássicas de jornal), mas a sua leitura seguida no volume coleccionado não a salva dessa desagregação interna. Before Watchmen: Minutemen. Darwyn Cooke. De certa forma, esta é a série que enquadra todas as outras, ou as ancora num ponto de partida, remetendo, seja como for, à série original e a Under the Hood, as memórias que Hollis Mason escreve. Mason é um antigo membro dos Minutemen e pertence à primeira geração de super-heróis (na verdade, ninguém é “super”, mas são justiceiros ou vigilantes mascarados), a qual observa o mundo a ser transformado por eles mesmos mas vendo-se ultrapassados com a chegada dos novos heróis (os Watchmen, cujo nome não é oficial). Uma vez que em Watchmen esta equipa mais antiga não havia sido totalmente desenvolvida, servindo apenas de contexto histórico de onde emerge a nova geração, Cooke toma o caminho mais esperado: a exploração de cada uma dessas mesmas personagens. No entanto, a razão pela qual esta nos parece ser uma das melhores série de todas do projecto global é explicado pelo protagonista nas primeiras páginas, e que parece remeter para o trabalho do próprio autor. Diz Mason, ao escrever o epílogo do seu livro, que “não sou Tolstoi” e que “temos de ser nós próprios”: depois de existirem toda uma série de pistas visuais para os trabalhos de Moore nessas duas primeiras páginas (From Hell, Swamp Thing, e claro está, Watchmen), Cooke quer demonstrar que não quer nem ser Moore nem adivinhar a sua mente de relojoeiro, mas contribuir com a sua maneira. E fá-lo, sem grandes voos, ainda que haja a subtileza do projecto literário de Mason poder ser lido como o de Cooke (e os restantes autores) face à “verdade” de Watchmen. No seu estilo cartoonesco, quase infanto-juvenil, Cooke traz quase de uma maneira literal a “leveza” de Calvino, que alguém recordou num comentário neste blog: a ideia de multiplicidade, de mobilidade, uma agilidade do espírito pelas coisas do mundo, mutantes e cambiantes. Isso é corroborado, em termos visuais e composicionais, pelas opções de Cooke que, servindo de homenagem à estrutura cristal de Watchmen não deixa de surgir como sua, variada, dinâmica, e cuja cor de Phil Noto apenas acentua de modo muito inteligente em cada “trecho” específico. Não obstante o humor, o ambiente retro e as inúmeras referências à tradição em que se integra, Cooke consegue depois instilar os lados negros que arruínam essa suposta “inocência” (precisamente um dos temas centrais da obra original).
Fica, porém, a questão se há aqui algo de específico a esta equipa. Isto é, não poderia Cooke ter escrito esta aventura para uma outra configuração de super-heróis, da Sociedade da Justiça da América ou os primeiros Vingadores ao Clube Recreativo dos Defensores de Vilar Formoso? Com a excepção da ideia da “verdade” para com o público das suas acções, não podemos dizer que o contributo narrativo ponha em causa ou subleve a outro nível estas personagens, em relação ao seu ur-texto. Não obstante, traz a um só tempo a ingenuidade e alegria da primeira geração de super-heróis e uma gravidade da realidade que Moore e Gibbons queriam insuflar a todo este universo genérico. E o tratamento emotivo de Hollis Mason é o mais conseguido, nesta narrativa legível, crível e coerente. Before Watchmen: Comedian. Brian Azzarello e J.G. Jones. Azzarello, como sempre, cria um contexto significativo para depois o desenvolver de modo imperfeito. Seguindo a carreira militar e política de Edward Blake, em que a relação muito íntima com a família Kennedy assume um papel preponderante, Azzarello quer mostrar o papel do Comediante em toda uma série de acontecimentos históricos, desde os tumultos raciais nos anos 1960 ao combate no Vietname à oposição hippie deste conflito, passando por combates de boxe de Classius Clay e pelos inevitáveis bastidores da política. De certa forma, é como se o autor quisesse enxertar esta personagem que mescla o Capitão América e o Joker no plot de JFK, com mais uns quantos dedos de teorias da conspiração (mesmo que haja cada vez mais pormenores sobre a sua realidade, e Alan Moore contribuiu para isso com o seu Brought to Light, outra obra que iluminaria as escolhas de Azzarello). No entanto, rapidamente o dedo “gratuito” do escritor se faz notar, envolvendo-o no suposto assassinato de Marilyn Monroe (a mando de Jackie!), explorando as psicoses, induzidas por drogas ou não, do Comediante, e os seus excessos. Finalmente, a revelação de ser ele o assassino de Bobby Kennedy, de forma a proteger os segredos que o haviam formado como patriota pronto a ter de fazer o necessário, é o corolário do suposto “desequilíbrio” da personagem. Goste-se ou não da personagem original, nada aqui a torna mais humana, e apenas a torna mais um desses títeres niilistas do escritor. Jones é também um enigma. Longe da firmeza e solidez de Wanted ou mesmo Wonder Woman: The Hiketeia, a figuração é inconsistente e falha, a composição tenta variações banais e a cor, apesar de ser Alex Sinclair, é pouco notável. Before Watchmen: Rorschach. Brian Azzarello e Lee Bermejo. Supostamente, esta é a personagem que mais interessou os fãs de Watchmen, é mesmo a mais amada das criações de Moore nesse universo, e não apenas por ser a voz “organizadora” de toda a diegese e o inesperado “herói” da fábula moral e politicamente ambígua de Watchmen. O Dr. Manhattan é demasiado afastado da experiência humana, o Comediante está demasiado afecto ao status quo político, os restantes são apenas variações menores de clichés. Rorschach entabula em si mesmo, exacerbando-os, os elementos que provêm das duas personagens da Charlton em que se baseia, o Questão e Mr. A (ambas de Steve Ditko, e não nos referimos aos aspectos físicos e de roupagens, mas aos princípios ideológicos neo-Randianos), e Batman (a compulsão pela missão, sem a fortuna e os gadgets; esses estão na mão de Nite Owl). Ora, esperar-se-ia que o estudo de personagem a que uma série desta se permitiria assumisse o perigo desse gosto, que se levantasse o proverbial “espelho” ao leitor desse fascínio.
Infelizmente, nada disso tem lugar. O primeiro número coloca a personagem de imediato entre Cila e Caríbdis, isto é, uma gangue de traficantes de droga e um serial killer, mas nem um é Cila nem os outros são Caríbdis: afinal, a série apenas pare uma narrativa banal de crime (hediondo, claro, mas é Azzarello, afinal de contas), resolvida pelo protagonista ora de forma linear, física, e que não se aproxima sequer da eficiência e brutalidade da história original (em relação ao gangue), ora “por força das circunstâncias”, sem desenvolvimento e causalidade (em relação ao assassino). Uma vez que sabemos que ele não está em perigo jamais, de que vale ter um texto que exerce violência sobre o herói? A mimese do estilo de Rorschach - as frases curtas, as legendas em forma de folhas de diário, etc. - é completa, como não podia deixar de ser, mas por isso mesmo é um exercício quase de pastiche, e de quando em vez notam-se “falhas”, digamos assim, de personalidade. Coisas que não diria, coisas que não faria daquela maneira, achamos nós.
Os autores tentam criar uma história secundária, com uma mulher que demonstra algum respeito, e até afecto, por Walter Kovacs, mas não só surge como um elemento algo forçado - precisamente para criar essa dimensão na narrativa - como o seu fim é previsível. Tal como ocorre no título dedicado ao Comediante, também Azzarello inscreve Rorschach num momento preciso da história de Nova Iorque, se bem que explore os seus cantos fictícios, com a inclusão, algo gratuita, de um cameo de Travis, a personagem de Taxi Driver. Essa presença em nada adianta a diegese, e apenas serve uma espécie de wet dream de cruzamento de referências, que se confirma pelos clichés que se seguem (black out de toda a cidade, tumultos nas ruas, batalha na pista de dança disco - não, não é gralha, deve ter um gerador próprio - e é mesmo uma cena ridícula, um tigre metido à força, um combatente com poupa de Tintin…). A arte de Bermejo está como sempre ancorada nos seus corpos sólidos e anfractuosos, mas há algo de demasiado contemporâneo nas suas cores, sobretudo dos néons, que não se coaduna com a ambiência da história, de resto, bastante trivial.Before Watchmen: Ozymandias. Len Wein e Jae Lee. Tendo sido Wein o editor original de Watchmen, logo, é ele quem assume uma parte significativa na escrita destas série: os one-shots de Crimson Corsair e Dollar Bill, e a série Ozymandias. Se é estranho que esta “homenagem” esteja nas mãos de tão poucos autores, seria de esperar que Wein pudesse trazer algo de verdadeiramente moldado para a equação. Ou não. Pois este título é o mais paradoxal e vazio de todos.
Como se disse acima, um dos propósitos da série era preencher os “vazios”. Esse é, supostamente, um dos princípios da “magia” ou da “arte invisível” da banda desenhada: o leitor preenche o espaço em branco. Como se discutiu a propósito do mythos de Batman. Mas o que acontece quando aquilo que parece faltar na elipse é tão óbvio que o seu preenchimento não só não adianta nada de novo nem inflecte a estrutura de significado original, como a torna mais frouxa? Imaginemos alguém que se vira para nós e convida: “Tu, eu, amanhã, praia”. Independentemente do mau gosto ou circunstância da frase, “traduzi-la” para “Gostava que tu e eu fôssemos amanhã à praia” retira-lhe todo o charme (ou pateguice) que tinha. Um dos problemas, a nosso ver, era que onde Moore deixava criar elipses que poderiam ser preenchidas com mais ou menos detalhes, mais ou menos informados, pelos leitores, a narrativa de Wein quer preencher tudo, e, uma vez que o seu enquadramento cultural é algo pobre, e as coisas que se dizem sobre Alexandre Magno, a civilização clássica egípcia, as culturas orientais, etc., banais, acaba por se criar um tecido demasiado ténue como base da senda pela iluminação de Veidt. Batman, mais uma vez, está em termos estruturais aqui presente, claro, sobretudo na relação com a fortuna e com a busca de conhecimento e treino do corpo e mente, mas onde o pensamento de Wayne, nalgumas histórias, se aguça para uma edificação maior do que o mero combate ao crime, o modo como Veidt conquista todos os seus objectivos é tão desprovida de obstáculos que se torna uma maçada. Até a forma como “descobre” a sua farda heróica é esvaziada de impacto, como quase tudo o resto. Além do mais, a gestão do sexo é convencional (a relação homossexual disfarçada, a com Miranda acentuada), a dimensão emocional ausente (Jae Lee parece desenhar apenas uma expressão no rosto de Veidt: a de inexpressiva; bom, mas isto quase pode ser dito de todas as personagens de Lee) e até a personalidade do protagonista é unidimensional e aborrecida.
A estrutura, ritmo e focalização narrativas são algo confusas: Veidt está a ditar as suas memórias para uma autobiografia, antes da sua “missão” final. Criado como um Alexandre contemporâneo, Veidt é egocêntrico de um modo muito particular e faz todo o sentido, portanto, que a narrativa seja contada na primeira pessoa. Todavia, a forma como isso se estende enfraquece a economia geral. Essa estratégia, porém, permite aos autores poderem saltar convenientemente entre legendas de narração e balões de fala, mas de uma forma muito pouco elegante. Além do mais, se faz sentido que o texto descreva cenas, acaba por haver uma repetição desnecessária nas imagens das mesmas informações. E é cansativo seguir as informações dadas, todas as descrições e explicações, supérfluas, sobretudo numa intriga que repete estratégias, e é de uma banalidade quase exasperante (quase ou mais do que no caso de Rorschach), assim como aquelas que bebem dos episódios reais da história dos E.U.A. Onde outras séries tentam mostrar uma aventura isolada, Wein tenta mostrar a “missão” de Veidt a par e passo. Será essa a dimensão mais interessante de explorar nesta personagem? E se já sabemos que Veidt tinha ido do ponto 1 ao 8, precisaremos de saber todos os detalhes no meio, 2, 3, 4, etc.?
A arte de Jae Lee é de facto magnífica. Ainda que seja mais devedora à ilustração, e até do pin-up, do que à dinâmica fluida e célere da banda desenhada, e as soluções de composição sejam mais decorativas que qualquer outra coisa, o ambiente que consegue criar é ele mesmo prometedor e insuflador de um ar gótico, misterioso, fantasmático que se associa muito bem a esta personagem em particular, embebida que está no romantismo de Shelley e de nostalgias por utopias históricas.
O problema é que está desfasada da intriga. A primeira desculpa para Ozymandias se lançar na aventura de justiceiro mascarado, a da morte de Miranda e da droga, é algo patética e mais uma vez tenta-se colocar na narrativa da vingança, mas é pífio: Moloch, ou qualquer vendedor de drogas, não iria matar um potencial cliente à primeira dose. A segunda, e a escalada, em torno da aniquilação nuclear, é aquela prevista na obra original, e que teve uma relevância impactante em 1986. Mas a forma como Wein expõe e estrutura a “missão” esgota a subtileza de Moore. E é estranho que Wein, afinal o editor da série original, não tenha sido capaz de aprender com o “discípulo”. Não deixa portanto de ser curioso que as últimas palavras desta história sejam “loose end”, precisamente o que não existe em Watchmen. Before Watchmen: Nite Owl. J. Michael Straczynski, Andy Kubert, Joe Kubert, Bill Sienkiewicz. Sendo Nite Owl uma concatenação de elementos díspares do Batman, Blue Beetle, Clark Kent e outras personagens (como o próprio Owl original deste universo diegético), as opções de Straczynski eram mais ou menos expectáveis, e que o escritor já treinara em muitos anteriores trabalhos (Supreme Power, Bullet Points, etc.): a variação “prismática” dos elementos flutuantes que compõem estas personagens. Esta é talvez a história que mais “desdobra” a história pessoal de Daniel Drieberg, introduzindo a relação conflituosa com o pai e a descoberta (e subsequente obsessão) sexual. Porém, mesmo esses elementos, que parecem até ser “invertidos” em relação àqueles de Bruce Wayne (em vez de ver o pai morto, é ele responsável pela sua morte; em vez de viver à margem de uma sexualidade – até à pouco tempo na DC – mergulha no seu tumulto; e é ele o aprendiz de Mason, em vez do mestre Batman para Robin), não tornam esta narrativa em algo memorável. Uma vez que em Watchmen Nite Owl e Rorschach foram uma dupla durante um momento, essa relação tem uma grande presença na mini-série, mas mesmo a um ponto de retirar a simetria de toda a série. E o sub-plot de um padre que mata prostitutas para angariar um poder místico é algo ridículo, no interior de todo o tecido da grande narrativa de Watchmen, como se se suspendesse o realismo em nome da fantasia total, algo desfasada do programa original. Quanto à dimensão visual, aqui está a prova de que a matemática nem sempre funciona na arte. Os lápis de Andy Kubert, solidificados pelas tintagens do veterano pai Joe Kubert e o ex-enfant terrible do mainstream Bill Sienkiewicz, apenas produzem uma superfície convencional, de legibilidade mínima, mas muitas vezes desequilibrada, senão mesmo feia, melodramática e patética. Before Watchmen: Silk Spectre. Darwyn Cooke e Amanda Connor. Tendo em consideração o nome dos outros artistas envolvidos neste projecto, e de que esta se trata da única personagem feminina de relevância em Watchmen (um dos problemas repetida e justamente apontados nas críticas à obra-prima de Moore e Gibbons), perguntamo-nos se a escolha de uma artista mulher, Connor, terá tido algum peso nessa decisão editorial. Mas porque não uma escritora (não estamos seguros se Gail Simone foi despedida da DC antes ou depois do projecto, ou se Devin Grayson estava ocupada)? E enquanto artista, mesmo com as cores de Paul Mounts, por comparação ao resto, é banal, banalíssima (até as composições psicadélicas são triviais). Além do mais, apesar de uma gigantesca concentração de todos os outros títulos em plots de acção e aventuras, é curioso que as de Silk Spectre, ou melhor, Laurie, se concentrem nas suas aventuras emocionais da adolescência e primeira idade adulta, apesar do que a circunda. Para a tornar mais apelativa ao seu público, Cooke inventa uma intriga passada na São Francisco no Verão do Amor, que envolve uma potente droga psicotrópica que controla as massas de hippies e os leva a consumirem toda uma série de produtos ligados à cultura e ao rock’n’roll da época (os Beatles participam, Frank Sinatra coordena), numa espécie de crítica algo deslocada, se não mesmo infantil (o vilão chama-se Gurustein), dessa mesma cultura. O uso de momentos, menos que episódios, com outras personagens, parece algo desequilibrado, e as tentativas de “explicar” pormenores ausentes de Watchmen são algo forçadas. Tais como são forçadas e sem o mesmo requinte de Moore a forma como os autores tentam repetir as referências intertextuais (as artes visuais, ilustrações genéricas, letras de canções e citações, etc.) de Watchmen. Entende-se a estrutura subjacente à escrita (e provável planificação) de Cooke, apesar da colaboração na escrita de Connor, e o tipo de humor, leveza, outra assinatura que se pretende - tal como em Minutemen - mas o resultado é de facto muito prosaico e incoerente ao longo dos quatro números. Before Watchmen: Dr. Manhattan. J. Michael Strazynski e Adam Hughes. O grande desafio aqui está em como ultrapassar, ou pelo menos navegar, os tremendos paradoxos de uma personagem cuja consciência tem acesso, permanentemente, a todos os momentos do tempo que o “compõem”. Em primeiro lugar está, claro, o mimar o mais fielmente possível os acontecimentos, a linguagem, estruturas temporais, e passagens visuais que Moore e Gibbons haviam inventado para esta personagem. Se pensarmos na história de Watchmen como uma circunferência, para fora da qual não há informações, sabemos que há um momento a partir do qual não sabemos mais nada desta(s) personagem(ns), quando o Dr. Manhattan parte para o resto do universo (ou “para fora do livro”) onde poderá vir a criar vida. Que opções se oferecem a Strazynski, então? Desviar-se. Dr. Manhattan “viaja” no tempo até antes da sua emergência a partir das moléculas de Jon Osterman, e exploramos uma existência divergente, ou “paralela”, ilustrando - continuamente, aliás - toda a teoria quântica dos mundos paralelos e transformando-o num verdadeiro, explícito, “observador quântico”. O autor assim pode passear novamente por todos os acontecimentos “reais” (históricos e fictícios) da diegese de Watchmen, num exercício de alternativas (à la Bullet Points), embebido de forma clara na “hard science fiction” que deu nome e fama ao escritor. Essa realidade paralela em que não existe Dr. Manhattan torna-se então a crise que o próprio Dr. Manhattan, seu observador exterior, tem de resolver, através da eliminação, levando a um novo paradoxo dele se criar a si mesmo. Um outro desvio está em, num momento decisivo, “dar a volta” à narrativa - literal e materialmente, já que as páginas estão de cabeça ara baixo -, passando a voz para Ozymandias, e descobrindo o embuste do seu lado. Sendo uma pesquisa interessante e inteligente, a história é porém pesada demais em termos de texto, algo seco porque narrado, com muitas metáforas repetidas ou algo expectáveis (bebendo largamente daquelas lançadas por Moore há um quarto de século), e tentando por vezes explicar o que havia sido deixado em aberto por Moore. Em termos gerais, a surpresa é mínima mesmo em relação à intriga complexa central, já que o dilema em si é transparentemente resolúvel graças às capacidades quânticas da personagem. No entanto, os autores arriscam em mostrar três páginas que se passariam após a saga de Watchmen, a suposta criação de Manhattan algures no espaço. Porém, não só estava tudo previsto nas frases de Moore, como parece algo devedora à cena de abertura do (inenarrável) filme Prometheus, como em termos estilísticos recorda o episódio “My Blue Heaven” do Swamp Thing de Moore et al.
A arte de Adam Hughes é muito particular e, de certa forma, perfeitamente adequada ao tom da história e à personagem, isto é, à sua “frieza”. Isto, apesar de Hughes ser muito mais conhecido pelo seu trabalho de pin-ups, muitos dos quais bastante eróticos e sugestivos. Figurações clássicas em termos de anatomia, modulados muito bem pelas cores matizadas e decisivas de Laura Martin, com detalhes suficientes para o seu naturalismo mas sem tornar as imagens carregadas, desenhos em que alguns dos contornos, especialmente os exteriores das personagens e de alguns objectos os isolam da restante composição visual, ou os acentua como se se tratasse de um vitral, um espectro de representação emocional restrito, talvez tornem, de todos estes projectos, o mais sólido, literalmente, em termos visuais. Before Watchmen: Dollar Bill. Len Wein e Steve Rude. Em apenas um número, os autores desdobram a história de uma personagem cuja presença em Watchmen era mínima, senão mesmo reduzida a uma sua anedota, para criarem o contexto em que ela é formada (a “origem”), diluída em políticas económicas, ideológicas da indústria do entretenimento. Dollar Bill não é mais que um herói criado para ser a mascote de um banco, e a sua integração no grupo de justiceiros Minutemen é acidental, assim como acidental se revelarão todos os acontecimentos que pautam a sua vida “heróica”, inclusive a morte anunciada. A arte de Steve Rude traz uma certa leveza (acentuadíssima pela paleta brilhante de Whitmore) que parece destoar da gravitas esperada pela série em geral, e pelo texto original, mas que por isso mesmo acaba até por sublinhar, de forma dolorosa, alguns dos clichés, inclusive alguns politicamente repreensíveis, que existiam na época retratada. Mas Wein não é um autor que os burile de forma subtil e inteligente em que os possa empregar para os subverter: bem pelo contrário, num ambiente de humor, eles acabam por sair reforçados. Before Watchmen: Moloch. Straczynski e Eduardo Risso. Tal como nos casos de Dollar Bill e dos piratas, é algo supérfluo os autores virarem-se para esta personagem, apesar dela ter um papel fundamental como eixo do grande plano de Veidt na história original. E tal como no caso de Nite Owl, Straczynki contribui de modo óbvio – demasiado óbvio, com o flashback inicial? – para uma “backstory”, visitando-se uma infância e desenvolvimento da carreira criminosa e, depois (tendo dois números apenas, há duas “metades” nitidíssimas), a sua “queda” e controlo nas mãos de Veidt/Ozymandias, o qual, nesta série em particular, assume uma dimensão maléfica algo desfasada do restante, e que derrota a sua “boa intenção”. Uma vez que a morte, também anunciada, de Moloch, em Watchmen, é apresentada de forma subtil e surpreendente (uma armadilha contra Rorschach), a forma como ela é conduzida nesta série é quase pornográfica, no sentido de excessivamente patente. Risso tem muitos fãs, mas uma olhada cursória nas suas páginas revelam demasiados atalhos para o tornar um artista interessante nesta prestação. Figuras isoladas, e em muitos momentos cartoonizadas de uma forma imprópria, em vinhetas monocromáticas flutuando em páginas vazias, ou onde as cores, digitais, em degradés paupérrimos, não ocultam a falta de esforço. Este desenhador é adepto de teatralidades e expressões melodramáticas, e a sua representação de Moloch retira-lhe toda aquela dignidade que Gibbons lhe conseguira incutir, tornando-se aqui um mero vilão de pacotilha em primeiro lugar e depois num peão sem personalidade.
***
Como balanço final, a série parece de facto ser um aproveitamento maximal das linhas de fuga comerciais e de trademarks proporcionadas por Watchmen, como se verifica particularmente na existência das totalmente supérfluas histórias sobre o Dollar Bill e o Crimson Corsair. Quase se imagina que, houvesse vontade e/ou possibilidade editorial de convidar Chris Ware ou Gabrielle Bell a participarem (à la Bizarro Comics ou Strange Tales), também se faria uma série sobre o vendedor de jornais e uma das empregadas do Gunga Diner. É claro que a qualidade, ou falta dela, desta colecção não transforma de qualquer modo a do título original. Mesmo que não se conheça o texto original, ou ele exista apenas numa qualquer forma nostálgica, ele é independente das transformações subsequentes. Pense-se em Indiana Jones, Star Wars ou nos G.N.R. dos anos 1980… A “trampa” actual não apaga a (ilusão de) glória antiga. A questão mais importante é que o desdobramento, expansão ou inflexão das personalidades ou eventos de Watchmen é por demais brando. Before Watchmen criou novas histórias com estas personagens? Sim. Expandiram o mythos de Watchmen? Pouco. Acrescentaram algo à riqueza conceptual, política, cultura ou estrutural da obra original? Não. Se concordamos com muitas das opiniões que a colecção no seu total contribuiu com uma produção visual excelente da parte de alguns dos seus artistas (Lee, Hughes, Bermejo, Cooke e mesmo Rude) - mas porque não fizeram uma edição de comemoração com homenagens, histórias curtas, pin-ups, como se fazia nos anos 1990, ficando o caso arrumado? - , não podemos de forma alguma desuni-la do seu programa holístico, que não é sequer coerente entre si (claro que a pergunta seria: é necessário que o seja, ou há espaço para diversidade de tratamentos?). Por um lado, se é natural que muitos fãs se aborreçam quando autores “destroem” a continuidade passada – Grant Morrison revelando que a saga de Swamp Thing era um sonho, Geoff Johns “deitando fora” décadas de ideias usadas em Superman, Jeph Loeb agarrando nos The Ultimates brilhantes de Millar e colocando-os no moinho de carne à la Image-anos-90 - por outro, o suposto “respeito” que este grupo de autores parece ter demonstrado pelas histórias originais e tendo contribuído com pouco para a sua transformação ou subversão interna torna Before Watchmen num exercício relativamente ténue. Realmente, much ado about nothing.
Nota final: Agradecimentos a P.B., pela oportunidade em ler toda a série. Todas as imagens colhidas da internet ou ficheiros digitais. Em breve, retomaremos o tema, em torno da Image, Dark Horse e outras editoras.
De uma forma geral estou de acordo principalmente no que toca às melhores séries, de longe a dos minutemen e do Doctor M.
ResponderEliminarAdoro o Moore e pelas razões aqui apontandas nem recrimino a existência disto, uma vez que até o próprio queria usar personagens que já tinham histórias para trás (se o tivesse feito esta prequela não existia).
Tendo coisas realmente boas, não deixa de ser verdade que em tom de balanço final não acrescenta quase nada e "Watchmen" vive muito bem (melhor?) sem elas.
Gostei mto foi de ver estas personagens desenhadas por outros autores, em vários estilos distintos. É verdade que o Lee não tem mts expressões faciais distintas para o Ozy, mas gosto do seu storytelling, do seu traço. Mas lá está, não era preciso fazer estas BD's para termos isto como aponta no fim.
E no fundo é isso, há muita coisa aqui que não achando má e até tendo-a lido bastante bem, a verdade é que é dispensável.
Contributo interessantissimo para ter mais uma noção da qualidade de uma obra que ainda não li.
ResponderEliminarSou um apreciador dos Watchmen de Moore e Gibbons, e por razões mais financeiras do que outras qq, ainda não me tinha dedicado a a ler estes prequelas.
Um dos comentários que deveria fazer é mesmo a sorte que por vezes se tem em ter amigos que emprestem as suas edições (o que é raro com comic books). Com alguma sorte, encontrar-se-ão estes títulos na Bedeteca... mas apenas para confirmar que é um projecto no geral falho. Não quero dizer que "Watchmen" é uma obra-prima para toda a gente, mas é um livro muito, muito bem feito, e querer adivinhar "o que lhe falta" só pode falhar redondamente.
ResponderEliminarObrigado,
Pedro