3 de setembro de 2013

Marvel Now!, 1ª parte (Comic Books, parte 1).

Há cerca de um ano, a Marvel, seguindo o que a DC havia feito, resolveu carregar no botão de “reboot”, e reformular muitos dos seus títulos, organizando novas equipas criativas, e colocando as suas personagens-marcas registadas em novos caminhos de desenvolvimento, não apenas coordenando-os em termos de narrativas, como de “branding” (o seu aspecto visual, etc.), esperando com isso conquistar não apenas novas gerações de leitores em termos etários mas também novos leitores que não liam comic books e que se aproximam provindos do interesse gerado pelas versões cinematográficas, e em geral que não estejam tão atolados nos problemas da “continuidade” (os seus aspectos negativos). Uma vez que muitas das decisões relativas a essa mudança implicavam enxertar no universo “normal” da Marvel alguns dos elementos das suas versões alternativas, que também funcionam como selos editoriais ou colecções dentro da companhia maior, essas mesmas linhas alternativas parecem vir a tornar-se obsoletas. Logo, essas mudanças significam algumas perdas: ainda que não a linha Ultimate possa não vir a ser cancelada, o convívio de ambas parece excessivo. Repare-se que estas últimas frases, lidas por quem acompanha tudo isto, mostram ser incompletas e insuficientes, mas para quem não acompanha, já são confusas demais. Aliás, tendo em conta o número de universos alternativos – Ultimate, New Universe, Marvel 2099 e o que mais houver - parece que há um desejo em enfiar tudo numa só linha, esta nova relançada…
Não lemos, nem pouco mais ou menos, todos os títulos. Mas aqueles que aconteceu seguir tinham as suas características redentoras (sempre na óptica, claro, do “pacote de batatas fritas”), nem que sejam em termos básicos de entretenimento. Do bem contido arco de Jason Aaron e Esad Ribic com Thor, God of Thunder, à bagunça mais recente entre os Vingadores e o “evento” Infinity, há todo um espectro destes prazeres, nem todos eles necessariamente maus.
“Evento”, neste contexto particular, quer dar conta de uma espécie de crise narrativa criada para cada Verão e que envolve o máximo número de personagens da companhia, criando ligações intertextuais entre os vários títulos, como forma de conquistar ou forçar leitores a comparem mais títulos. Este é logo à partida uma forma de desmotivar, a nosso ver, os novos leitores em acompanhar estas produções. No caso presente, Infinity, misturam-se tantos elementos e largam-se tantas linhas, que se teme que sirva simplesmente para fazer um contexto para uma história central risível e desinteressante, tal como já ocorreu no passado (Fear Itself, por exemplo), e não uma verdadeira “ópera épica” como o clássico Crise nas Terras Infinitas, da DC (recentemente publicado em português pela Levoir). Mesmo tendo em conta as diferenças inerentes àqueles títulos que se podem ler individualmente (Indestructible Hulk), os que se devem ler como uma história contida alargada (Thor, Moon Knight), como alongada a muito longo prazo (Iron Man, Daredevil) ou ainda as que se ligam a tudo (Avengers, etc.), quer-se em todos os casos um equilíbrio interno e uma constância sustentada. Mas é impossível no interior de uma companhia que precisa de manter o interesse e a compra viva junto a um público ávido de crises e choques, e com uma atenção treinada por estas meras 18 a 22 páginas mensais…
Seja como for, se há característica que estes autores do mainstream sabem fazer cumprir na perfeição é que o movimento da história é garantido totalmente pelos acontecimentos dessa mesma história. Apesar de ser muito interessante criar narrativas em que há uma personagem narradora que testemunha de longe os acontecimentos centrais - precisamente o que acontece em títulos como Marvels, Kingdom Come, Earth X -, num universo em que as personagens principais são super-heróis cujos atributos se expressam sobretudo por feitos físicos, e não propriamente a sua capacidade de pensamento, isso torna-se pura e simplesmente uma má estratégia - daí que aqueles títulos citados sejam tão aborrecidos. Existem casos de algumas obras que conseguiram fazer algo distinto, e por mais formulaico que isso pareça ser, é verdade que Alan Moore trouxe novas exigências (e Frank Miller, de quando em vez, num passado distante), mas a verdade é que quando os autores abraçam a natureza leve, de entretenimento e descomplexada destes universos, as coisas correm melhor (são os casos de Astro City e Invincible).
O que a Marvel Now parece conseguir fazer é relançar os seus títulos de maneira a que as personagens estão envolvidas em vários “nódulos de acção” que fazem progredir as histórias e as vão encadeando umas nas outras. Existem aspectos expectáveis, próprios da natureza, que é a de “aumentar a parada” a cada novo arco, mas ao mesmo tempo existem casos em que a coordenação dessas mesmas histórias é relativamente contida para fabricar algo de interesse.
Em termos ainda generalistas, também é de salientar que há duas dimensões totalmente opostas no universo Marvel que são aqui tentadas. Por um lado, o “street level” de um título como Daredevil, que havia sido explorado, a nosso ver, magistralmente por B. M. Bendis, e por outro, a dimensão cósmica, garantida por Jonathan Hickman, acima de todos. Se nos permitirmos ao abandono de uma reificação primária dos seus “pais”, diríamos que o street smart vem de Stan Lee e as visões febris de Kirby, mas seria preciso ter cuidado com essa essencialização, pois afinal era Kirby o puto de rua e Lee contribuiu muito para a expansão sideral da companhia. Daredevil regressou a um tom mais leve, e ao nível da rua, depois dos exageros mágicos de Shadowland e da “queda” desse herói (quedas, desaparecimentos e mortes são sempre muito transitórias no mundo dos super-heróis, e já nem sequer têm a carga dramática que poderiam ter, como no caso de A Morte de Fénix de Claremont e Byrne e A Morte do Capitão Marvel de Jim Starlin). A escrita de Mark Waid explora sempre os aspectos-chave deste género, seja para criar narrativas mais negras, ou, como neste caso, mais convencionais mas que funcionam, para mais corroborado pela arte vibrante e colorida de Javier Rodriguez e Alvaro Lopez [ver imagem no parágrafo cima], a equipa mais recente (depois de ter iniciado com Paolo Rivera, epígono de Michael Lark, e empregue outros artistas). Toda uma série de reveses mais ou menos expectáveis simplificam o que outros autores (mais uma vez, sobretudo Bendis) haviam tentado, mas compreende-se que no interior da narrativa as coisas tenham de “regressar” à normalidade – provando talvez que afinal as lições de U. Eco sobre o Super-Homem nos anos 1960 afinal ainda fazem sentido.
Outro título, hilariante, foi a história autocontida em Wolverine and The X-Men no. 17, de Jason Aaron com Mike Allred, que não apenas relembra alguns exercícios nos anos 1980 de palermices que se faziam desligadas da continuidade com intuitos humorísticos (neste caso, porém, até se pretende alguma relação) como dá a ver uma possibilidade produtiva raramente explorada: a criação de verdadeiro humor, por vezes de veios adultos, com estas personagens. Só a página que se mostra aqui recompensará os nerds de longa data, capazes de identificar o estranho objecto abaixo da metralhadora. O mesmo tom leve, onde está mesmo presente o humor, mas não tão desabrido, encontra-se nos primeiros números de Hawkeye, por Matt Fraction, David Aja e Matt Hollingsworth [imagem que inicia o parágrafo anterior], onde se mistura um tom retro, o cómico e acção “clean” q.b. Se a abordagem visual poderá recordar um David Mazzucchelli em Batman: Year One mais simplificado e colorido, a narrativa não tem nada do niilismo de Frank Miller, sendo antes quase devedora de sitcoms da Fox Life.
Os onze primeiros números de Thor, God of Thunder, escritos por Jason Aaron e desenhados por Esad Ribic (com apenas uma interrupção) constituem um arco narrativo muito coeso que possivelmente virá a ser conhecido como “Godbomb”, e no qual se exploram duas ideias: uma criatura que se deseja vingar de todos os deuses de todo o universo pela sua soberba em relação às criaturas que deveriam proteger (pouco importa que a visão de religião e divindade seja relativamente restrita, mas não é aqui que interessa procurar uma obra de antropologia comparada) e três momentos da vida de Thor, desde o jovem intempestivo, o deus actual e membro real dos Vingadores e o futuro novo Pai-de-Todos, um Thor do fim dos tempos. A escrita de Aaron é particularmente informada para criar um universo de referências alargado e coeso, ainda que sempre subsumindo à linha directa para a acção e a sua solução heróica. A arte pintada (por Ive Svorcina) de Ribic traz uma densidade de realismo fantástico, na escola de Frazetta, Segrelles e outros, mas com uma segurança maior de linha, e um brilho muito contemporâneo, dando a todas estas personagens e ambientes um ar mais credível, afastado daquele pop dinâmico que começara com Kirby, mas que encontrava mesmo em Walter Simonson e Olivier Coipel seguidores. Já outros autores haviam experimentando esta linha (Braithwaite, talvez?), mas sem a mesma desenvoltura. Acreditamos que esta história pode precisamente ser lida por leitores sem grande familiaridade com este universo de referências, tirando prazer dela, tal como o título que a Levoir publicara na sua colecção da Marvel (As Idades do Trovão).
O mesmo não acontece com nada do que se segue. Há muitos títulos que se tentaram ler, mas rapidamente se tornaram aborrecidos demais, para além mesmo das limitações expectáveis. E não tem a ver com um conhecimento limitado das personagens, das estratégias narrativas, ou das possibilidades de cruzamento e continuidade (afinal, trinta anos de treino permitem muitas expectativas mas também certezas); tem mesmo a ver com disponibilidade e paciência para ver fórmulas repetidas. Se há casos em que essas fórmulas são bem-vindas, há outras em que não. Daí que alguns outros títulos nem sequer suscitaram curiosidade. Por exemplo, o respeito ou mesmo admiração pelo trabalho de Bendis nalguns dos seus trabalhos antigos leva-nos a seguir o seu nome sempre que há um novo projecto. E sendo ele um dos “arquitectos” actuais da Marvel, esperar-se-ia que ele explorasse de modo consistente os títulos de que toma conta. Infelizmente, isso não é verdade e, seja como for, jamais se podem considerar novos trabalhos à luz de um anterior, a não ser em termos relativos. Não existem “grandes escritores” ou “grandes artistas” que produzam sempre com a mesma intensidade ou felicidade. Uncanny X-Men, com Chris Bachalo (e alguns números por Frazer Irving), tomba muito rapidamente num título para adolescentes, pejado de referências ora da cultura popular actual ora de inside jokes do tempo de adolescência do autor, e requenta toda uma panóplia de temas, crises e viragens surpreendentes deste grupo de personagens, mas cuja frescura e surpresa já não são reais. Frank Cho, com Savage Wolverine, criou uma espécie de reservatório enlouquecido de clichés (homens selvagens, Lovecraft, ficção científica, etc.), mas de tão absurdo e leve, consegue desculpar-se nesse uso desenfreado de tropos. Já Bendis, que pretende criar algo mais significativo a longo prazo na estrutura narrativa do universo Marvel, deixa muito a desejar.
O seu “evento” Age of Ultron também sofre dos mesmos problemas, quando coloca na equação, e rapidamente, viagens no tempo, versões alternativas das personagens a confrontarem-se entre si, etc. Bendis havia criado na sua série com Alex Maleev, Moon Knight, um excelente prelúdio, e que recordava o glorioso run de Daredevil, mas o resultado central é confuso. Se havia começado de uma forma promissora, com os desenhos perfeitos para este tipo de trabalho, com Bryan Hitch (vejam-se lado a lado as duas últimas imagens dos dois primeiros comic books, com o Capitão América, criando só aí uma mini-narrativa espectacular), rapidamente não só seria substituído por um desenhador medíocre e negligenciável (a desculpa seria que serve para variar visualmente os saltos no tempo diegéticos, mas desconfiamos dessa explicação), como a história descambaria no que tecnicamente se pode chamar de “clusterfuck”, ao ligar-se não só ao Universo Ultimate, como a introduzir mais uma nova propriedade intelectual, a Angela (vinda de Spawn, e que dava para mais um tratado sobre os bastidores legais e editoriais deste campo). Eis um dos graves problemas deste género para quem apenas gostaria de ler de vez em quando um título: a obrigatoriedade de compreender tudo o que se passa por causa dos títulos associados (tie-ins), e depois chegar-se à conclusão que essas interferências ou mudanças não só pouco ou nada significam a longo prazo para o universo narrativo, como criam arcos desprovidos de interesse, rigor ou até prazer.
Repare-se num aspecto. Usualmente é considerado que o emprego de soluções “deux ex machina” é falho, pois não emergem do que fora criado da relação entre as personagens. Mas no género de super-heróis, como evitar essas mesmas soluções, se são parte constituinte da sua matéria? Repitamos, este é um género. Logo, tem os seus próprios códigos, que o definem (de modos mais espartilhados ou folgados). Viagens no tempo, versões alternativas, sacrifícios, embustes, armas fantásticas, etc., são os blocos destas histórias. Se temos uma personagem como o Hulk ou o Thor, como não esperar que o primeiro esmague e o segundo levante o martelo? A questão está em encontrar um equilíbrio interessante entre essas soluções e as situações encontradas, e não, como ocorre em Age of Ultron, “carregar todos os botões”.

Já em Guardians of the Galaxy (e ainda o seu Infinite Comic), também de Bendis, com desenhos de Steve McNiven e depois Sara Pichelli, encontramos uma space opera mais divertida, e simples, mas por isso curiosamente fabricada, e que melhora substancialmente essa marca de experiências anteriores com o forte de Bendis: os diálogos e as relações taco-a-taco das personagens (inclusive o balde água fria que Tony Stark tem ao perder o seu “mojo” com ). Em grande parte, muitos dos esforços terão a ver com a versão cinematográfica que se aproxima, talvez, e serve a série se dúvida de produção comercial de apoio, mas é um título relativamente legível e independente do resto. Mas mais uma vez, apenas até ao número em que se vai integrar nos tais “eventos” e “crossovers...
Todos os Verões, “nada será como antes”, porque surge “a maior ameaça de sempre”, mas sabemos todos que as nossas marcas reg… personagens estarão cá à saída. Mesmo assim, é aí que reside parte do prazer, num certo abandono à espectacularidade da catástrofe, sabendo que a segurança das ficções está garantida. É como uma montanha russa, que nos assusta e excita na viagem, apesar de sabermos que voltará à partida.
Nota final: agradecimentos a S.S., pelas nerd sessions, a F.L., pelo empréstimo de algumas séries. Imagens colhidas na internet e ficheiros digitais.
(2ª parte aqui).

2 comentários:

  1. Acho que ainda não li nada da Marvel Now. Tenho o Moon Knight que foi editado antes do reboot acho, mas que já vi que tem clara ligação com o "Age of Ultron" (faz sentido).

    Dos restantes títulos o que tinha maior curiosidade era o do Hawkeye. Agora fiquei tentado com o Thor tb.

    Excelente rubrica já agora, mais uma vez que a provar a variedade de conteúdos que encontramos por aqui.

    Cumprimentos

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  2. Excelente continuação do artigo anterior e resumo interessante do atual estado da Marvel. Conseguiu aqui um apanhado fácil de seguir para os mais desavisados nestas coisas da BD de super-heróis.

    Partilho da esmagadora maioria das impressões acerca dos vários titulos (Age of Ultron, Daredevil, Hawkeye, Wolverine & the X-Men, et al), ainda que existam algumas excepções. Tenho um bom preço pelos X-Men de Bendis.

    Num outro assunto, partilho na integridade na sua opinião da Crise nas Terras Infinitas e qq referência à mesma e à exelente tradução da Levoir é sempre de louvar.

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