Mere não é mais do que uma colecção de uma série de mini-comics produzidos pelo autor no ano de 2012, uns atrás dos outros, quase um por mês, objectos de um acesso relativamente complicado e restrito fora do seu imediato círculo pessoal. A primeira ideia que emerge desse ritmo de produção seria uma espécie de imitação dos ciclos de produção do mainstream, que C.F. não deixa de imitar também nos elementos que usa nas suas páginas provenientes de géneros como a ficção científica, a aventura policial, os super-heróis, e até o humor, inclusive o animalière. No entanto, cada título individual (coisas como “Easter Mercury”, “Tymn”, “21 Crime”, “Face it” e “Twitter Comics”) não partilha os mesmos universos diegéticos com os outros, mas apenas linhas de forças, dinamismos, estruturas e processos idênticos. Acima de tudo, o tema ou matéria principal, que sobrevive a tudo, é a de um doodle improvisado e absurdo. No entanto, é preciso observar com muito cuidado cada páginas, cada vinheta, cada abordagem pois se uma passagem superficial poderá não afastar os desenhos de C.F. de um quase impensado rabisco juvenil, muitos são os momentos em que ele demonstra um controlo, explosivo e alucinatório e sumptuoso, sem dúvida, mas controlo das linhas e cores.
Na verdade, a forma como C.F. respinga as matérias de cada gesto parece fazer pensar numa espécie de memória distorcida, como se alguém se quisesse recordar e imitar, com uma grande distância e dúvidas quanto à clareza narrativa e preceitos figurativos, todo um conjunto de bandas desenhadas convencionais, como se existisse uma distância temporal ou social suficientemente grande para que os textos originais perdessem o seu sentido “normal” e caíssem numa variação tresloucada, muito punk, como é sublinhado por vários leitores, acima de todos pela introdução de Nicole Rudick. Quer dizer, existem nódulos de acção, que prometem a energia e entusiasmo típicos do mainstream, mas para penetrar camadas cada vez mais densas de não-sentidos.
O artista expressa-se, como sempre, através de breves e nervosas linhas puras, mais rabiscadas que desenhadas, mais urgentes que planeadas, mas que são decisivas na sua construção narrativa. Recordando uma espécie de trabalho primário, de adolescente ou de mangá ou comics amadores, é como se a “visão” do artista não ficasse coibida pela inacessibilidade destas suas formas menos acabadas. Aliás, é a urgência dessas mesmas linhas que incutem grande parte do charme e dinamismo e liberdade à obra. Essa urgência, por outro lado, é corroborada pela forma de distribuição permitida pelas novas plataformas comunicativas, como o Twitter.
Tudo subsumido ao formato igual do livro, muitas das páginas mudam de cor, no papel, como que imitando o stock usado originalmente (pensamos nós), impresso a preto ou a uma qualquer cor (verde ou lilás), apenas existindo trabalhos a cores (igualmente livres e selvagens) nos últimos capítulos (sobretudo aqueles que haviam sido publicados, em primeiro lugar, pelo Twitter).
Sendo publicada a antologia pela Picturebox, de Dan Nadel, há desde logo uma inscrição num gesto editorial que quer irmanar - o que vem de longe, com a Ganzfeld - a produção de Christopher Forgues numa alargada família de livros de artista, de grafismos livres e selvagens, de produções imagéticas sem fronteiras, que iluminam ao mesmo tempo algumas das solventes fronteiras da banda desenhada.
Tal como ocorre com muitos dos autores que estamos a querer agregar nesta “semana”, estamos menos próximos das pesquisas formais, plásticas e sérias de uma Frémok, do que um livro trânsito entre culturas. Apesar do absurdo, da falta de coalescência do significado, das liberdades tomadas com os elementos aparentemente convencionais, a leitura de Mere cria ainda assim um fundo de ideia, uma impressão, um sentido fantasmático, não apenas de narrativas que poderiam ter continuidade, mas de universos coerentes, de personagens passíveis de tratamento comercial, de conteúdos possivelmente formulaicos. Aliás, isso é notável em todos os trabalhos dos ex-colegas de Forgues, do Fort Thunder, quer através das “sagas épicas” que vão criando (o próprio C.F. fá-lo através de Powr Mastrs) quer através da apropriação de desenhos animados e música pop.
Na página de rosto e índice do livro, providencia-se uma definição de “mere”, em inglês: “Nada mais do que é especificado: considerado à parte de tudo o resto; pequeno, de pouca importância, obsoleto, puro. Um pequeno lago ou fronteira”. A partir destes últimos sentidos, utiliza-se como epígrafe um verso de Tennyson: “Por vezes, em lagos de montanha solitários/encontro um mágico cortiço”. Se essa constelação variada de conceitos é toda utilizável na leitura interpretativa dos textos que aqui se coleccionam - até mesmo o de “obsoleto”, apontando-se para a natureza fragmentária e passageira dos objectos originais, talvez aquele que mais ganhe força seja o de fronteira, de superfície marcando uma passagem e uma divisão, claramente quebrada ou ultrapassada pelo artista, na continuidade dos seus projectos fascinantes.
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