Não é que não seja possível dedicar tempo de análise a estes títulos, bem pelo contrário, até como demonstrado numa antologia académica muito recente, The Superhero Reader (Mississippi), de que daremos conta. Simplesmente a economia da sua fruição - tipicamente mas nem sempre um comic book por mês, leituras intercaladas de várias personagens em contextos diferentes (o que sucede na Marvel e DC), integração em linhas de desenvolvimento editorial, autoral e de companhia que se arrastam por anos, incapacidade de nos decidirmos onde encontrar um “princípio” e onde um “fim”, etc. - e o facto deles serem objecto de maior atenção (por vezes quase exclusiva) noutros canais dedicados à banda desenhada, leva-nos a não considerarmos a sua existência num mesmo patamar de exposição. Bem pelo contrário, ela está sobreexposta, ainda que nem sempre os esforços da sua consideração sublinhem o seu “potencial expressivo, a adaptabilidade metafórica, e a durabilidade histórica” do género (como escrevem os editores da antologia académica referida). Seja como for, nada significa que não se vão lendo trabalhos deste universo… É disso que queremos dar conta.
No entanto, este primeiro post quer tentar explicar a razão pela qual há uma mescla paradoxal de prazer e irritação particulares no seu seguimento.
De acordo com as tipologias já tentadas, os “serials”, que se poderiam traduzir como “periódicos” ou “em série”, compreendem vários objectos editoriais, desde aquelas publicações regulares ou semi-regulares que têm conteúdos diversos (tais como os jornais, revistas, almanaques), até “textos unificados publicados em fascículos ou partes independentes ao longo de períodos”, mas incluem-se ainda livros autónomos entre si, mas que pertencerão a uma colecção uniforme, numerada e publicada regularmente (constituído, portanto, uma série). Estes últimos existiam sobretudo nos campos da literatura de género: pulps do fantástico, do policial ou da ficção científica (basta pensar nas colecções da Argonauta, da Caminho…). A serialidade, neologismo decalcado do inglês mas que pretende sublinhar características teóricas muito específicas que não estão cobertas com o mais comum “periódico”, era uma característica perene em muita da literatura do século XIX e não significava, por si mesma, nenhum posicionamento em relação à qualidade do que presidia. É verdade que a esmagadora maioria do que terá sido produzido caiu nos abismos do esquecimento, e merecidamente, mas a esmagadora maioria de seja o que for é de baixa qualidade: não escondamos a existência de estruturas em pirâmide em tudo, onde apenas um número mínimo estará num topo. Já a questão de como é essa pirâmide constituída, ou como sobrevive, ou se existem mais do que uma concorrendo num mesmo momento, etc., é a discussão mais interessante, mas tremenda e que não perseguiremos aqui. Com a distância que a história nos proporciona, porém, ao pensarmos em Dickens, Thackeray, Dumas, Balzac, Eugène Sue, Eça, talvez possamos esquecer-nos que eram escritores “populares”.
A existência deste tipo de literatura periódica remete aos séculos XVIII, ou talvez um pouco antes, na Europa, mas foi com o advento do século XIX (a própria palavra inglesa surgiu na era vitoriana) e um enquadramento económico-social (uma burguesia mais abastada, cidades desenvolvidas, meios de transporte e comunicação mais céleres, formas de organização de informação, escolaridade crescente, massa crítica da cidadania, modos industriais de produção, inclusive de todos aqueles associados ao mundo das publicações) que sofreu um surto significativo. O sucesso desse “formato” - e, de facto, parte da sua definição é a uniformidade de formato ao longo da publicação, com o intuito mesmo da sua colecção e/ou encadernação em volume - prendia-se sobretudo com factores económicos, do lado dos produtores (era mais barato produzir cadernos, mais barato vendê-los através de livreiros ambulantes, quiosques ou assinaturas por correio do que tê-los em livrarias, o próprio trabalho literário e artístico era organizado segundo processo tayloristas, e os editores podiam cancelar um título se não vendesse o suficiente) e do lado do leitor (era mais barato e menos doloroso comprar os fascículos um a um que o volume inteiro), mas igualmente psicológicos: o prazer de observar e desfrutar em doses regulares e empolgantes o desenvolvimento de uma intriga, o sucesso de uma personagem, assim como a de partilhar essas fortunas com os concidadãos. Em Inglaterra, por exemplo, alguns investigadores falam mesmo de “literatura de caminho de ferro”, apontando sobretudo à forma da sua fruição, o que é fundamental para a entender. Antes da rádio, do cinema, da televisão, as pessoas discutiam nas ruas e nos empregos o que havia sucedido a David Copperfield, Dorothea Brooke, Sherlock Homes, Jean Valjean, aos habitantes de Vanity Fair ou às personagens de A ilha do tesouro.
Ora apesar do romance em livro, ou volume, depois se vir a
transformar, discutivelmente, no género maior da literatura durante o século
XX, deixando a ideia de “episódios” pré-publicados para trás, a banda desenhada
moderna acabaria por herdar e continuar esse processo. Em primeiro lugar temos
aquela presente em periódicos, como as várias “sagas” de Christophe, por exemplo, ou o advento de uma personagem como Ally
Sloper, depois as tiras de continuidade nos jornais norte-americanos já nos anos
1910, como The Gumps, por exemplo. E, finalmente, temos o comic book.
Este formato de publicação,
particular ao mercado dos Estados Unidos, começou, como se sabe, como uma mera
forma de coleccionar e revender material de tiras de jornais, e as várias fases
pelas quais atravessou, desde o desenvolvimento de material inédito e original,
a linguagens formais e temáticas próprias, a finalmente a instituição das
estratégias narrativas dos nossos dias, levaram anos, senão décadas. Além
disso, no que diz respeito a este campo de criação de banda desenhada, a
“serialidade” vem misturar-se com um outro conceito, que é o da “continuidade”
- basicamente, o estabelecimento de um universo diegético causal, unificado e
coerente entre todos os elementos, obrigando a uma certa “memória interna” das
personagens em relação às suas aventuras anteriores. A diferença pode parecer
de grau, mas é de natureza. Por um lado, temos uma única história, uma unidade
textual “cortada” ou “apresentada” em episódios mas tratado sob uma designação
unificadora: o título do romance, por exemplo. Por outro, temos várias
histórias ou “arcos narrativos” que se estendem por muito tempo mas que vão
sempre contribuindo para uma mesma “realidade”. Os tais “universos diegéticos”,
sendo os mais famosos os da Marvel e DC. Isto leva à necessidade de
desenvolvimento de capacidades cognitivas muito próprias a este género, que
implicam as noções de compossibilidade, dos multiversos, e da criação de “mundos
de história” complexos, tudo aspectos estudados por investigadores como Jeff
McLaughlin e Karin Kukkonen.
Ora, se já nas histórias do Super-homem e do Batman nos anos 1940
existem várias personagens recorrentes que não as imediatamente principais e/ou
coadjuvantes, e a “arqueologia” desse mesmo conceito seja de uma extrema
complexidade e pejada de pormenores, a verdade é que neste caso preciso
encontramos em Stan Lee, no “Renascimento” do género nos anos 1960, o grande
arquitecto da ideia feliz da “continuidade” na banda desenhada
(norte-americana, mainstream, no formato comic book, de
super-heróis, se for necessário qualificar). Logo de imediato em Spider-Man no.
1 (a segunda revista a contar com essa personagem), o protagonista tenta
juntar-se ao Quarteto Fantástico, personagens elas mesmo de um outro título já
com grande sucesso. Rapidamente os títulos que se seguiriam, como Avengers
e The X-Men, procurariam estratégias idênticas, fazendo-se crossovers
(em que personagens de um título participam nas aventuras de um outro, técnica
já experimentada anteriormente quer pela Timely quer pela DC, mas sem que as
personagens se “recordassem” das aventuras anteriores), ou começariam a
recuperar e integrar as personagens antigas ou “esquecidas” da companhia
(começando com Namor e depois o Capitão América; o Tocha Humana, primeira
personagem da Timely-Marvel, havia sido recuperada de um modo diferente,
aproveitando o conceito geral e o nome para o membro do Quarteto). Mas mais
importante foi o arco dito “de Galactus”, que Lee e Kirby expuseram ao longo de
vários números de The Fantastic Four. Estes gestos levaram àquilo que
seria um dos pilares desta indústria, não apenas em termos estruturais,
narrativos e estilísticos, mas pode-se considerar mesmo uma das características
de força do género. A continuidade exige muito dos seus leitores, uma entrega
cognitiva e até emocional muito particular, uma espécie de memória férrea de
muitos elementos flutuantes que ora desaparecem ora reaparecem e contribuem
para um sentido nem sempre explícito no próprio texto, mas precisamente
fantasmado pelos elementos de trabalhos anteriores. É uma complexidade própria,
as mais das vezes desprezada por estar associada a esta cultura popular,
contrastando com a atenção que investigadores dedicam à complexidade
narratologia de obras literárias, fílmicas ou outras. Todavia, é essa
característica também que forma leitores particularmente obcecados e muitas
vezes acerbos críticos de qualquer desvio ou, digamos, “ignorância”, o que
torna toda essa cultura algo impenetrável, negligenciável, ou até mesmo enervante
para os “de fora”. Como escreve Pascal Lefèvre, em “Incompatible Visual
Ontologies? The Problematic Adaptation of Drawn Images” (em Film and Comic
Books), há uma espécie de atitude conservadora no consumo destas produções
que é caracterizada por um “conhecimento quase de idiot-savant [autismo]
de uma particular série de super-herói”.
Ainda outro factor importante a ter em conta na apreciação - ou pelo
contrário, nas razões de não os seguir - dos comic books deste campo
específico é que se trata de uma indústria de marcas registadas. Antes de serem
personagens, ou apesar de o serem, o Batman e o Homem-Aranha, o Homem de Ferro
e o Super-homem são marcas das suas companhias respectivas, que representam
entrada de capital graças ao seu uso em vários produtos, desde os narrativos,
como a própria banda desenhada ou os filmes, até objectos de uso particular, de
jogos de cama a copos para refrigerantes (e desde a integração corporativa da
DC na Time Warner e da Marvel na Disney que as coisas aceleram nessas frentes).
Essa é uma das razões pelas quais as companhias são obrigadas (?) a
tratarem-nas como tal, garantindo, por exemplo, que se mantenham como sua
propriedade em termos de direitos de autor, o que leva a que se esforcem para
que não desapareçam dos livros nem dos filmes, etc., obrigando a repetidos
relançamentos, reboots, produções apressadas de filmes, etc.
Recordar-se-ão alguns leitores, talvez, de que havíamos tocado este assunto a
propósito de dois projectos assinados por Straczynsky, e onde mencionámos
outros títulos. No que se segue, temos o caso gritante de Before Watchmen (DC),
a re-integração do New Universe e dos Space Knights na Marvel, e ainda se
poderia falar do relançamento de Prophet (Image).
Um pouco como no caso português da Sagres e da Super Bock, no qual
salvas as diferenças factuais, as estratégias de comunicação e variação do
produto são muito idênticas e quase acompanhando-se umas às outra taco-a-taco,
também a Marvel e a DC seguem calendários relativamente similares. Basta ver a
proximidade no “relançamento” ou “rebooting” quase completo dos seus
respectivos universos, com a “Marvel Now!” e o “New 52”, de cada uma destas
respectivamente. Ainda que outras companhias sejam diferentes, como a Dark
Horse, a Image ou outras, cada uma com as suas características próprias, e
nenhuma delas com uma organização de continuidade como as duas grandes e mais
velhas empresas, o tipo de prazer dos seus títulos regulares, ou mini-séries
contidas, levantam uma constelação de prazeres idênticos.
A partir de amanhã, portanto, haverá uma concentração nessas
produções.
(imagens colhidas na internet)
Interessantíssimo este post. Fiquei com a curiosidade aguçada para os que seguem. Apesar de serem temáticas que conheço há já mais anos do que provavelmente é saudável, é sempre bom ouvir ainda mais uma voz.
ResponderEliminarExcelente trabalho.
E já agora, obrigado pela referência "The Superhero reader" que desconhecia e que já incluí para futuras compras.
Fico a aguardar texto sobre "The Super Hero Reader". Embora não tenha este título, até hoje não me desapontei com nenhuma obra sobre BD da University Press of Mississippi. Abraço,
ResponderEliminarOlá a ambos, e obrigado pelos comentários. Apesar de quem acompanha a literatura académica já ter alguns dos textos incluídos nessa antologia (textos de Hatfield, Coogan, Bukatman, entre muitos outros), ainda assim não deixa de ser um bom ponto de partida - daí, "reader" ou "florilégio", ou algo assim. E, seja como for, a leitura dos excertos ou papers pode aguçar o apetite para depois comprar os livros originais...
ResponderEliminarO que se segue são apenas notas (ainda que longas), destas "dietas" malsãs, mas que são um vício...