7 de outubro de 2013

Eve sur la balançoire. Nathalie Ferlut (Casterman)

Deve ser motivo de júbilo quando um livro, independentemente da sua matéria ou tema imediatos, ou até mesmo sob um entendimento das suas qualidades intrínsecas, acaba por ganhar uma dimensão de relevância devido a ora uma qualquer forma de espelhar a contemporaneidade ora a iluminar algo que contribua para um melhor entendimento da cultura a que pertence, enquanto objecto de um meio. Eve sur la balançoire é revelador de ambas essas dimensões ao mesmo tempo.
Num momento em que uma ícone – independentemente do que se julgue ou se goste dela, é quem ocupa um dos nichos da hora – como Miley Cyrus relança discussões sobre o modo como a sexualidade se mistura com outras áreas de talento (suspendamos agora a sua presença ou ausência em Cyrus), ou a forma como ela é um ingrediente quase necessário para a venda de qualquer produto, seja de sabões ou canções, automóveis ou gadgets, e, como vimos há semanas, até eleições, é muito curioso pensar onde se encontrará a origem desse laço. Se bem que a comercialização dos corpos e do sexo é algo antigo (por alguma razão se fala da “mais antiga profissão do mundo”), queremos aqui aproximar-nos da noção marxista da transformação do corpo-sexo num bem transaccionável (ou a chamada “comodificação”), o seu uso enquanto elemento publicitário, forma de conquistar fama, e com isso contractos chorudos. Uma das possíveis fontes disso é a passagem do século XIX/XX nos Estados Unidos da América, com a sua “American Eve”. Ostensivamente, este livro é uma biografia de Evelyn Nesbitt, a qual se poderá descrever como um dos primeiros ícones, identificados por nome, de beleza “comercial”, “capitalista”, “comodificada”, dos mundos a que mais tarde se chamariam de “publicidade” e de “modelo fotográfico”. Nascida em 1884 em Pittsburgh e órfã de pai, Evelyn viu-se quase como que arrastada aos 16 anos para a cidade de Nova Iorque, num dos seus primeiros picos de conquista de papel cultural à escala global: a Belle Époque é possivelmente o momento em que essa cidade começa confortavelmente a conquistar o seu papel enquanto metrópole mundial da economia e da cultura. E pode-se considerar que Evelyn se encontraria num dos proverbiais centros do furacão.
Tal como Miley Cyrus é “prostituída” pela indústria musical – e, muito sinceramente, não vemos a diferença da fase Disney e pós-Disney no que diz respeito à relação de trabalho, já como havia ocorrido com Britney Spears e Lindsay Lohann e etc., sendo as diferenças apenas as da moralidadezinha -, e muito possivelmente com a conivência do próprio pai, produtor da sua carreira, também a jovem Eve era instigada para entrar nos “circuitos certos” pela mãe, que não apenas a acompanhava como procurava agressivamente trabalho para ela. E, de facto, depois de conquistar um primeiro trabalho como modelo para o pintor J. C. Beckwith, rapidamente ganha mais contractos, quer com pintores quer com fotógrafos, quer mesmo para adornar com o seu belo rosto angelical toda uma série de produtos, de cigarros a pastas dentífricas, corpetes e perfumes, e dezenas de postais ilustrados. Tudo no erotismo da época, que nos parecerá extremamente púdico, mas que ainda mantém muito de um glamour lânguido e voluptuoso (que, a nosso ver, desapareceu das abordagens mais explícitas e desprovidas de qualquer subtileza ou jogo, passa e exploração ser idêntica). No entanto, veja-se a sua fotografia com o jarrinho de leite, cuja leitura é quase óbvia (mostramos a foto original, no fim do livro, e a composição da autora, que cria como que uma análise da imagem).
Mas há ainda um outro ingrediente indispensável na “fórmula” que se viria repetida no século que se seguiria, um padrão verificável nos dias de hoje. A sua ascensão em determinados mundos sociais e culturais em Nova Iorque (o mundo dos espectáculos da Broadway, da publicidade, etc.) foi feita igualmente com o seu envolvimento amoroso com Stanford White, arquitecto poderoso na sua cidade, que a “apadrinha” e amantiza – uma sequência que o mostra, ainda que diegeticamente num espectáculo dado na sua casa, mascarado de lobo para apanhar a jovem Eva Capuchinho Vermelho a cair do famoso baloiço de veludo vermelho (que dá nome ao livro, e também título a um filme com Joan Collins, adaptação livre da sua história, tal como um outro filme recente de Claude Chabrol) não deixa muito espaço à imaginação do leitor à leitura que a autora pretende. Aliás, essa imagem do baloiço, reforçada pela representação da capa, poderá aliar-se a um outro jogo de revelação erótica num baloiço, o famoso quadro de Fragonard. A agravante, todavia, nesse enleio amoroso, está na forma de “cegueira” a que a mãe se entrega, garante dos caminhos afortunados que a filha, e ela própria, continuariam a trilhar. Mais tarde, após as necessárias e rocambolescas reviravoltas, Eve casa-se com um milionário, Harry Thaw, o que lhe garante uma estabilidade material, mas ao mesmo tempo um afastamento do mundo maravilhoso a que se vira habituada antes. O tal ingrediente é, claro está, a sensacionalista – é nesta época, iniciada já no século XIX pela “imprensa amarela”, que a nova cultura mediática dos tablóides começa a acalorar a sua natureza predatória - queda e desgraça do ícone, a qual teve lugar com o assassinato de White por Thaw, surgindo assim a desculpa para demolir o ícone que tanto fora levantado. Por outro lado, é necessário temperar esta clara narrativa, já que na verdade Evelyn apenas conquistaria a fama precisamente por causa do caso judicial, e não tanto pela sua carreira, apesar da ubiquidade do seu rosto (o qual, sendo desenhado ou atravessando vários filtros altamente convencionais e estilísticos, surgiria mais idealizado do que “verdadeiro”).
Nathalie Ferlut opta por tornar o centro nevrálgico da narrativa precisamente o julgamento de Thaw. Aliás, esse caso foi conhecido como “o do século”, expressão que seria empregue vezes sem conta no século XX, e já no século XXI também para as mais variadas ocorrências e circunstâncias, o que deveria desde logo servir de sinal da sobranceria humana, usualmente atreita apenas à sua imediata conjuntura. Não nos compete afirmar se a pesquisa é completa, se os factos escolhidos para a construção desta biografia são equilibrados ou sectários, se há ou não uma sólida correspondência com os factos da história. A autora opta por uma construção analéptica que se inicia em 1907, no processo judicial, e é recuando e percorrendo o percurso de Eve até esse presente que vamos tendo os elementos necessários para a compreensão dos eventos, mas ao mesmo tempo permite uma manipulação dos factos e da imaginação, do real e do projectado, para criar o ambiente, espectral e diáfano como as artes da época, imperativo nesta narrativa. Concentrando-se apenas nos seis anos entre a sua chegada e o assassinato de White, é possível que a fonte principal (já que é citada, nos documentos complementares no fim do álbum, assim como outros materiais) seja um livro de Paula Uruburu, cujo imenso título explica tudo: American Eve, Evelyn Nesbit, Stanford White, and the Crime of the Century.
Mas se não há uma atribuição monocausal de responsabilidades pela situação, tampouco os intervenientes saem incólumes, já que o que se explora, para além da biopic de Nesbit, são os mecanismos de construção e ascensão de um ídolo moderno, e os modos que ele lança as suas ligações com a sociedade na qual não só emerge, como reflecte e que também constitui. Como se compreende da obra de Uruburu, este caso é o “início da uma obsessão nacional pela juventude, a beleza, e celebridade e o sexo”.
Há um aspecto importante nesta mulher para a história da ilustração, mormente aquela a que se poderia chamar de “de moda” ou “da publicidade”. É que, não tendo sido ela nem a única nem a primeiro modelo para os desenhos de Charles Dana Gibson, foi uma das que mais se encaixaria na padronização do seu famoso trabalho. Ela era mesmo um modelo “clássico” de Gibson, nas palavras de Trina Robbins, importante historiadora da banda desenhada, mormente de uma perspectiva dos Estudos da Mulher. Num blog existe uma análise detectivesca que procura essas ligações. As Gibson girls eram um modelo de beleza, assim como outras tipologias como as Vargas girls, as Nell Brinkley girls, etc., todas elas estudadas por Trina Robbins, que destrinça as suas diferenças particulares quer em termos físicos quer comportamentais, ainda que à distância de mais de um século, uma breve consideração desses ícones nos possa levar a pensar serem permutáveis entre si (mas isso seria errado). A diferença maior entre as figuras desenhadas por Gibson e Brinkley não estava tanto nos traços físicos como nas actividades em que as personagens se encontravam (se bem que os fulvos caracóis da segunda, soltos, indomesticados, sublinham essas mesmas acções): se Gibson mostra as suas girls a andar de bicicleta, na praia ou a dar ordens aos seus admiradores, Brinkley lança-as no centro de dinamismos totalmente autónomos e selváticos, saltando, dançando, brincando, transmitindo uma alargada expressividade e vivacidade com os seus rostos, ao contrário de Gibson, de rostos mais hieráticos e fleumáticos. De certa forma, a figura de Eve Nesbitt encontra-se num hipotético centro dessa “transformação” – ainda que as imagens e a própria expressão Gibson girl seja mais perene e tenha sobrevivido melhor do que a de Brinkley girl, recuperada pelos livros monográficos de Robbins (Nell Brinkley and The New Woman in the Early 20th Century, e, mais tarde, pela Fantagraphics, The Brinkley Girls).
À nossa distância, apeteceria dizer que Evelyn teria sido a primeira “teen idol”, mas a verdade é que mesmo o conceito de “adolescência” ainda não havia surgido (isso é algo que ganharia substância nos anos 1950-60): as mulheres casavam-se pelos 16 e 17 anos, essa era a idade normal das actrizes e choir girls dos vaudevilles. No entanto, na nossa perspectiva pessoal – provavelmente enviesada pela ignorância histórica e presa às circunstâncias actuais -, vêem nesta figura o início de uma mudança do ideal de beleza: a pequena adolescente núbil substituindo o da mulher voluptuosa, de curvas generosas. Seja como for, as implicações sexuais e comerciais fazem-se sentir. Há uma última informação curiosa para a história da ilustração, no nexo destas referências. É que ainda de acordo com Trina Robbins sabemos que Nell Brinkley cobriu o processo judicial numa abordagem prototipicamente jornalística (julgamos que para o New York Evening Journal, um dos órgãos de informação de W. R. Hearst).
Ferlut não se apresenta como uma autora com uma abordagem em que a representação seja sistemática ou conforme, já que o seu uso de aguarelas de cores fluidas e vivas e variadas incutem um certo dinamismo permanente às figuras e fundos. Mesmo que empregue nalguns casos aquilo que parece ser manipulação digital, colagens, ou mixed media, a ideia final ou impressão é a de camadas de aguarelas atravessando os planos de composição. As suas formas e motivos, em muitos casos, parecem mimar as das muitas artes do tempo que retrata, compreendendo-se Degas e Toulouse-Lautrec, Mucha e Rackham, mas também os espectáculos cromáticos dos vaudevilles de uma Loïe Fuller ou das coristas de musicais como Florodora (das quais Eve fez parte). Procura-se portanto beber de uma certa imagem da época para que se espalhe em todo o livro, e se a composição é relativamente convencional, existem algumas páginas que revelam um incisivo sentido da sua pertinência e elegância, que obriga a reler ou rever as formas como dispõe as imagens nas pranchas. É muito usual que a autora mude radicalmente de paleta, para dar a entender uma mudança de hora, uma progressão natural da luz do dia, ou então assinalar cenas nocturnas, ou interiores durante um espectáculo, ou uma fria espiral onírica, ou uma cálida noite de amor. Ou seja, ainda que haja um forte ancoramento “epocal”, também podemos compreender que Ferlut fará parte de todo um conjunto de autores contemporâneos de banda desenhada que tira partido das potencialidades da cor não enquanto mero instrumento de embelezamento ou de realismo, mas antes enquanto dispositivo gráfico e expressivo no seio das estratégias narrativas, suportando os seus eixos, dinâmicas. Se podemos num cômputo geral dizer que Eve nos apresenta um relato relativamente directo, isso não significa que não consiga balançar uma miríade de elementos ambientais extremamente justos em relação à época e à personagem e suas impressões, já que tudo é enquadrado pela sua voz, como numa autobiografia. Mas numa voz que parece falar dos tempos que vivemos.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro, e a Trina Robbins, não apenas pelas várias informações trocadas por email, como pela imagem de Nell Brinkley.

6 comentários:

  1. José Sá7:58 da tarde

    Lateralmente, gostava de referir a tua utilização de duas palavras neste texto, por frivolidade apenas :-) :
    Não fiquei fã da "comodificação". Como antigo estudante de economia (desisti ao 3º ano do curso por não aguentar tanta liturgia e tão pouca ciência), continuo a associar commodities a mercadorias e, assim de chofre, a palavra soa-me mal. Espero que não seja um daqueles anglicismos que estão a pegar.
    A outra palavra é o tropical "tampouco" que me recordo de utilizar há muitos anos num exame de português do 7º ano, certamente influenciado pelos gibis que lia na altura e que fez com que a professora usasse o seu lápis lazúli (ou larosso) por todo o teste e me desse a única negativa que tive algum dia num teste a português. Assim sendo, desde aí, também passei a usar muitas vezes o "tampouco" como expressão da minha revolta com causa.

    Pentelhices à parte, para citar um famoso oligarca de uma das mais necessárias commodities dos nossos dias, penso que "acertaste com a linha na agulha" ;-) quando, relativamente às "formers" jovens artistas da Disney, afirmas que elas já se prostituiam na Disneylândia e que esta mercantilização da sua sexualidade é um prolongamento do comportamento que já decorria na infância. Parece que estou a ver uma Minie numa esquina mais recuada do Castelo Encantando a bater perna para Patetas solteiros ávidos de sexo e com dinheiro para gastar.
    Gostei muito da apresentação do livro como proposta de apresentação da transição do erotismo para a modernidade, ou pelo menos do ideal de beleza, o abandono da voluptuosidade em favor de um novo "pedoerotismo", se é permitido dizer. No caso concreto é, sem moralismo e somente pela metáfora, mais um crime de Whitechapel a apresentar ao século XX uma nova relação com a sexualidade. Partilho, ainda que num plano muito inferior (sinceras genuflexões), a tua imodesta ignorância histórica para as razões desta mudança de padões estéticos. Atrevo-me a pensar, por mera intuição, que é um regresso aos clássicos gregos, e à sua opção por jovens imberbes e doces tanagras (apesar do corrector prefiro este grafismo). Certamente, penso, os avanços civilizacionais permitem fases mais hedonísticas, que nos levam a encarar a sexualidade como algo afastado da mera reprodução da espécie e fazem a transição da vénus de Willendorf para a de Milo.
    Não estou à espera, como percebi pela tua descrição, de um "From Hell", mas vou à procura deste livro.
    Aí está a importância da divulgação, e da deste blogue em particular.
    No pares, sigue, sigue :-)
    Obrigado e um abraço.

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  2. Caro José Sá,
    Há muito que responder, e agradeço o desafio. Terei de ser breve, porém:
    1. não gosto igualmente da palavra "comodificação", tal como de "mass media", por isso as emprego entre aspas, e quase sempre a seguir da expressão mais comprida em português. Quanto ao "tampouco", é português de lei. Independentemente do policiamento torto de certos professores.
    2. É óbvio que há um grau de diferença do que se mostra ou explora entre o mundo patrocinado pela Disney e aquele que dele se deseja libertar, mas a questão de fundo é a mesma, a capitalização e transformação em bem de representações sociais. Além disso, a imagem que indicou já existe: procure "Disney Memorial Orgy", de Wally Wood!
    3. De facto, o conhecimento histórico para ser sólido tem de ter em conta toda uma série de factores, os quais estão fora do meu alcance, e por isso posso estar enganado em ver essa transformação nesta personagem (além de que é sempre redutor, historicamente, querer ver "causas únicas"). No entanto, é por aí que se vê essa transformação... Já quanto à Grécia antiga, discordo, pois aí existe mesmo um contexto totalmente diferente no que diz respeito à sexualidade e à "moralidade" que diz respeito às idades... Mas isso seria uma outra pesquisa...
    4. Não pensando que este livro seja uma obra-prima incontornável, ele será um bom livro. Não podemos estar sempre à espera de recordes.
    Obrigado,
    Pedro Moura

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  3. José Sá4:11 da tarde

    Pedro, obrigado por mais uma resposta generosa. Só respondo novamente para dizer que fiquei assustado ao consultar a imagem que sugeriste. Nunca a tinha visto, tudo bem que a piada estava relativamente escancarada ;-), mas, mais uma vez, a total coincidência de pormenores perante o que tinha escrito deixou-me arrepiado. A perversidade deve fazer parte do código de informação genética transmitido através das gerações...
    Obrigado, obrigado.

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  4. Interssante. A história, que desconhecia, atribiu mais peso ao termo "plus ça change, plus c'est la même chose".

    Muito obrigado por esta referência.

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  5. Je regrette infiniment de ne pas comprendre mieux le portugais, mais merci pour cette jolie et intelligente critique de mon livre. (aviez-vous lu le livre de Paula Uruburu?) Nathalie Ferlut

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  6. Chère Natalie Ferlut,
    C'est moi que vous remercie de nous avoir confié cette livre. Non, je n«ai pas lu le livre de Uruburu, mais seulement quelquer entretiens et quelques parties du livre dans l'internet, critiques, etc. A propos, votre livre serait envoyé maintenant à Trina Robbins. Elle est très curiouse de votre livre.
    Merci et je vous souhaite beaucoup de succés avec "Eve" (et toutes les autres livres, bien sûr).
    Pedro

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