The Blonde Woman está disponível online em Study Group Comics (como quase todos os seus trabalhos de banda desenhada, no seu site), mas como quase sempre a existência destas bandas desenhadas em um qualquer formato de papel permite uma aproximação física, táctil, íntima, que está em consonância com a pequena fábula da própria narrativa. E isso torna-se ainda mais significativo quando os próprios objectos estão nutridos por um cuidado formal particular. Tendo sido esta edição de The Blonde Woman patrocinada pela Xeric Foundation, junta-se assim a toda uma comunidade muito particular que está não apenas atenta à produção contemporânea da banda desenhada que não se coaduna com os mais usuais princípios e convenções desta forma de arte, como ainda aos haustos que ainda lhe é possível explorar, cada vez mais afastados de uma ideia central do que é, ou pior, deve ser, a banda desenhada. Unindo essas duas linhas, temos portanto um particular exemplo de exploração da banda desenhada não enquanto arte representacional ou narrativa, mas uma arte do livro (entendido no seu sentido mais lato). (Mais)
Tendo estudado artes, Koch tem alguma produção aparentemente mais convencional, como o seu livro de sketches Field Studies, também pela Floating World, mas quer em The Blonde Woman quer em Q dá-se continuidade à sua preferência pela construção narrativa através de elipses, ou de ligações mais fantasmáticas do que totalmente resolvidas. Ao contrário da esmagadora maioria dos autores de banda desenhada, inclusive os daquela constelação que estamos a criar, Hanselmann, DeForge, e até mesmo Albert e C.F., Koch está menos interessada em “contar uma história”, do que em criar um ambiente ou um espaço de predisposição de um sentimento, de uma impressão, de uma ideia que jamais ganha a sua forma final.
Não é que não se possa criar uma trama qualquer em relação aos seus textos - por exemplo, poderíamos dizer que The Blonde Woman é possivelmente uma narrativa sobre a depressão, ou pelo menos sobre uma forma de escape para a protagonista de uma qualquer situação dolorosa da qual jamais saberemos os pormenores - mas é um exercício não apenas inglório como redutor. Seria o mesmo que tentar descrever um poema de Rilke ou de Ramos Rosa por uma qualquer fímbria de narrativa que pudesse ter (a existência de eixos temporais ou espaciais), colocando num segundo plano a própria matéria linguística que o constitui. O mesmo pode ser dito da obra de Koch, atentado o mais possível a todos os elementos gráficos, à multimodalidade total dos textos. É como se Koch abdicasse do projecto sequencial/sintagmático/lógico, para expandir, a seu modo, a noção de narrativa. Para seguir uma lição de Jan Baetens com Jean Ricardou, trata-se de um projecto de “decifração vectorizada do objecto a ler”, implicando toda a materialidade do projecto em si como integral à sua narratividade, por mais fantasmática que seja. Nesse sentido, a (mera?) oposição entre livro e jornal poderá suscitar significados: concentração no primeiro, acção dispersa no segundo, intimidade no primeiro, sentido mais colectivo no segundo, etc.
Q é um imenso jornal, publicado pela Floating World (tal como o projecto de Simon Hanselmann, de que falámos, e de Lala Albert, de que falaremos), e, diferentemente de muitas outras experiências neste nexo de materialidade, como os Diamond Comics ou mesmo alguns trabalhos do Kuti Kuti, tira total partido da textura do papel, do acto físico de leitura e exposição, do formato, e até do ruído. Na capa, como o de Lala Albert, apresenta-se-nos um rosto, que julgamos ser decisivo para o seu interior, mas ele acaba por ser mais simbólico. No interior, que poderá ser lido a cada duas páginas como se de imensas unidades visuais se tratassem, temos uma sequência em que uma espécie de Pégaso de asas douradas vai dissolvendo-se na imensidão branca, depois entra num processo de recuperação de formas onde um corpo fragmentado de mulher, de braços da mesma cor que as asas, parece comunicar (existem dois balões de fala vazios) mudamente com ele - ainda que o cavalo pareça estar sempre confinado ao interior de vinhetas delineadas - e finalmente irromperem elementos arquitectónicos e espaciais nesse diálogo, para terminar num padrão de, arriscamos, azulejos. Qualquer trabalho de interpretação é temerário, uma vez que a coalescência destes elementos díspares, esparsos e fragmentários em si mesmos não permitirá uma grande coincidência ou concordância entre leitores. Porém, se recuperarmos a referência feita acima a Rilke, e tentando compreender como é que as elipses de Koch emergiriam enquanto elementos de sentido, estamos em crer que seria uma forma de entender e dar a ver a transitoriedade e finitude da vida humana, em vez de lhe permitir uma qualquer ilusão de perenidade ou de épica presença. Perscrutar a glória da existência, portanto, os resquícios possíveis de salvar de felicidade, não em prometidas vidas eternas, mas antes nos breves momentos que nos couberam. Seria menos uma fluidez aquilo que é mostrado nos seus livros, do que momentos estruturados, fechados, que pedem, aqui e ali, por uma concentração maior. Se quiserem, o ruído das páginas virando poderiam suportar leituras adicionais a essas: as chamas que passam, o assinalar do percurso invisível, as asas do cavalo…
Se observáramos em The Whale uma artista capaz de investigar as camadas possíveis que a grafite permitia à expressão e construção de um pequeno, confinado mas poeticamente aberto, mundo, já alguns trabalhos revelavam a sua idêntica majestosa capacidade em trabalhar, ou melhor, esculpir a cor nas suas figuras. Ora a cor ganha proeminência nestes dois títulos, de uma forma vívida em The Blonde Woman (o próprio título implica de imediato uma escolha cromática) e mais esparsa em Q (em que o “ruído” ganha uma dimensão material-visual, uma vez que as cores, guache ou ecoline sobre papel, parecem ser filtradas de algum modo - Amanda Baeza descreve-as como se fossem o lado oposto do papel onde foram aplicadas, e é possível que tenha aí uma certeira observação do processo), mas em ambos os casos com uma presença activa na construção do significado, nada tendo a ver com buscas ora de ilusões de realidade e representação naturalista ora, ou menos ainda, de factores decorativos.
A própria autora revela não nutrir grandes ligações culturais com a banda desenhada mas com o mundo das artes, e aponta, não sem grande surpresas, Odilon Redon, como uma das suas referências centrais. Redon escreveu no seu diário, o seguinte: “A arte sugestiva é como uma irradiação das coisas para o sonho para o qual também o pensamento é conduzido” (A soi-même). Nesse sentido, e tal como alguns sectores do simbolismo, Koch explora metáforas no seu sentido etimológico, “transportes”, colocando lado a lado objectos heteróclitos, que não parecem ter lugar nas suas relações mundanas e reais, e cuja justaposição provocará junto aos leitores e espectadores um espaço sedutor, intenso e estimulante às suas “aptidões imaginativas” (cf. Redon).
Koch tira partido de uma forma expressiva e fundamental de dois elementos que, se fazem parte intrínseca de quase toda a banda desenhada, estão apenas usualmente presentes enquanto estrutura invisível, que se apaga a si mesma precisamente para dar visibilidade e agência ao que sustentam. Mas Koch enfatiza-as. Falamos das elipses - narrativas, de sequência entre imagens, e até de partes das figuras - e dos imensos espaços em branco, das margens das pranchas, ao campo de composição, às expansões que separam as imagens. Thierry Groensteen discute o emprego de imagens “cegas” (vinhetas brancas ou negras, etc.) como tipicamente assinalando uma perda de visão ou de consciência, ainda que possam ainda significar uma recusa em mostrar o mundo em torno. Ora Koch parece levar essa “cegueira” a outros níveis, isolando elementos que fariam parte de figuras completas (o cavalo alado, por exemplo, apenas presente na sua isolada asa dourada). Nessa estratégia, ela é superficialmente próxima a Warren Craghead III, mas onde este autor procurava um isolamento centrípeto, de concentração, de fortalecimento do que restava visível, Koch parece querer antes insuflar uma aura de desagregação no elemento sobrevivente.
Parte da poeticidade de Koch não está tanto na manipulação dos elementos passíveis de serem entendidos como diegéticos, mas na composição visual. Não bastaria relegar as intervenções, em The Blonde Woman, do que parecem ser símbolos, as fases da lua, texturas das tábuas de madeira, as letras ocupando largos troços da página, os pontinhos que sublinham uma frase, como estratégias “decorativas”. Bem pelo contrário, como se deseja nos gestos mais profundos da arte, cada movimento e cada elemento, por menor que pareça, está no sítio certo porque cria a sua própria regra, porque contribui para a emergência da própria obra de arte. Cria estruturas rítmicas, musicais através das imagens. Regressando a Redon, que afirmara “Os meus desenhos inspiram e não definem. Eles colocam-nos, tal qual a música, no mundo ambíguo do indeterminado”, encontramos em Koch o mesmo tipo de sinestesias possíveis, assinaladas, ainda que não traduzíveis pelo verbo.
Em The Blonde Woman, a forma como a autora parece reduzir a diagramas certas acções da protagonista - o acto de se pentear, de arranjar o cabelo, do tempo passar sob as forma de uma vela queimando-se ou uma flor a ser desfeita nas mãos, ou da noite a dissolver-se no dia - são essas mesmas construções que dão a entender melhor a passagem do tempo, apesar deste parecer quase sempre suspenso, já que ele parece mesmo ser o desejo mais profundo e confessado pela mulher: “Mas eu não quero que a noite acabe”…
Os livros de Koch, definitivamente, garantem que essa noite se mantenha.
Olá Pedro,
ResponderEliminarO site que divulgas (SGCB) é, na minha opinião, um verdadeiro achado. Numa breve visita, já encontrei pelo menos 3 autores a merecerem uma oportunidade de serem lidos por mim :-) e outros como eu, nesta conjuntura, a precisarem de mudar de ares (refiro-me à respiração artística, obviamente).
Deixa-me assegurar-te, porém, que a descoberta deste site não desviará a minha leitura regular do teu ;-).
Um abraço
José