9 de setembro de 2013

Image (Comic Books, parte 5)

Falarmos da Image hoje nada tem a ver com falar da imagem que a Image projectou no seu início, o que permite - e não nos excusamos desse uso - de utilizar a expressão “à la Image” para se falar de trabalhos de qualidade duvidosa, usualmente povoado por composições espalhafatosas, figurações de anatomia risível e explosiva, trabalho de cor berrante, e uma construção narrativa praticamente mentecapta, sem quaisquer noções de ritmo, desenvolvimento de personagem, carga emocional, etc. e que serviria apenas as fantasias mais basilares de uma adolescência confinada (ou à sua protelação pela idade adulta, mais problemática). De facto, as transformações internas da editora foram variadas, mas podemos dizer que desde a entrada de Eric Stephenson como publisher (isto é, o equivalente a gerente ou director editorial) que as coisas se reforçaram na senda da diversidade e da qualidade, sobretudo com os novos títulos tentados, desde o convite a Brandon Graham para continuar Prophet, ao surgimento de Saga e Orc Stain, etc.
Se bem que a nossa compreensão do lado empresarial seja deficitária, julgamos poder descrever a Image contemporânea como um grupo editorial que reúne várias editoras independentes ou estúdios de produção (Shadowline, Top Cow, Image, Joe’s Comics) numa só plataforma, coordenando todos os esforços, desde os criativos e de direitos autorais aos da distribuição e marketing. Isso permite que a Image esteja nos lugares de topo do seu mercado, com outras editoras como a Dark Horse, naquela segunda linha possível de conquistar (já que a primeira é eternamente dividida pela Marvel e a DC). Por outro lado, essa relativa independência e o modo como as marcas, personagens e relação com os autores são geridas no interior da companhia torna o trabalho mais feliz para os criadores. Do ponto de vista do leitor, não haverá diferenças substanciais no género, no humor, nas estratégias narrativas (afinal, que diferença substancial existirá entre America‘s Got Powers e uma qualquer saga dos Vingadores/Avengers?), mas do ponto e vista da produção, e sobretudo no que diz respeito aos autores, é algo de muito distinto, já que a Marvel e a DC são corporações no interior das quais os escritores e artistas trabalham para produzir histórias que não lhes pertencem com personagens que são marcas registadas ou IPs/propriedades intelectuais [a relação “work for hire”], na Image produzem obras sobre as quais deterão todos os direitos [relação “creator ownership”].

Em retrospectiva, não pensaríamos há dez anos que se encontraria na Image uma diversidade destas, e muito menos que alguns dos títulos seriam interessantes, estimulantes ou mesmo excelentes. Ainda que não nos possamos distender demasiado sobre cada um deles - apesar de dois ou três merecerem uma análise mais cuidada -, deixaremos aqui algumas notas sobre os títulos seguidos com interesse, sem ordem particular, e com a rápida menção que outros foram abandonados (como os dois títulos de Joe Casey The Bounce e Sex, por serem, francamente, muito), e outros não iniciados, como os de Matt Fraction. Com a excepção de Infinite Vacation, lido em volume, tudo o resto foi seguido em comic book. 
Prophet. Brandon Graham. Tendo já falado desta série, não nos alongaremos, e simplesmente acrescentaremos que o seu escopo, em termos de espaços e personagens, se alargou, ainda que tenha se revestido ao mesmo tempo de um “arco narrativo” mais claro, em torno da grande guerra inter-imperial que enquadra todos os acontecimentos. A estranha ciência, a mistura de explorações pela biologia alienígena, as formas de comunicação e relação, as tecnologias e os assuntos mais mundanos deste(s) mundo(s) distante(s) continuam a ser os elementos que tornam esta série uma das mais interessantes que nos foi dada a  conhecer no género da ficção científica, que se afasta de todas as mais usuais normalizações ou inscrições na nossa sociedade.
 Infinite Vacation. Nick Spencer and Christian Ward. A banda desenhada norte-americana de ficção científica encontrasse num momento, do que nos é dado a ver, muito sofisticado, e este título, uma série curta já terminada, juntamente com Prophet, Saga (na Image) Mind MGMT e The Massive (na Dark Horse), é um grande contributo nesse sentido. Se Prophet é mais devedor de títulos também de acção e aventura, ou guerra, Saga com a fantasia, Mind MGTM do policial, etc., Infinite Vacation bebe da comédia romântica. A premissa desta história é que, através de um mero app em qualquer dos aparelhos electrónicos usados nos nossos dias, podemos aceder a qualquer um dos nossos eus “paralelos” ao longo de todos (infinitos) universos, e, pagando, podemos assumir as opções deles. Ou seja, a física quântica permite viajar através de realidades paralelas, e isso é um produto comercialmente viável. A trama coloca o protagonista da primeira realidade (a “nossa” ou “basilar”, se quiserem) no centro das atenções – é um escolhido, especial, o costume. Mas apesar dessa intriga clássica, povoada por toda uma série de elementos relativamente expectáveis no género (um tipo de cultura que já estava presente em Forgetless, de que falámos e em que Jorge Coelho participou) é curioso ver as convolutas exposições sobre as possibilidades quânticas ao serviço de um serviço idêntico àquele do Facebook ou de um novo telemóvel, e cujo resultado é um romance transdimensional que ainda assim mantém a aparência de “quotidiano”. Nalguns aspectos, tem linhas de força parentes daquelas exploradas na série televisiva Black Mirror. Os desenhos de Ward, sendo de contornos líquidos, composições livres e cores fecundas, parece estar a trabalhar com materiais maleáveis e em constante movimento, sendo perfeito para esta história de passagens, transformações e colapsos de estados da matéria. 
Change. Ales Kot et al. Esta mini-série quase passava despercebida, e uma breve descrção também não fará jus às suas forças. A um tempo homenagem a Lovecraft (sim, mais uma), e exercício metatextual sobre o acto da criação se virar contra o criador, onde as fronteiras entre a criação e a realidade se anulam, Change é uma espécie de banda desenhada em stream of consciouness que exigirá uma leitura aturada, confiante e dedicada, senão contínuas releituras. Ou então, bem pelo contrário, exigirá que seja fruído como quem escorrega pelas suas páginas, quase como se o sentido viesse coalescer mais tarde, já depois de poisarmos as páginas. Seguimos um número de personagens quase típicas da cidade de Los Angeles, em busca de impedirem o apocalipse de ter lugar, mas nem todas essas personagens têm contacto directo entre si, ou não é aparente que o tenham. A cultura do rap e do cinema, nas suas faces dos bastidores da produção, elementos do crime e de cultos satânicos, são colocadas nesta plataforma e sacudidos, de maneira a que nenhuma dessas partes saia incólume do embate com as outras. É muito curioso que nas capas dos comics, o nome do escritor, do desenhador (Morgan Jeske), do colorista (Sloane Leong) e do legendador (Ed Brisson) estejam sempre presentes, como se se quisesse sublinhar que as funções de todos eles não é meramente intrínseca à cultura/forma de produção taylorista desta banda desenhada norte-americana, mas os acentuasse enquanto autores em termos idênticos. E, de facto, há uma diversidade em termos de composição, dinâmica, cromatismo, uso ou não de texto dialogado, narrado e onomatopeias que incutem nas linhas flexíveis de Jeske, que cria como que corpos líquidos e mutantes, uma fluidez muito apropriada ao texto também mutante de Kot, um autor seguramente a seguir, que, das duas uma: ou foi um fluke momentâneo e terá deixado este estranho título numa pilha de muitas obras singulares e quase esquecidas, ou estará genuinamente interessado em compreender como empregar poesia num veículo aparentemente convencional, com resultados inesperados.
Orc Stain. James Stokoe. Uma possível sinopse ocultaria a razão de maior interesse deste título, já que superficialmente estamos perante apenas uma relativa variação de outras narrativas de high fantasy, envolvendo exércitos indomáveis de um tirano orc, magia e aventuras guerreiras, e um orc especial que será o salvador de todos. Mas a energia nasce não apenas da velocidade e impacto da escrita (que recorda trabalhos mais maduros de títulos europeus/à europeu do género, como a Métal Hurlant/Heavy Metal), como da forma como as imagens são construídas. Stokoe é um desses autores contemporâneos, à la Brandon Graham, Michael DeForge, etc., que não apenas é devedor de toda uma série de escolas díspares - mangá, super-heróis, ilustração, art comics, arte psicadélica, etc. - como é capaz de criar uma amálgama de tudo isso muito coerente (já que faz tudo ele próprio, e com uma diversidade salutar). Capaz de criar mundos fictícios com duas ou três páginas bem pensadas, a sua atitude punk não lhe permite que isso seja levado demasiado a sério, estando povoado por pequenas piadas, desvios sarcásticos ou simplesmente pontos de fuga temáticos que fazem o leitor oscilar nas suas certezas. Já num trabalho relacionado com Godzilla, Stokoe mostrava a sua capacidade em preencher vinhetas de forma musculada e eletrificante, à la Geoff Darrow mas mais livre, mas neste título em quer toda a matéria narrativa é da sua responsabilidade - mesmo que não se trate de uma obra-prima do género - permite-lhe muito mais espaço de liberdade. 
The Bulletproof Coffin. David Hine e Shaky Kane. Estas notas devem tomar em conta a existência da série original e aquela mais recente, subtitulada Disinterred. A primeira era um exercício de nostalgia por toda uma série de referências associadas à cultura dos comic books norte-americanos dos anos 1950-1960 (supostamente a infância dos autores) onde não apenas as personagens de banda desenhada e filme de série Z estão presentes, mas toda a catadupa de produtos vendidos nos anúncios. A personagem principal encontra uma espécie de tesouro em cada sótão dos seus “clientes” (o seu trabalho é esvaziar casas de mortos sem herdeiros, e com isso constrói uma espécie de mausoléu nostálgico, mas o qual lhe dará acesso a um universo sórdido em que as ideias loucas dessa cultura têm lugar real. Os interstícios entre o real e o fictício são demolidos, naturalmente. Disinterred poderia ser visto como uma continuação, mas é na verdade uma fuga numa direcção totalmente diferente. Trata-se de uma estrutura muito mais fragmentada, como cada número independente entre si, mesmo no que diz respeito a estratégias narrativas, e que exploram contornos semi-experimentais no que diz respeito à causalidade narrativa, e a uma forma exacerbada de explorar essas tais referências. Como alguma da crítica às séries notaram, Hine e Kane fazem uma espécie de bricolage, e caberá aos vários leitores a destrinça de quais pistas estão presentes, e em que medida é que elas são ou não úteis para as imagens gerais subsequentes. Já o uso de palavras como “psicadélico”, “subversivo” e referências a Burroughs parecem-nos algo óbvias, mas apenas a título superficial. Há, parece-nos, um balanço muito estranho - quer dizer, há balanço, mas é a sua própria existência que produz a estranheza - entre o abjecto, misturando géneros como horror, fantasia, ficção científica da EC, bebop fiction, etc., e o humor leve de uma comic strip de grande circulação. O estilo de Kane é algo reminiscente do Kirby tardio, mas sem o mesmo tipo de solidez e dinâmica, antes devedor daquela tendência dos anos 1980 de Mark Newgarden e Mark Beyer, logo perfeito para esta alucinação electrificante.  
Fatale. Ed Brubaker e Sean Phillips. Uma equação que mistura hard boiled e horror lovecraftiano, o primeiro género o qual já a dupla dominara com as sequentes séries Sleeper, Criminal e Incognito, este novo título desenvolve-se em vários momentos cronológicos, mas que contribuem para um mesmo quadro de referências, muito coeso, e ainda que misture muitos chavões (Nazis, ritos chtulianos, e os elementos habituais do noir, etc.) funciona como um caldo elegante. Brubaker está aqui numa plataforma alargada, entre o policial, que domina, e todas aquelas suas referências preferenciais, já tentadas noutros trabalhos. Não sendo tão sério como o seu excelente The Fall, esta série é um bom corolário aos seus últimos anos. O trabalho de Dave Stewart como colorista acaba por, tal como noutros dos seus trabalhos (Hellboy, Daytripper) trazer muita da ambientação perfeita a toda a intriga, acentuando o estilo a um só tempo suave e sólido de Philips.
Invincible. Robert Kirkman, Cory Walker e Ryan Ottley. Discutivelmente, um dos títulos de maior longevidade, vitalidade e sucesso comercial (dentro dos modos mitigados como isso sucede nesta indústria a um tempo febril e volátil), Invincible tentou contribuir para a era da recuperação sadia do género dos super-heróis (como Astro City, acima de tudo). Os primeiros números pareciam uma homenagem à era de ouro de Lee e Kirby no Homem-Aranha, já que existe aqui também a coincidência deste novo super-herói ser um adolescente que acompanhamos na aprendizagem das suas novas capacidades, e a forma como isso o afecta a ele, às suas relações e à sua posição no e com o mundo. No fundo, muito light-hearted. Rapidamente o tom mudou, para algo de mais grave e violento, muitas vezes gore, e a montanha russa não tem parado. Aliás, o que mais caracteriza esta série, parece-nos, é o constante “plot twisting”, que bebe sem qualquer vergonha de décadas e décadas de ideias feitas, clichés e elementos clássicos deste género. Invincible leva muito a sério aquela expressão do “esperar o inesperado”, e ler o título é quase um estudo da história do género. Com a ressalva, positiva, de que Kirkman emprega um grupo muito diversificado de personagens, o que lhe permite também um leque diversificado no que diz respeito às personalidades, sexualidades, níveis de agência e posicionamentos políticos dessas personagens (o mesmo ocorre em The Walking Dead), sem sinais de estereótipos, mas explorando ambiguidades. No entanto, não só nos perguntamos se não será um mecanismo que apenas funcionará bem junto a leitores muito familiarizados com essas mesmas ideias, e até que ponto é que a saga aguenta essas transformações e reveses constantes. Enquanto dose mensal descartável e leve, é excelente; enquanto plataforma para repensar o género, é menos conseguido. Mas toda a escrita de Kirkman (autor de Walking Dead, de que falaremos noutra ocasião, e partner na Image, o que prova o peso das suas criações na economia da editora), as ideias, as inúmeras personagens, e a arte colorida e descomprometida (primeiro de Walker, co-criador, agora de Ottley), é suficientemente fluida para permitir essa navegação rápida. 
Jupiter’s Legacy. Mark Millar e Frank Quitely. Mesmo quando existem muitos indícios de que um determinado autor não é capaz de cumprir o que promete (e Millar deve ser o autor com os maiores índices de self-hype do planeta), a verdade é que se cria uma espécie de pressão para acompanhar as suas criações. Além do mais, a presença de Frank Quitely, que a nosso ver consegue produzir um equilíbrio interessante entre personagens de ar másculo (inclusive as femininas) sob o efeito e esteróides e uma estilização clara (ao contrário de, por exemplo, Simon Bisley) poderá significar uma mais-valia. Até agora apenas saíram dois números espaçados, e não parece haver uma mesma estratégia de “world-building” como verificada em títulos anteriores (de que Nemesis foi o melhor projecto, parece-nos). Jupiter’s Legacy é mais uma variação nos temas “o que aconteceria se existissem super-heróis no nosso mundo?” e “como é que as novas gerações de super-seres reagiriam com os seus pais?”, logo, é mais um herdeiro de Watchmen. Porém, tirando algumas ligações curiosas à cultura popular e política actual, mas de uma eficiência infantil, as personagens ainda não estão totalmente formadas, para além das sua premissa básica, se algumas vez o estiverem (afinal, já passou metade). As páginas sobre as “origens” eram curiosas, mas culturalmente falhas, e o salto para a contemporaneidade é demasiado abrupto para sequer se formar algum tipo de compreensão ou interesse emotivo pelas personagens. Quiçá a sua leitura completa poderá revelar um interesse maior. Duvidamos, mas o vício é duro. 
Mara. Brian Wood e Ming Doyle. Ao contrário de Millar, Wood não tenta criar narrativas grandiosas e que abarquem explicações cabais para os universos diegéticos que apresenta. Mas inscrevendo-se no mesmo tipo de premissas - como seria um universo em que houvesse pessoas com super-poderes e que consequências haveria para a sociedade? -, acaba por, nas suas mais elegantes e simples respostas, revelar uma maior inteligência social, cultural e até artística do que o escritor britânico. A trama de Mara tem lugar num futuro relativamente distante, onde o desporto-rei parece  ser o voleibol feminino, cujo culto ganha contornos fortíssimos em termos nacionalistas e económicos. A grande estrela, Mara Prince, sem grandes explicações, começa a desenvolver capacidades extraordinárias, e isso não apenas vira o seu mundo pessoal de cabeça para baixo, como todo o mundo. Questões sobre as relações entre patrocinadores, interesses militares, tecnológicos e sociais são explorados, mas acima de tudo como é que um indivíduo responde face aos obstáculos que lhe criam, até um ponto insuportável? Estando apenas a um número de terminar, poderá haver uma resolução surpreendente, e há ecos de Miracleman nestas páginas. A opção de ter uma personagem feminina é também muito significativa, sobretudo na economia geral deste género. E Mara, apesar de ser uma personagem solitária, revela um tratamento emocional e intelectual muito bem feito da parte dos autores, isto é, não apenas na sua dimensão narrativa, mas também visual, nos traços de extrema elegância, quase próximos de uma certa tendência da ilustração contemporânea de moda, com laivos de esboços expressivos e românticos (mas consolidados pelo trabalho, também ele muito elegante e rico, não necessariamente naturalista, de cor por Jordie Bellaire) de Ming Doyle. 
Multiple Warheads. Brandon Graham. O projecto originário de Graham com estas personagens - Sexica, uma traficante de órgãos, e Nikoli, um mecânico com orelhas e rabo de  lobo (mas não é nem lobisomem nem furry) - começara num livro one-shot ainda pela Oni Press em 2007. Mas desde a entrada de Graham para a Image, com vários projectos, de King City a Prophet, que ele os tem feito transitar. Publicou então a mini-série que dá continuidade às aventuras - a palavra é o mais certeira possível - destas personagens, cujo sub-título Alphabet to Infinity é claro no seu sentido de road trip. Muitas das dimensões que apontámos em relação a King City estão aqui presentes, claro, sobretudo nos instrumentos gráficos, plásticos e expressivos do autor, se bem que haja uma maior presença de facetas risqué, dado o erotismo entre os protagonistas (mas sem escorregar para a pornografia, mesmo divertida e bem-disposta, que o autor cultivou nos seus trabalhos “alimentares”). Graham continua a abandonar as suas personagens, e ao seu próprio gesto criativo, num puro e contínuo prazer de encontros felizes com o acaso, em torno de trocadilhos, ideias visuais e trouvailles que fazem este “universo” cantar a cada página, mesmo que coloque em causa uma expectativa mais normalizada por intrigas, resoluções, ou narrativas “naturais”, ainda que as remeta/prometa para uma próxima série. É uma espécie de máquina de triturar formas sempre em avanço, recordando a ontologia presente na animação de um Ivan Maximov, por exemplo, e que importa degustar a cada página, não no seu cômputo arrumado e final. 
Happy. Grant Morrison e Darick Robertson. A expectativa de encontrar Morrison num título independente abria a possibilidade de encontrarmos aqui uma narrativa totalmente livre de caminhos por entre os géneros, ou pelo menos aquela típica verborreia de conceitos colidindo a que o autor nos habituou. A ideia de partida parecia genuinamente inclinada a isso: um antigo polícia chamado Nick Sax, que agora se dedica a limpar o sebo a seja quem for por dinheiro, prometia arrastar a narrativa pelo nariz num bas fond de crime, e quando dá de caras com um pequeno cavalo cartoonesco alado chamado Happy - e que nunca percebemos e é alucinação, efeito de um tumor, sprite fantástico - , que o quer forçar a encontrar e derrotar um serial killer vestido de Pai Natal, parece atingir esse patamar de estranheza. Mas a verdade é que os elementos não cantam em coro. Se o tema da “imaginação é poder” de Flex Mentallo, Joe the Barbarian, e outros trabalhos de Morrison está aqui patente, isso é demasiado nítido, de uma tal forma que passa de programa narrativo a “mensagem” óbvia. Além do mais, parece que Morrison quer imitar a brutalidade de um Garth Ennis (por isso, o convite ou possibilidade de trabalhar com Robertson, perfeito para a solidez dessas cenas, acentua essa busca), mas sem genuinamente se abandonar à sua orgia, como o seu colega consegue. Final feliz obrigatório, ausência de espelhamento da realidade, algumas cenas algo gratuitas, mas o regresso a Morrison é, como a Millar, um vício. 
Ten Grand. J. Michael Straczynsky e Ben Templesmith. Nalguns aspectos, isto recorda de imediato o one-shot Dream Police, do mesmo escritor. Mas onde nessa história o policial cruzava-se literalmente com o onírico, aqui encontramos os elementos típicos da novela de crime com a fantasia negra e o sobrenatural – mortos, demónios, encantamentos, redenção, etc. Não numa exploração desse cruzamento como a bem-humorada R.I.P.D., mas com contornos de seriedade, fortalecida pelos desenhos riscados de Templesmith, veterano de um novo horror, e as suas manipulações digitais de cores glaucas e ocres e apontamentos de luz. Os ingredientes necessários estão todos nos sítios, as pequenas pérolas de honra e moralidade no centro da abjecção são expectáveis mas justos, os factores entre o cool e o brutal equilibrados, a promessa de uma intriga maior do que se pensa ofertada. Se bem que alguns elogios a comparem a Hellblazer, será na ausência da análise cuidada e engajada de Delano nos primeiros números da sociedade em que se inseria, e mais isolada na sua bolha de fantasia (mais próxima do run de Ennis, que chamámos de “ópera”), mas ainda assim cria-se um perfeito ambiente para uma circunferência competente de escrita, eventualmente de culto. 
Lazarus. Greg Rucka e Michael Lark. Esta é outras das séries iniciadas há pouco tempo, como Ten Grand, por isso existem ainda elementos apena adivinhados. Mais uma vez deparamo-nos com uma exploração pela ficção científica de contornos sociais ou mesmo de crítica à actual política económica do mundo ocidental. Num futuro não particularmente distante, a propriedade da riqueza do mundo está literalmente nas mãos de um número muito reduzido de Famílias, e a esmagadora maioria da população humana é tratada como “Desperdício” (Waste). Os “Lazarus” são uma espécie de super-agentes protectores dessas Famílias, que podem sempre ressuscitar das mortes (daí o nome) e Forever é a protagonista da série, lançada num complot (claro), o qual se adivinha pôr em crise toda a sociedade em questão (claro), sendo ela o centro das atenções (claro). Rucka e Lark permitem-se a exploração de toda uma série de elementos pré-fabricados (as relações entre famílias parecem ser decalcadas da série A Game of Thrones), mas queremos acreditar que a longo prazo este título terá alguma relevância. Tendo em conta o seu trabalho no excelente Whiteout, e em Queen & Country, Batwoman, e Stumptown (que não lemos), Rucka demonstra gostar de trabalhar com protagonistas femininas, e essas personagens surgem sempre como mulheres autónomas, capazes, e cujas fragilidades nascem das circunstâncias das suas biografias (e não de uma suposta “natureza”), mas onde se encerram igualmente os factores que erguerão a sua força. O trabalho de Lark continua sóbrio, e até sombrio, com composições frugais mas eficazes, apenas se permitindo pequenos desvios significativos, tudo muito correcto e sem surpresas de maior. 
Saga. Brian K. Vaughan e Fiona Staples. Terminamos com aquela que possivelmente pode ser vista como a melhor série neste momento na Image de ficção científica, ou na banda desenhada mainstream norte-americana, ou outros contornos que quiserem. Tal como em relação a Prophet, esta série mereceria um post próprio, mas eventualmente esperaremos pelo seu término, como no caso de Scalped ou Y: The Last Man, também de Vaughan, para compreender toda a sua cristalização final. Saga é explícito no seu título, e centra-se na relação, à la Romeu e Julieta, entre dois protagonistas que partindo de cada lado de uma guerra interstelar, se apaixonam e abandonam os seus papéis antagonistas: Alana, de Landfall, e Marko, de Wreath, um satélite de Landfall. Uma guerra assola o universo há anos, mas fora dos planetas, o que faz com que os mais diversos povos e criaturas se encontrem de alguma forma de um dos lados das barricadas. Alana e Marko acabam por se juntar e têm uma filha, que ainda é bebé mas é a narradora da história (fazendo-nos crer de que tudo isto nos é contado em retrospectiva, mas poderá haver, e com Vaughan ao leme, haverá certamente, uma reviravolta inesperada). Para além da referência à maior história de amor de Shakespeare, é repetida por críticos também o modelo Star Wars, no sentido em que se une ficção científica, fantasia e magia, aventura e toques de comédia. Criando uma rede bem mais estimulante do que os Skywalker, por haver uma distribuição mais contemporânea de agência entre as personagens, algumas surpreendentes em termos de fantasia mas todas curiosas e inteligentemente criadas, e um grande escopo de ambiguidade moral e política sobre todas elas, Saga poderá vir a tornar-se indubitavelmente não só num título de grande sucesso junto a um público extremamente diversificado como um título de culto. Mais leve e menos preachy que Ex Machina, são tantos os elementos divertidos (a leitura de um romance rosa como se fosse o evangelho, dezenas de referências à nossa cultura de “lixo” contemporâneo num contexto de f.c., uma excelente compreensão - autobiográfica? - do que significa ter um bebé para cuidar e o tipo de tensões que isso gera em família; ah, e testículos de gigante), que se atravessam todas as facetas possíveis. A arte de Staples é belíssima, no interior da sua abordagem convencional: uma figuração impecável, composição justa, cores digitais competentes e com pormenores inteligentes, a sua “limpeza” permite que Saga se conduza numa leitura espontânea e desembaraçada.
Nota final: agradecimentos a G., por dar a conhecer Black Mirror, S.S. por insistir sobre Invincible, e P.B. pelos empréstimos. Imagens empregues colhidas da internet ou ficheiros digitais.

5 comentários:

  1. Tenho o infinite vacation mas falta-me ler o úlrimo nr demorou tanto a sair que quero começar do início. Achei interessante e muito divertida a abordagem a este conceito de universos paralelos, conto com uma boa conclusão.

    Jupiter's legacy também sigo, subscrevo na íntegra o que escreveu e como só saíram 2 números dou o benefício da dúvida, mas sem grandes esperanças.

    Lazarus está a desenvolver-se de forma interessante qb, vamos ver no que dá, tenho mais esperança neste que no anterior.

    Ainda juntava aqui à mistura o "East of West" do Hickman, mas cujo desenvolvimento tem sido lento. Gosto do design dos comics e da escrita do autor, mas se compensará a leitura, só o tempo o dirá. Também me parece livro que compensa mais ser lido em tpb que em comics.

    Depois tenho Fatale e Saga para ler em compilação já que não comecei a pegar neles na altura que saíram. Grandes esperanças nesses até porque sou fã dos autores em questão.

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  2. Apesar da longevidade do blogue só há cerca de duas semanas é que me tornei "um leitor ávido" e tenho passado algumas horas a ler os longuíssimos posts do blog, arquivos dos anos anteriores inclusivamente. Deixo o comentário para agradecer por todos eles, estão escritos de uma forma belíssima (o estilo merece os superlativos) e são um instrumento indispensável para os leitores de banda desenhada, como eu, que esperam "cobardemente" :-) que leitores mais generosos e competentes abram caminho a aquisições seguras de trades, hards, omibus e absolutes.

    Não sendo o caso particular deste post em relação aos autores, todos com nome no mercado e já descobertos certamente por quem lê comics há pelo menos uma década, no que toca aos títulos sempre é uma orientação bem estruturada que pode evitar os saltos para o escuro (ou para o excesso de claridade) a que os impulsos materialistas por vezes nos empurram.

    Obrigado e um abraço.

    José Sá

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  3. A Image, uma editora que considero das mais proficuas no atual panorama norte-americano.

    Saga é a minha série favorita no momento e, sim, porovavelmente das melhores a ser feitas nos comics.

    Leio também religiosa e atentamente Fatale, de que gosto muito, e Invincible, do qual partilho exactamente a mesmo opinião. Divetido, descomprometido, uma amálgama de momentos-suropresa típicos de algumas BD's.

    Fiquei bastante curioso em relação a alguns que desconhecia, especialmente Infinite Vacation, Prophet, Change e Orc Stain. Vou experimentar alguns destes!

    Muito obrigado.

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  4. Caros Loot, José Sá e SAM,
    A todos os agradecimentos pelas palavras e conselhos. Caro José Sá, aconselho moderação e muita água pelo meio, senão levará a insónias, indegestão ou coisas piores a leitura por atacado...
    Como disse, há muita coisa que não posso ler, mas o Hickman serguramente que é uma aposta interessante. Procurarei de imediato o "East of West". Quanto ao "jupiter's Legacy", confesso o problema: não conseguindo abandonar por completo as ligações infantis e adolescentes aos super-heróis, estou sempre à espera da "nova coisa", mas apesar das promessas, pouco se cumpre. É ir continuando à procura.
    Sou adepto usualmente dos tpbs, mas quero dar conta também dos prazeres inerentes à leitura seriada. Apenas durante um mês ou assim nos anos 1990 comprei caixas de cartão standard e envelopes de mylar, etc. Nunca mais. Esses fetichismos não existem, e tanto empresto comic books (e, sim, por vezes perco-os ou danifico-os) como os deixo no chão onde os gatos passam, ou outras mãos menos hábeis se interessam pelas cores. Azar. Os livros são para ler e partilhar.
    Obrigado,
    Pedro

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  5. Acredito que a Image é hoje a melhor editora mainstream dos EUA. Cada vez mais tem atraído roteiristas consagrados e em alta para projetos lá.

    Estou muito curioso pela série Southern Bastards do Jason Aaron, a primeira comic creator dele após o término de Scalped.

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