É na capa que notamos desde logo as hesitações, ou arrependimentos, ou as hipóteses várias, do que o autor desejaria chamar ao seu projecto. Mas para além das palavras rasuradas “novela gráfica”, “documentário” ou “banda desenhada”, poder-se-ia ainda arriscar a presença dos termos “ensaio”, “exercício de improvisação”, “inquirição d’arte”…
Playground é, a um só tempo, uma espécie de apresentação sumária dos processos de trabalho que levaram John Cassavetes à realização de Shadows, o filme de 1959 que marcaria o início do que se viria a chamar de “cinema independente” nos Estados Unidos, um bloco de apontamentos do autor argentino sobre a sua própria prática da banda desenhada, inquirindo questões de relacionamento entre banda desenhada e cinema, da representação do real, do realismo propriamente dito, do que significa a palavra “banda desenhada” [historieta] por oposição ou contraste a “arte”, de opções de formato e em que medida elas alteram o objecto textual, e, finalmente, também um exercício de imitação das pesquisas pela improvisação de Cassavetes no cinema, transpostas para aquelas possíveis numa banda desenhada.
A própria descrição do objecto leva a que haja esta abordagem fragmentada, já que cada uma destas linhas de desenvolvimento apresenta-se sobre formas diferenciadas. Tudo o que diz respeito a Cassavetes, sejam desenhos do equipamento, mimeses dos fotogramas, ou dos corpos e gestos dos actores, ou da paisagem urbana (néons, ruas pejadas de carros à noite) de Nova Iorque, é apresentado através de um sólido trabalho de linhas a grafite, repetidas, entre a modelagem académica e a liberdade de esquisso dos sketchbooks contemporâneos publicados tal qual. Nalguns casos, surgem várias vinhetas, compostas de forma simples mas imitando expectativas usuais da banda desenhada, e mesmo quando aparecem imitadas as perfurações da película de filme, não só remete a técnicas habituais de representação de filmes na banda desenhada, como faz surgir questões de uma “tradução” transmediática relativamente transparente onde o fotograma isolado da sequência equivaleria a uma vinheta. As partes que dizem respeito às reflexões sobre banda desenhada parecem ser páginas arrancadas ou digitalizadas/fotocopiadas de um seu caderno de linhas, cheias de apontamentos caligrafados, e colagens de vinhetas de outros autores, esquemas e listas e colunas comparativas, até mesmo um pedaço de guardanapo ou toalha de mesa, salvando um apontamento que se torna argumento ou peça do discurso construído. Há ainda um print screen de uma conversa num programa de chat com Pedro Franz, também sobre as questões ontológicas do uso da designação de “banda desenhada” para o tipo de pesquisa artística que ambos os artistas perseguem.
O livro tem uma sobrecapa em cujas badanas surgem desenhadas mãos projectando sombras numa parede, e em gestos que fazem surgir animais. A primeira página do interior mostra um projector emitindo o seu foco de luz na direcção das próximas páginas que leremos. Se esta página em particular poderá fazer lembrar outros projectos de banda desenhada que se iniciam ou mergulham nesta forma, tal como alguns projectos de Vicent Fortemps, Berliac pretende criar uma tessitura a um só tempo extremamente densa, por um lado, e fluida e aberta, por outro, entre o cinema e a banda desenhada. Densa, pois o autor quer explorar vários pontos de contacto entre as duas formas artísticas sem atravessar aqueles pontos mais comuns e fáceis de analisar, e que são usualmente os objectos de estudo nos livros e ensaios académicos e semióticos (narrativa, coordenação de cenas, relação imagem-texto, mise en scène, expressão dos actores/personagens, iluminação e cor, etc.). Berliac está interessado em algo mais próximo do “espírito”. Fluida, pois jamais quer apresentar decisões ou noções resolvidas, mas colocar em movimento as questões (daí que o título saliente a dimensão lúdica, descomprometida, do “recreio”).
Por exemplo, num quadro o autor opõe cartooning a desenho, e a partir daí criam-se toda uma série de oposições - que seguramente se devem entender como pólos num espectro, tensões e variações, e não dicotomias claras e absolutas -: entre ler e ver, ideias e emoções, descrição e expressão, decisão e improvisação, formulação de uma experiência e experiência em si. Isto é muito curioso e dá que pensar, sem qualquer dúvida. De facto, ler neste sentido é reconhecer, e reconhecer é enquadrar o visto em categorias preparadas, pré-concebidas, e não ver propriamente visto (pela primeira vez). Isto é, enquadra-se a experiência numa sua fórmula, e não na experiência. Eis um exemplo: a tristeza pode ser representada, ou “formulada”, por um rosto constrito com lágrimas a escorrerem pelos olhos, e de braços inertes ou levantados no ar em desespero. Mas porque não procurar outras formas de expressar a tristeza, que movam os leitores a uma visão inesperada?
Daí que os jogos de projecção de luz e sombras, de gestos em devir-animal e de uma maquinaria em torno do acto teatral (apenas uma forma de entender o cinema), criem uma estrutura complexa de referências, em cujos interstícios Berliac tenta navegar o seu discurso.
Os aspectos em que o autor se foca na realização de Shadows prendem-se sobretudo com todos os aspectos técnicos, desde o formato da película ao trabalho de captação dos gestos dos actores por Cassavetes, passando pela dimensão do som, uma camada mesclada em que nasce uma matéria diferenciada obrigando o espectador a ver, e não a simplesmente ler. No entanto, não se está aqui em busca de uma justificação pelos abusos ou a espectacularidade da técnica. O próprio Berliac, apesar de apresentar Playground com técnicas que o desviam de territórios mais convencionais da banda desenhada, não explora as suas opções técnicas de forma a que elas se tornem no primeiro plano. Bem pelo contrário, todas essas técnicas surgem como que na sua forma própria (isto é, não se ocultam em nome de uma “ilusão de realidade”) para dar a ver a sua matéria própria. Falando de Buñuel, escreve Jean-Claude Carrière em A linguagem secreta do cinema, “Essa preocupação em conter a técnica em favor de uma coisa mais sutil, essa opção deliberada de evitar efeitos, essa desconfiança em relação à sempre sedutora beleza, parece particularmente perigosa (…) A rejeição do virtuosismo pressupõe segurança em relação à força do que está sendo mostrado”. Essas palavras poderiam, ainda que com distinções muito particulares (sobretudo tendo em conta a questão da determinação tecnológica do cinema, que é menos clara na banda desenhada), a esta nossa área. E Berliac pretende criar mecanismos idênticos no seio desta disciplina da banda desenhada, mesmo que lhe ocorra escapar a essa designação. A nosso ver, porém, se queremos acreditar que a banda desenhada é de facto uma arte, então não há qualquer necessidade em buscar uma outra palavra, mas permitir que essa palavra seja ainda servida com estas experiências, diferenciadoras, mais radicais, pois são essas experiências que fazem o próprio meio crescer. Usar outra palavra seria provar que a banda desenhada não pode ser isso também. Essas experiências de experiências próprias.
Um aspecto importante em Playground é que não há sombra de ironia no que é apresentado. Não quer isto dizer que o livro seja grave ou sério, que não se permita ao auto-humor, a uma frescura nas buscas que intenta (e atinge). Significa isto que há uma entrega genuína à matéria que explora, uma apaixonada ausência de distância dessa matéria (como deve ser a paixão, de resto). Recordemos que identificámos pelo menos dois registos no livro, acima. Como compreender, então, essa ausência de distância na ideia dos dois níveis de “representação”? haverá “um real” de partida em relação ao qual se estabelecem esses dois níveis diferenciados, essas facetas corresponderão a distâncias únicas? Não. O que ocorre são apenas pequenas variações de intensidade em relação às matérias que podem ter um nome diferente - “o filme de Cassavetes” e “práticas de banda desenhada” - mas que no fundo se tocam, ou emergem, ou convergem, num mesmo plano. O do livro.
Talvez haja apenas dois pequenos pontos de contestação, ou melhor, de discussão, possíveis. O primeiro é a consideração do cinema enquanto “arte audiovisual”. É o teórico francês Michel Chion que cunhou o vocábulo “áudio-visão” (em 1990), para dar conta do facto de que “na combinação audio-visual, uma percepção transforma a outra e transforma-a: não ‘vemos’ a mesma coisa quanto a escutamos, não ‘escutamos’ a mesma coisa quando a vemos”. o que importa não seria a formulação conjunta do audiovisual e no cinema como uma das suas expressões, mas antes uma consideração dessa junção como uma ferramenta de imersão mais propensa à distracção, e o cinema como uma plataforma que procura criar tensões ríspidas entre as duas matérias (som e imagem), de maneira a que elas se estimulem mutuamente. Como disse Harvey Pekar, e de certa forma repetido, enquanto fórmula, precisamente, por muitos críticos de banda desenhada (e não nos excluímos desse grupo), “a banda desenhada são só palavras e imagens. Podes fazer tudo com palavras e imagens”. Certo. Até certo ponto. E se não fossem apenas “palavras e imagens”, mas antes “imagens que surgem enquanto palavras e palavras que se comportam como imagens”, ou, e se esse “e” fosse substituído por outras relações, por “através de”, “apesar de”, “com”, “não obstante”, “em vez de”, “em tensão com”…?
Na verdade, se audiovisual é um termo que pode mesmo ser jogado em oposição ao cinema, como se notará por exemplo no nome da instituição que tutela essa disciplina em Portugal (ICA) ou na expressão do crítico Serge Daney, que criou um trocadilho de alguma fama, “odieux-visuel”, o que é que isso nos permite escavar? Não se trata aqui de uma questão jurídica, mas sim filosófica, estética, até ontológica - o tal “espírito” indicado atrás -, que recupera o cinema para um território de expressão autoral (por mais complexo que o seu obrigatório trabalho de colaboração seja), retirando-o do mundo comercial, de entretenimento, e de fitos que não têm a ver com um retorno à própria alimentação da arte enquanto tal. Nesse sentido, aos poucos, poder-se-ia considerar também um afastamento de alguma banda desenhada (a de Berliac e outros autores) daquela mais afecta aos veículos e circuitos do entretenimento (a esmagadora maioria da produção de banda desenhada). E Playground pertenceria a esse grupo.
O outro ponto terá a ver com o suposto “naturalismo” de Cassavetes. Um dos interesses principais deste era o trabalho dos actores (a formação de Cassevetes era formado como actor, não como realizador), mas Cassavetes não estava interessado em colocar em primeiro plano a própria materialidade do cinema, as suas contradições, a confissão do seu artificialismo. O autor analisa, ainda que brevemente, a questão do realismo enquanto introdução do “real” ou do “quotidiano” em projectos tão díspares quanto as gekigá de Tatsumi, algumas histórias da E.C. Comics (as de Kurtzman, presumimos), a obra de Oesterheld e Pratt. E, muito certeiramente, coloca de lado o tratamento isolado de diálogos quase inconsequentes ou, no campo a imagem, desenhos hiperrealistas ou pseudo-fotográficos, para revelar outro cuidado e atenção: “na banda desenhada [cómic], então, o realismo não pode passar pelos seus elementos em separado (palavras e imagens), mas antes por a. a combinação de elementos, e b. a justaposição destas combinações: é a forma [diríamos antes “modo”] o que daria como resultado uma experiência mais ou menos real”. Ou seja, regressamos àquela ideia da banda desenhada não como meio de junção de dois códigos, tratamento superficial da hibridez, mas antes numa intersecção produtiva e geradora. No entanto, e é aí que Berliac parece não perseguir a consequência do que prepara, que é o facto de ser o próprio modo (de combinação, a aliança, as opções e os resultados “textuais” o que vai criar o real. E isso permite a que haja uma larga escolha de estratégias nessa criação, desde o suposto naturalismo despojado de Cassavetes, aos abruptos e desconcertantes artificialismos de Godard, passando pelo humor e dúvidas de Moretti, ou a austeridade plúmbea de Béla Tarr… E, no campo da banda desenhada, o isolamento silencioso das personagens de Ware poderão encontrar um eco na verbosidade conflituosa das de Tomine, ou o dinamismo de borracha das de Tatsumi podem rever-se no hieratismo das de Adrian Koch.
No entanto, há uma pista dessa mesma consequência em Playground, e à qual desde logo nos aproximámos nas linhas anteriores. O autor apresenta uma lista em que coloca, de um lado, nomes de realizadores e, do outro, nomes de autores de banda desenhada, tanto num caso como no outro nomes “autorais”, de uma forma muito alargada. Essa lista encontra-se rasurada (aliás, Berliac integra os aspectos materiais do seu fazer o mais visíveis possíveis, não impedindo que do visível artificialismo do fazer possa emergir um sentir genuíno das suas personagens ou ambientes), recordando como no título uma hesitação, ou uma reconsideração do pensamento, mas deixando-o apresentável à mesma. Como ler estas hesitações? Servirá para que entendamos a “evolução” do autor em relação a um ponto particular? Será que serve para que aceitemos aquela visão rasurada como um ponto de vista ultrapassado, errado, que devemos abandonar também? Mas porque revelá-lo então? Talvez possamos ver essas ideias como algo que o autor deseja que consideremos, que pensemos naquelas questões, mas com a consciente decisão de que nada é definitivo, que apenas pode servir de ponto de partida para começar a elaborar melhor as nossas questões, e não crermos em respostas finais de qualquer espécie.
Nessa lista, Orson Welles surge equiparado a Will Eisner, Fritz Lang a Alberto Breccia, Cronenberg a Charles Burns, Pasolini a Crepax, Kurosawa a Senpei Shirato, Imamura a Tatsumi, Oliver Reed a Caniff, etc. As junções de Woody Allen e Charles Schulz, Gus Van Sant e Jeff Lemire, Todd Solondz e Daniel Clowes estão ainda mais rasuradas, quase ao ponto da ilegibilidade, como se o “arrependimento” fosse ainda mais intenso, ou o repensar desejasse anular sequer essa ideia primeira.
Isto levaria de imediato a discussões, mas superficiais. Por exemplo, por que razão se equiparariam realizadores e artistas italianos ou japoneses entre si, em vez de cruzamentos mais internacionalizados, ou “unidades cronológicas”, como aquela entre Reed e Caniff, Welles e Eisner, Mélies e McKay, os Lumière e Töpffer, e não considerações transhistóricas (há uma décalage nesses pares, mas a longo prazo, esbatem-se as décadas)? Mas a junção de Tarkovsky e Vicent Fortemps, Béla Tarr e Andrea Bruno, Herzog e Battaglia já aponta a uma mais intensa e estimulante passagem entre um meio e outro que se desliga de nacionalidades, tempos ou mesmo semelhanças superficiais e vai a níveis matéricos mais profundos. Por hipótese, e respectivamente a esses três pares, uma certa consideração do tempo enquanto fluido lento, uma busca por imagens austeras cobertas com o pó da humanidade, e uma construção de um mundo áspero. Se bem que podemos encontrar aqui nomes que parecem trabalhar em pólos opostos do “mercado” ou das linguagens internas à banda desenhada ou outras estruturas conceptuais (p. ex., David Lapham vs. Fortemps, Eisner vs. Crepax, McKay vs. Battaglia), todos eles poderão, repetimos, ser agregados enquanto autores que desenvolveram linguagens altamente reconhecidas quer em termos formais, figurativos, composicionais quer mesmo no que diz respeito às narrativas, à gestão da linguagem emocional das suas personagens, e até mesmo ao espaço que ocupam na história do seu meio de eleição.
E tal como os nomes dos realizadores arrolados, todos esses nomes de artistas da banda desenhada, de uma forma ou outra tentaram e conseguiram libertar-se de uma visão, à época, empedernida do que era permitido criar com esses instrumentos (mesmo que tenham levado a epígonos igualmente empedernidos, ou eles mesmos tenham dado azo a “regras” depois seguidas sem a mesma vitalidade). E não será esse mesmo o fito de Playground, a de criar um pequeno mas brilhante espaço reflexão sobre a necessidade contínua que uma área artística tem de encontrar momentos de despertares sucessivos?
Nota final: agradecimentos ao editor, pelo envio do livro.
Olá Pedro,
ResponderEliminar"Mas as palavras são pedras" escreveu Vergílio Ferreira por interposta personagem no meu seu livro preferido (com alguma resistência) "Aparição". Também Lenny Bruce adoptou a mesma estratégia do jovem Carolino e repetiu uma palavra dura como uma pedra até à banalização. Todos nós, penso, já nos questionamos na nossa juventude do milagre da transubstanciação dos objectos e definições em conjuntos de letras e da sua criação apócrifa. Dentro destes exemplos anacrónicos, na minha infância não compreendia que as cores necessitassem de ser identificadas por palavras, como o uso destas representasse uma sinestesia não definidora, um mau uso de um recurso estilístico. Retomando a "Aparição", como não entender as palavras como o veiculo que promove o encontro entre as pessoas? Nunca dei importância aos carros, não consigo escrever Porsche sem previamente consultar na net a grafia (terei acertado?), mas valorizo a forma como encurtam as distâncias. Dou o mesmo valor à "Novela Gráfica". É uma pedra e é um veiculo, um oximoro. Não vale a pena atendermos à literalidade da expressão ou à sua insuficiência definidora. Como percebemos todos agora e alguns à altura, o "brochista" (brochista, brochista, brochista, brochista...) do Lenny não representava um fanático do sexo oral :-), mas sim uma tentativa dum comediante se aproximar do seu público, uma expressão confessional e identificadora entre si e a audiência. A capa do livro que apresentas representará (espero) a utilização da ironia por parte do autor, não sobre as palavras desta vez, mas sobre os riscos que a cobrem, em que as suas aparentes hesitações revelam as suas profundas convicções relativamente ao que pretende para a sua obra. Pareceu-me ser essa a tua convicção, também. Por analogia de ideias, a repetição ad nauseam dos riscos retira o significado aos mesmos fazendo do livro totalmente rasurado o mais acertado de todos. A leitura dos livros com as censuras originais apostas não é extremamente libertadora?
Já escrevi noutro post do teu blogue que fiquei muito feliz (assim tão simples) com a adaptação para cinema do American Splendor. Também noutro post confessei não ser grande adepto do Daniel "Boring" Clowes, mas reconheço que a adaptação do "Ghost World" para o cinema deu, na minha opinião, um filme bem mais interessante do que o livro parecia poder "transmediar". No entanto, das adaptações que vi fiquei, na maior parte das vezes, desiludido com os resultados. Retomando livremente as palavras de Pekar, ele dizia que a bd deveria poder fazer tudo aquilo que o cinema conseguia e posteriormente estendeu essa visão a todas as formas de arte. Não querendo (ele) hierarquizar as artes, atrever-se-ia a pensar que bastaria juntar o melhor escritor ao melhor pintor para obter a obra d'arte mais completa? Talvez. Será inversamente o cinema capaz de reproduzir tudo o que a bd faz? Apesar dos exemplos felizes que dei de adaptações, sendo o AS uma autobiografia, logo não conta :-), juntaria a "História de violência" do Cronenberg ao Ghost world e pouco mais. A cada "transmediação" que vejo, mais compreendo a "obsessão" do Alan Moore em não permitir que associem o seu nome às adaptações cinematográficas das suas histórias. E quanta razão teve para todas sem excepção, uns casos mais graves que outros. Para mim, a lembrança mais imediata de como os códigos de linguagem e de representação da bd não funcionam ou não são reproduzíveis no grande ecrã (incluo a animação), para além de todos os filmes de super-heróis, é o caso paradigmático do Sin City. Mesmo esquecendo o efeito de mera repetição do que é apresentado nos livros (não sou fã), o filme fracassa em toda a linha em convencer o espectador de que aquela linguagem e forma de representação do "real" pertencem à sua diegese. Certamente conhecerás adaptações que contrariem este meu preconceito, com verdadeiros realizadores :-).
Obrigado, um Abraço.
José
O problema desse desejo é querer ver a mesma coisa em dois meios diferentes. Os filósofos são reconhecidamente conquistadores do pensamento por alguma razão, porque nos ajudam a pensar em todas as suas consequências. Deleuze, em "Que-est ce que l'acte de creation?" (de que se encontra mesmo um vídeo no youtube cm lgendas em inglês), diz que não existem ideias "em geral", uma vez que estas medram desde logo no interior de um modo de expressão determinado. Logo, a questão da adaptação, ou como se diz hoje, transmediação (tomando em conta questões de elementos expressivos, técnicos, ambientes, mais do que simplesmente a diegese) não se pode contentar com aspectos superficiais. Nesse sentido, concordo que a maioria dos filmes são falhos, mesmo aqueles tratados pelo próprio autor (pensemos em Bilal).
ResponderEliminarNão partilhando dos sentimentos para com Clowes, que penso ser um autor maior no seu tratamento de temas "menores" (tal como Pekar), e tendo sido "Ghost World", o filme, um projecto interessante e forte sem que seja uma obra-prima, existem alguns casos de cinema, ou Cinema, que tendo relações com a banda desenhada mais ou menos directas, farão parte de um hipotético campo de excelentes conquistas cinematográficas, ora a níveis particulares ora enquanto texto holístico. Apenas a título de exemplo, e sem qualquer veleidade de exaustão, eu falaria de "The Life and Death of Colonel Blimp", de Michael Powell (1943), "Danger: Diabolik", de Mario Bava (1968), "L’an 01", de Jacques Doillon (com Gébé, Alain Resnais et Jean Rouch; 1973); "When the wind blows", de Jimmy T. Murakami (1986), "I Want to go home", de Alain Resnais (1989), "Neji-Shiki" (“Marado”), de Teruo Ishii (1998), "Koroshiya Ichi/Ichi, the Killer", de Miike Takashi (2001), "The Road to Perdition", de Sam Mendes (2002), "Les beaux gosses", de Riad Sattouf (2009).
O "A History of Violence" é um filme muito mais intenso do que o livro original. E apesar do seu aspecto mais espectacular, o "Hulk" do Ang Lee é um filme do Ang Lee, e isso basta para o tornar um bom filme.
Quanto à ideia de juntar um ponto e um escritor... A esmagadora maioria dos casos em que isso ocorreu, não funcionou bem, e (até parece que estou a perseguir o homem, mas desta feita defendo-o) o McCloud diz algo muito interessante sobre essa hipótese, apontando para a potencial falência. Howard Hawks contou com Faulkner e foi uma experi~encia feliz. O Manoel de Oliveira fez os seus melhores filmes "literários" com Augustina Bessa-Luís. o Tonino Guerra é um nome gigante nesse campeonato. As relações entre o Nouveau Roman e a Nouvelle Vague são consabidas. Mas há mutos equívocos... e a esmagadora deles foram criados precisamente pela tal "adaptação superficial da diegese", mais do que se buscarem outros tipos de diálogo. No caso de Moore, por exemplo, havia o problema de querer "dizer mais que o autor", mas procurando encaixar em fórmulas preconcebidas. Da arqueologia de "From Hell" passou-se para um "whodunnit", da contemporânea desmontagem de Tatcher de "V for Vendetta" passou-se a um pobre pastiche de "distopias punk" fora de prazo, e por aí fora...
Está para breve um ciclo do Béla Tarr da Culturgest... A ver se me cruzo com ele e lhe enfio um livro do Fortemps debaixo do braço... Ou do Andrea Bruno, ou do Buzelli, ou da Amanda Vähämäki...
Pedro
Pedro,
ResponderEliminarPequenos comentários que faltaram às tuas generosas palavras:
Bilal viu uma oportunidade de consagração cinematográfica e quis agarrá-la com a sua trilogia. A ambição traiu-o, ao contrário do Pekar que encarou o momento com a lucidez quase "autista" que lhe reconhecíamos.
Não associaria o "Quero ir para casa" do Resnais ao tema, apesar da colagem a Cleveland e, mais distante, ao Harvey Pekar.
Quando falei do Cronenberg, por falta de espaço, não o comparei ao Sam Mendes, mas lá vai: a estrada para a perdição, para além do casting pouco convincente, tinha uma fotografia demasiadamente limpa, e quanto ao livro, como criação, sempre me decepcionou o decalque à história original.
Não é habitual ouvir-te dizer que basta o nome para a obra estar feita, faz-me lembrar uma discussão que tive uma vez com alguém que defendia a qualidade intrínseca a todos os filmes do Wim Wenders (podia ser um super-herói do Stan Lee :-).
Esqueci-me de referir a tua chamada ao ICA e ligação pouco estreita que fazem entre audiovisual e cinema e esta curiosa (autoelogio) metáfora: já foi também IC e ICAM. Já viveu e morreu sem o audiovisual, agora vive sem a multimédia, alguma vez será a do cinema.
Obrigado pelas sugestões, já não me recordava bem do Colonel Blimp e não o associava a tiras de jornais e o When the wind blows é mais um daqueles vazios na minha leitura pouco orientada de BD.
Deixa-me dizer (tenho que passar manteiga, é habitual, mas é merecida) que é espantosa a tua bagagem cultural e a facilidade com que a transportas e partilhas com quem te acompanha, no meu caso, infinitamente atrás.
Obrigado, obrigado.
José
Caro José,
ResponderEliminarSim, apanhaste-me, como se costuma dizer, com as calças na mão. Não sou um fã incondicional e indiferenciado do Ang Lee, como o sei do Béla Tarr, do Jan Svankmajer, talvez do Lynch... Mas o que pretendia dizer é que parte do "ódio" que surgiu em relação ao "Hulk" nasceu dos fãs que querem "ver o mesmo", digamos assim, e estarem fechados a procurar o que há de único - se bem que nada terá do génio ou singular absoluto na história do cinema - na pesquisa do realizador.
O filme do Resnais é escrito pelo Jules Feiffer, e aborda questões muito curiosas da "oposição" entre os comics americanos e a banda desenhada francófona, ainda que de uma forma transformada; não vejo porque não entraria numa hipotética lista desta natureza, sobretudo se tivermos em conta a forma como o Resnais deixou claro, explicitamente, a influência que teve de inúmeros autores de banda desenhada.
O filme do Sam Mendes não é mau de todo, e, tal como ocorre com o do Cronenberg, talvez até seja superior a livro: isto é, enquanto cinema, são melhores obras de cinema do que os livros de banda desenhada o são desse mesmo território. Mas também não é nada que nos faça cair no abismo, concordo que é algo arrumado. Competente, bem feito, bem comportado, mainstream. Mas não há nenhum mal nisso.
De resto, tenho algum receio em dar continuidade as estas reflexões, pois o meu conhecimento de cinema é mais anedótico do que qualquer outra coisa...
Quanto à cena do ICA, ICAM, etc., sim, era mais uma "boca" e um jogo do que algo aturado... enho de ter mais cuidado, já vi!
;)
Obrigado,
Pedro
Desculpa, só mais esta última chamada, não me expliquei bem quanto à exclusão do Resnais, mas referia-me à particularidade do argumento não resultar de uma história de banda desenhada ao contrário de todos os outros.
ResponderEliminarObrigado,
José
Ha, ok, tudo bem. Mas tampouco o do Powell... Apenas a personagem Blimp (que nem sequer é a principal no filme, de certa forma) é que é comum... E também é discutível no caso do Mario Bava. Daí ser menos importante a "adaptação" do que a transmutação mágica e bem pensada de cada meio...
ResponderEliminarAbraços,
Pedro