9 de outubro de 2013

FIBDA 2013: Seis esquinas de inquietação (autores brasileiros).

É hoje divulgada publicamente alguma da programação do FIBDA 2013. Este ano, o tema geral - uma espécie de obrigatoriedade política na organização do Festival mas que nem sempre ganha relevância organizacional, estética ou de programação -  é o “cenário”, noção que poderá ganhar várias interpretações, desde o espaço topológico representado nos trabalhos de banda desenhada, sejam eles reais e históricos ou ficcionais, à espacialização do tempo e dos protocolos de leitura na composição das pranchas, ao “fundo” ontológico e temático que as bandas desenhadas podem percorrer, ou mesmo, se nos permitisse o desvio francófono, pelas próprias histórias ou narrativas (o “argumento”). Como era de esperar, a ilustração do cartaz deste ano é assinado por Ricardo Cabral, que criou uma paisagem imensa, cheia, exuberante, precisamente de um cenário em permanente mutação, óbvio homenagem/decalque/reconstrução da “Veneza Celeste” de Moebius, mas também sintoma das suas próprias viagens diversas que transformou em diários tocantes e interpelantes, e onde a geometria não-euclidiana de um Escher se encontra com os espaços reais do próprio FIBDA, e o seu entorno local (o comboio, alguma fachadas e bairros, a topografia ao fundo, e até a sua própria inscrição múltipla autobiográfica nas personagens que flutuam nessa paisagem, procurando vários avatares que bebem das mais variadas fantasias da banda desenhada, da mangá aos super-heróis passando pela plasticidade pós-Incal de Moebius, mais uma vez). A estratégia de comunicação deste ano leva a que em cada instrumento de divulgação (cartaz, banner, MUPI, badana, capa, brochura do programa, etc.) surja apenas um fragmento da imagem total, ainda em consonância com o tema, interrompido por simples formas geométricas informativas que criam ainda mais vontade de revelar a imagem na totalidade, um jogo muito próximo de Baldessari, que cria um desejo particular sobre as imagens que eram dele desprovidas. Nesse sentido, a elegância, suavidade e cromatismo “plasticina” de Cabral encontra um drástico contraste nessas formas simples e mecânicas, provocando esse diálogo contrastivo e paradoxal. Apesar da celeuma que tem criado na blogosfera, muitas vezes repentina no seu julgamento sumário, e independentemente de pequenos desequilíbrios ou soluções mais acertadas que se poderiam ter feito, a relação entre o briefing, a imensa ilustração de Cabral e as consequentes intervenções infográficas e textuais planeadas foram pensadas atempada e anteriormente. Enquanto autor de banda desenhada, Cabral preferiria ter planeado de avanço o espaço a ser ocupado pelo “texto”, tal como se prevê numa vinheta a parte que desaparecerá sob um balão de fala, mas ao mesmo tempo esta estratégia mostra desde logo o inteligente desejo de não fazer uma simples ilustração que fosse emoldurada num rectângulo, em torno do qual se colocariam as informações. Cabral cria, em conjunto com a estratégia comunicativa, uma hipótese de passeios plurivectoriais. E ao mesmo tempo, uma imagem soberba que parece encerrar desde logo "promessas narrativas".
No entanto, o ponto principal que desejamos divulgar e discutir é uma exposição integrada no seio deste FIBDA, que tivemos o prazer e a honra de ter organizado, e que tenta, de certa forma, endereçar esses mesmos tema e paradoxo, focando em seis autores brasileiros contemporâneos. A exposição intitula-se Seis esquinas de inquietação, e junta os seguintes autores, por ordem alfabética dos apelidos: André Diniz, Marcelo D’Salete, Pedro Franz, Diego Gerlach, André Kitagawa e Rafael Sica.
Tendo tido já a oportunidade de escrever sobre alguns dos trabalhos destes autores (vejam os links), e não nos interessando meras apresentações biográficas, discutiremos brevemente o conceito da exposição (remetemos para o catálogo os interessados, onde poderão ler um ensaio algo denso sobre a dimensão política destes autores, assim como uma breve apresentação de cada um deles).
O que se pretende com este núcleo é tão-simplesmente mostrar seis exemplos de banda desenhada contemporânea brasileira, mas cujo traço comum não tem nada a ver com uma suposta “essência nacional” ou “brasileiridade” (coisas como o samba, alegria, folia, verde e amarelo, catatuas ou bundas em forma de balão). O que se pretende acentuar são as afinidades electivas entre estes autores particulares, se bem que seria possível seguramente ter arrolado outras referências da mesma geração. A nosso ver, a linha de força que os une é tratamento que os autores fazem, não de uma forma directa e dogmática, mas antes subtil, inteligente e com um foco muito forte e até mesmo, poder-se-ia dizer, “engajado”, da vida vivida pelas pessoas no quotidiano, do estado sócio-político do Brasil de hoje, e que pode ser associado a muitos outros eventos políticos localizados no mundo, desde a Primavera Árabe ao Occupy Wall Street passando pelas manifestações dos indignados em Espanha e Portugal (cada uma dessas realidades com fortunas diferentes e desenvolvimentos específicos, naturalmente). Ou seja, em vez de entender “político” de uma forma limitada aos partidos e detentores do poder representativo, estas bandas desenhadas criam pequenos espaços de resistência de representação: colocando personagens e locais que usualmente são vistos como 2marginais” e “sem voz” no centro da acção, sendo eles mesmos os actores dessas acções. Além do mais, uma outra características forte é a forma como representam - figurativa e estruturalmente nas suas páginas - o urbanismo: favelas, ruas pobres, ruas apertadas, becos e ruas secundárias, mas, de novo, onde se vive uma vida qualquer. Como Maurício Hora afirma em Morro da Favela, de André Diniz, também estes autores têm como propósito central “mostrar pra todo mundo que aqui também tem vida!”
Portanto, sendo o conjunto dos autores e trabalhos algo melancólicos, nada é negro ou soturno e, sendo urbano, não significa que se seja despojado de traços humanos.
Reunir-se-ão aqui trabalhos de alguma variedade de temas e géneros, formatos e técnicas, humores e estratégias de comunicação, produção e circulação. Alguns dos trabalhos são mesmo “experimentais” ou de um humor absurdo - Rafael Sica -, ao passo que outros parecem mais reportagens ou “autobiografias emprestadas” sobre a realidade histórica - André Diniz, sobretudo, com Morro da Favela -, e outros ainda misturando géneros mais convencionais para criar histórias de alguma “raiva social” - Pedro Franz, André Kitagawa, Diego Gerlach - ou uma resistência pela não-acção - Marcelo D'Salete. Alguns autores apresentarão um largo espectro da sua produção, enquanto que outros estarão mais confinados a um grupo menor de trabalhos.
Atempadamente serão divulgados mais pormenores, mas podemos desde já indicar que 1. estarão em Portugal os artistas Pedro Franz e André Diniz; 2. este último apresentará ainda um novo projecto a ser lançado igualmente pela Polvo, Duas Luas, como desenhos de Pablo Mayer; 3. haverá visitas guiadas todos os fins-de-semana, inclusive com os artistas presentes; 4. estarão disponíveis para venda alguns exemplares das publicações destes artistas, mas em quantidades compreensivelmente limitadas.
Nota final: agradecimentos à organização do FIBDA/CNBDI, por aceitar a proposta, e às suas equipas pelo trabalho. Aos artistas, por todos os gestos de facilitação. Ainda a Sara Figueiredo Costa, Rui Brito, Maria Clara Carneiro e Fábio Zimbres por várias razões. E ainda a Ricardo Cabral, por esclarecimentos.

6 comentários:

  1. José Sá3:17 da tarde

    Este ano estive no Rio em férias e, como habitualmente quando raramente posso visitar outros países, uma das actividades é ir à caça de uma livraria especializada em bd e trazer alguma coisa de autores locais. No Rio de Janeiro, junto à praia de Ipanema existe uma loja/editora chamada La Cucaracha que publica um (julgo) famoso fenómeno da cultura cartunista carioca, a revista "Tarja Preta" onde podemos encontrar entre muitas colaborações um ou outro dos autores brasileiros que referes neste artigo na sua expressão mais independente, ao extremo direi mesmo. No que parece um panfleto à legalização da maconha, onde ficamos a saber os milhares de nomes que podemos atribuir à "erva" :-), encontramos vertidas as impressões urbanas de criadores de "uma forma de arte nada subjectiva", para citar livremente o seu editor Matias Maxx.
    Devo dizer-te que gostei tanto do Morro da Favela, livro que me acompanhou na mesma viagem, que me levou lá no Rio a ir visitar uma exposição de xilogravura popular brasileira. Obviamente não tenho proximidade com a realidade das favelas, estive mais perto do sortido cultural dos "Tarja Preta", pelo que olho para a abordagem do André Diniz por imagens análogas de realidades que conheci do meu circulo de relações e que comparo imediatamente a quem viveu grande parte da sua vida numa prisão. Pareceu-me que na obra de André Diniz, de um valor imenso para a compreensão da realidade das favelas de fora para dentro, padece do complexo do evadido na alegoria da caverna, sofrendo do dilema do regresso à caverna e o afrontamento aos preconceitos do meio onde foi educado. É uma armadilha da qual alguma vez conseguiremos fugir, se imaginarmos que a realidade é somente a caverna seguinte do segundo episódio não contado (penso?) da mesma alegoria? No cinismo aparente dos Tarja estamos sempre mais a salvo...
    Estou hás dez anos a viver em Lisboa e nunca fui ao FIBDA. Confesso alguma timidez para frequentar estes tipo de espaços, sentir-me-ia mais encorajado se mudassem a designação de Festival para Feira :)))) Mais a sério, apesar da desculpa ser verdadeira, tenho a sensação que nos festivais se tende a descurar o lado comercial da venda dos livros e, ao contrário de ti (é uma provocação a brincar), mais facilmente empresto o meu carro que um livro de que goste muito.
    Parabéns pela escolha para a exposição e, como sempre, muito obrigado pelo teu trabalho de divulgação.
    Um abraço.

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  2. Haveria muito que dizer, pois apesar de nunca ter falado da "Tarja Preta", tenho alguns exemplares, e poderia ter incluído alguns trabalhos dessa (e de outras) plataformas, sem dúvida...mas tenho de ser breve.
    Não haverá uma certa contradição no que di(zes) ao chamar "Feira" em vez de "Festival", mas depois dizer que se descura a parte comercial? O FIBDA, do que me é dado a compreender, é mesmo diferente das convenções norte-americanas e da feira de direitos de Angoulême, quer dizer, o seu propósito principal é mesmo mostrar a arte original (para bem ou para mal). Concordo em que a parte comercial é muitas vezes descurada, sobretudo no que diz respeito à forma como se coordenam (e tratam) os vendedores e como não se procura ter informação atempada para que pudessem ser comprados e vendidos materiais dos artistas presentes, sobretudo daqueles menos conhecidos. Por isso é que anuncio aqui a disponibilidade de alguns exemplares dos autores da exposição. Já que não é o "Homem-Aranha" ou o "Dilbert", haverá menos comprados, decerto, mas se os houver, têm se saber como e onde caçar a coisa...
    Até breve
    pedro

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  3. José Sá1:59 da tarde

    Caro Pedro,

    Não há qualquer contradição na brincadeira da troca de termos festival, local e momento em que se celebra e expõe neste caso uma forma de arte, e o termo feira, local e momento onde se vende essa forma de arte. Eu compreendo que as críticas são muitas e precipitadas, mas por favor não interpretes mal as minhas palavras. Quando digo que os festivais podem ser mais comerciais na vertente feira refiro-me somente à comercialização do que é divulgado na exposição (ninguém consegue ler verdadeiramente uma obra num festival) e não de coisas que encontramos facilmente no comércio electrónico ou de rua. E, mais uma vez, eu nunca fui ao FIBDA, logo não é uma crítica mas sim um apelo a que os organizadores de qualquer festival de divulgação de Bd se preocupem em disponibilizar as obras que divulgam, aliás, como tão bem exemplificas na forma integrada como, para a tua exposição, pretendes também divulgar disponibilizando. Não parece ser por acaso que o transmites no post em 4 passos, sendo a conclusão desejada (por todos (eu)) a compra dos livros. E numa fórmula "Pekariana" da qual muitos de nós (eu, outra vez:-) fomos perdendo o hábito: directamente do produtor ao consumidor.
    Desculpa por este prolongamento, não consegui evitar ;-)
    Obrigado,
    José

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  4. Eu não estava a criticar, estava mesmo a perguntar se não haveria uma contradição. No entanto, penso que é uma questão bem colocada. Por exemplo, no Festival de Beja, a parte comercial corre sempre relativamente bem e quase sempre está disponível material dos autores expostos (nem sempre, mas quase sempre). Na Amadora é por vezes complexo, sobretudo autores não-publicados em Portugal (bruxo!). E quando são "obscuros", pior ainda.
    Só para ficar claro: indico a venda dos livros e publicações destes autores, mas não sou eu quem os vende, nem ganho comissões. É mesmo pelo interesse dos leitores/autores.
    Obrigado,
    Pedro

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  5. ainda sobre o CARTAZ

    "...interrompido por simples formas geométricas informativas que criam ainda mais vontade de revelar a imagem na totalidade...que cria um desejo particular sobre as imagens que eram dele desprovidas"

    desculpem a minha ingenuidade, e teimosia, mas continuo a achar que um design de comunicação que precisa de ser explicado funciona mal...

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  6. Caro Topedro,
    Concordo, e não faço parte de nenhum comité de defesa do cartaz. Simplesmente queria dar a minha opinião, e a minha apreciação do mesmo, de uma forma argumentativa (mesmo que fraca, admitamos, pela sua consideração). A forma como se partia para juízos algo virulentos é que me parecia desnecessária, até em prol da educação e respeito mútuo.
    Obrigado, e um abraço,
    Pedro

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