Pensamos que a primeira vez com que nos confrontámos com o trabalho de Lala Albert foi com o jornal de banda desenhada grátis Diamond Comics (tal como no caso de DeForge). Não deixa de ser portanto justo que seja a mesma plataforma, a Floating World, a trazer a lume um dos seus mais acabados projectos, também em formato de jornal: In the Up Part of The Wave. Uma das descrições sumárias que encontrámos desta publicação reza o seguinte: “Shoreline nightswim in deep emerald ocean. Dripping”. Numa tentativa da sua tradução, poderíamos ler: “Um mergulho nocturno nas praias de um oceano esmeralda profundo. Gotejando”. De facto, tudo o que sucede à personagem – há claramente uma protagonista da acção central – “resume-se” a um mergulho nas imensas folhas abertas do oceano de tinta sobre papel que Albert cria, com pinceladas fluidas e vagas de uma paleta de verdes, dos mais claros e nítidos aos mais escuros, metalizados, cortados pelo cinzento denso da grafite/reprodução em tinta offset, com alguns apontamentos de contrastivos e vivos rosas e amarelos. Curiosamente, daquele conjunto baço de cores, Albert consegue criar superfícies obviamente líquidas, móveis, transparentes, que apesar disso constroem uma camada densa, quase impenetrável de sentidos. Uma mulher resolve dar um mergulho nas águas, e nelas se afunda, talvez perdendo o pé ou mesmo a sua substância, ou tornando-a idêntica à da água onde mergulha. Depois, possivelmente, reemerge, mas a última imagem (a última palavra?) cabe às águas, que se se fecham sob a forma de manchas felinas e mutáveis. (Mais)
Albert tira partido, como Koch, da imensidão das páginas, criando composições livres – algumas das quais já lhe são típicas, como a repetição “estroboscópica” do corpo e cabeça para dar conta de movimentos imediatos, mas sem que lhes incuta qualquer ideia de velocidade mas antes a de continuidade formal do corpo no tempo e no espaço, como se existisse uma memória física que perdurasse na matéria da tinta – e traços formais, similares ao de lentas vagas mas estendidas no mar.
Claramente a autora tem algum interesse por questões de biologia. Quer dizer, nada é muito explícito, e não seriam apenas as contínuas representações - vasculhe-se o seu site- de mulheres com três olhos, mescla de Lobsang Rampa e alienígenas “clássicos”, mas o facto dela mostrar estas criaturas a suar, chorar, sangrar, babar-se, corar, inchar, etc., criando imagens a um só tempo fascinantes e belas (ou de uma forma intrigante, como quem observa meio às escondidas pornografia “desviante” ou coisas piores) e repulsivas (o que não deixa de ser redundante). Em suma, Albert cria mulheres – são quase sempre figuras femininas – que induzem a um frenesim do olhar. As suas opções de figuração, cor, composição e até materialidades, apenas vêem sublinhar essa velocidade e impressão.
Na continuidade da constelação que estamos a querer construir, Albert faz confluir na sua obra toda uma série de referências a um só tempo detectáveis na sua individualidade e perfeitamente vazadas no pano inconsútil que essas imagens criam. Vemos ficção científica e fantasia, e até terror, por um lado, mas há uma sombra de mangá, também, e de ilustração de moda (profissionalmente, Albert cria tecidos).
Paranoid Apartment é um pequeníssimo mini-comic, impresso a duas cores (amarelo e cinzento) em risografia, com uma história particularmente linear para a autora. Existe texto, legendas da narradora que participa na história, a qual decide ausentar-se do apartamento para o assombrar, mensagens entre esta e o novo inquilino que arrenda o apartamento, referências ao mundo real que habitamos (a Craiglist)… Aquela dimensão sobrenatural, misturando questões do horror e do psicanalítico, recorda por demais toda aquela fiada de filmes japoneses contemporâneos que envolve jovens numa trama de terror: The Ring ou The Grudge, etc. mas sem nunca descambar num programa tão linear ou resolúvel. A rapariga que tem o papel de protagonista, numa primeira fase viva - mas sonhando sempre com mortes alternativas - e depois enquanto fantasma, pode ser antes uma obsessão do homem que ali vive depois, e o tipo de “animação” daquele corpo pode ser apenas o resquício de um problema não-resolvido em vida, que é herdado pelo próximo. Mas ainda podemos ler essa mesma assombração como uma forma da rapariga proteger o homem das tais mortes possíveis (queda de estuque, queda no banho, destruição das escadas).
O próprio tratamento gráfico, em que o corpo da rapariga-fantasma parece flutuar sobre o do homem, cria uma dimensão espectral mas que instala a ambivalência entre o maravilhoso – estes eventos acontecem mesmo na diegese – e o fantástico – são apenas uma projecção do protagonista, mas nós mimamos a sua perspectiva. Se nalguns casos a impressão a amarelo torna nítida a escolha de que camada existencial representa, noutros casos essa ambivalência mantém-se, sublinhando antes as dúvidas ou incertezas, mais do que garantir uma decisão sobre a “história”. A forma como divide as vinhetas, com apenas uma finíssima linha da mesma espessura que as figuras, e a distribuição fluida das cores contrastando com a representação rectilínea dos azulejos ou da colcha, cria uma série contrastiva de texturas que dá uma certa “espessura” ao seu trabalho, e que se reflecte nas possibilidades narrativas.
A criação destas várias camadas – ao nível da representação: o corpo, a água; também ao nível da narratologia: os espaços determinados, os tempos distintos; e até da materialidade do texto, o papel, das tintas, as cores distintas e as manchas mescladas – levar-nos-ia a dizer que é Albert a artista que mais perto constrói algo equivalente às imagens-cristal que Deleuze discutira na área do cinema. Imagens onde o virtual e o actual se entrosam mutuamente, onde o passado e o presente co-existem, onde um estado anterior interage com o presente. Se poderíamos tecer uma comparação com aquelas composições mais clássicas de Gianni De Luca ou outros, nesses outros casos estaríamos perante experiências subsumidas a um programa narrativo relativamente normativo, em que se incute uma dada dinâmica e liberdade do espaço, sem dúvida, mas não se coloca em crise de uma forma radical as relações temporais e causais do que é representado. Ora, em Lala Albert, porém, não é isso o que se passa. Há mesmo uma criação que dá espaço à ambiguidade, ao perigo dessas distinções serem demolidas, e portanto colocarem em causa a própria condição de possibilidade das categorias do tempo e espaço. Nas palavras de Deleuze, parafraseadas, é como se a autora fosse capaz de uma representação externa de uma imagem do pensamento. E, de facto, tal como fantasma pairando sobre o corpo que assombra, ou as águas desenhando uma pátina sobre o corpo da mergulhadora, a leitura das suas obras mais “narrativas” criam menos um relato de eventos claros do que uma impressão imediata que se funde ao nosso pensamento.
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