Este livro é uma colectânea, integral, da obra da escritora norte-americana Alex De Campi, que se apresentara, em primeiro lugar, na mini-série Smoke (de 2005), e que depois em 2012 encontraria desenvolvimento num comic digital, Ashes. A nossa leitura foi feita de modo seguido, como se de um volume se tratasse, e apesar das diferenças entre um título e outro em termos de abordagem visual, tratamento narrativo, e as expectáveis distâncias diegéticas, eles conseguem coordenar-se com alguma fluidez.
A primeira história faz com que o caminho de uma jornalista de investigação, a britânica (de descendência paquistanesa, indiana?) Katie Shah, que procura compreender os meandros que unem os poderes políticos de um governo britânico em falência com os interesses petrolíferos da OPEC, se cruze com o de um assassino do governo, o albino Rupert “Cain”, transformado em “ponta solta” que precisa de ser eliminada. Como uma boa história mainstream, há um equilíbrio perfeito entre a conflituosa construção da relação entre estas duas personagens tão distintas e de mundos apartados, o busílis da acção centrado na teia de espionagem, corrupção política e financeira, e desejos de controlo societal, e ainda as várias dimensões possíveis de retrato, projectado e distorcido, da sociedade britânica num futuro já aqui ao virar da esquina. O surgimento de um outro assassino, uma espécie de ciborgue sem cara, vai tornar o ritmo ainda mais acelerado e a aparada mais alta, como é de esperar.
Aquele ambiente policial, político e financeiro torna Smoke (e depois Ashes) num título próximo das temáticas da distopia, projectando-se num futuro próximo as consequências do que já se verifica nos nossos dias. Se na televisão poder-se-ia falar de Black Mirror, na banda desenhada haverá toda uma série de exemplos com grandes afinidades a este duplo título, de V for Vendetta a The Adventures of Luther Arkwright, passando pela saga de Grendel, o Dan Dare de Grant Morrison, o seu The Invisibles e outros. Os autores prestam particular atenção para os pormenores que povoam a paisagem urbana, desde o modo das pessoas comunicarem, à cintura de controlo em torno da City, passando pelos graffiti (as menções a Banksy são por demais evidentes), modas, linguagem, etc. Importa, portanto, olhar todas as escalas em jogo em Smoke/Ashes.
Ashes, a segunda história, sequela, que poderia ter sido lida isoladamente, parte de uma ideia central de ficção científica: a de que uma consciência de um jovem rapaz (que descobrimos ser o ciborgue de Smoke, antes acidentalmente morto por Cain “invade” a internet e procura vingar-se através de toda uma série de acções que “desligam” serviços e equipamentos, lançando a civilização num estádio recuado e dificultoso. Há aqui uma faceta provável de crítica (“dependemos em demasia da internet”, etc. e tal), mas isso não é, felizmente, explorado de forma explícita, havendo antes uma opção em concentrarmo-nos não nessa moralidade, mas nas acções necessárias à sua correcção, que passa por Cain revisitar o seu passado, ser capturado por ele e aí encontrar alguma solução.
Ashes foi publicado cinco anos depois de Smoke e é precisamente esse o tempo que intervala a cronologia das histórias (criando um sentimento junto aos leitores que acompanharam as séries originais próprio da “serialidade”). Mas curiosamente, é com o segundo título que se permite recuar no tempo cronológico, contribuindo para uma backstory de Cain que apenas havia sido mencionada ao de leve no primeiro livro. Ou seja, Ashes continua, expande e complefixica o universo de referências de Smoke.
Alex De Campi não é uma escritora de hard sci-fi comics como um Warren Ellis ou um Masamune Shirow, por exemplo, mas não deixa de querer investigar as consequências do impacto da tecnologia, não apenas no seu fetiche imediato, mas nas implicações que terão nas redefinições permanentes dos relacionamentos sociais, dos aproveitamentos políticos, das novas sendas da economia, e por aí fora…. Tendo em conta as profissões das personagens, o jornalismo e os serviços secretos são objecto óbvio de análises, não diria continuadas e aturadas, mas pelo menos em destaque. Mas além disso, De Campi, nestes dois trabalhos, parece saber navegar com mestria o interior dos géneros. Não concordaremos com o entusiasmo com que muitos críticos recebem Smoke/Ashes como “reinventando as possibilidades da banda desenhada”, sobretudo se tomarmos em conta muitas das verdadeiras pesquisas artísticas, expressivas e ensaísticas que conhecemos deste território. Mas o maneira como esta obra é devedora, com conhecimento, respeito e saber, à tradição do melodrama de géneros (espionagem, policial, de acção, etc.), em nada faz desmerecer a nossa atenção e compreensão do seu domínio efectivo.
A dimensão visual, de resto, corrobora essa linha de interpretação. O desenho de Igor Kordey, artista exclusivo de Smoke, faz recordar por demais o primeiro Patrick McEown, o de Grendel: War Child. Há o mesmo tipo de figuras sólidas, anatomicamente consistentes e verídicas, mas com suficientes intervalos que permitem expressões mais dramatizadas e dinâmicas, composições de página clássicas e funcionais, e um trabalho de cor (aqui de Len O’Grady) que, não deixando de procurar sobretudo um efeito geral naturalista e convencional, não deixa de ser imediatamente legível. Smoke, neste aspecto, é um trabalho bastante normalizado, legível, competente, criando um excelente trabalho mainstream, como os artesãos do cinema de Hollywood do bom velho tempo.
Ashes, por outro lado, é criado de uma forma muito mais alargada (até por o primeiro livro ter cerca de 150 páginas e o segundo quase 300). Poderíamos dizer que é menos rigoroso ou coeso, mas isso dever-se-á, naturalmente, à diversidade dos autores que trabalham no título. Gostaríamos de dizer que essa flutuação e emprego de vários artistas corresponderia a uma clara estrutura que diz respeito à diegese - por exemplo, movimento entre vários momentos cronológicos, um crescendo qualquer na representação ou outros aspectos passíveis de “heterogeneidade gráfica”. A razão, porém, começa do lado da produção. A sequela de Smoke começara entre Campi e Jimmy Broxton, através de uma campanha na Kickstarter. Porém, por uma razão ou outra, as divergências entre escritora e artista levou a que se tivessem desvinculado, e Broxton não só não daria continuidade ao projecto que tinha em mãos, como nem sequer se encontrarão neste volume as páginas que havia desenhado [mostramos um exemplo, ao lado das publicadas, dos Sobreiro]. Campi teve, porém, a felicidade, de contar com toda uma série de artistas, para sequências mais ou menos breves.
Se existem vários casos em que a diegese pede por esta flutuação de estilos ou registos (seja através de autores de assinaturas diferentes seja um mesmo autor a criar abordagens e pastiches diversos) - e apenas a título de exemplo, recordemos a saga de Supreme nas mãos de Alan Moore e companhia – no caso de Ashes criam-se momentos muito diferenciados, também, mas menos consonantes com o que vai sendo contado e/ou revelado. Existem momentos em que isso se torna mais claro, como no caso das alucinações “internas” quando Cain está a ser torturado – um emprego desconcertante de imagens de um livro ilustrado infantil e depois de um pastiche neo-rafaelita podem revelar receios ou traumas profundos das personagens, ou modos de negociarem com estruturas míticas transhistóricas -, mas na esmagadora maioria dos casos é só por ser uma “passagem” entre episódios ou cenas (ou, melhor dizendo, de artistas).
O início do novo capítulo está nas mãos dos brasileiros Milton Sobreiro e Felipe Sobreiro, que apresentam uma prestação sólida e competente, ainda que com alguns desequilíbrios que colocam em causa a fluidez natural dos corpos das personagens. No segundo capítulo, uma parte correspondendo ao passado é desenhada pela delicada Carla Speed McNeil (a qual, confessemos numa nota pessoal, foi o factor que nos levou a comprar o livro, e desejar ter sido ela a artista principal), e uma outra, passada numa base norte-americana, por Richard Pace, com a convencionalidade necessária. Esta estrutura com três registos visuais para três “linhas narrativas”, faria pensar numa continuidade, mas se existem alguns argumentos para dizer que cada um dos próximos capítulos ou suas secções são desenhadas por artistas diversos para dar conta de uma qualquer inflexão interna, a verdade é que não há uma estrutura elegante de ponta a ponta. Ainda assim, com páginas desenhadas por R.M. Guéra, Dan McDaid, Bill Sienkiewicz com algumas páginas, inclusive as do fecho, Colleen Doran, Mark Chater, Alice Duke, Alem Cúrin, Jesse Hamm, James Smith e Matthew Hernandez, e a capa da colecção por Tomer Hanuka, haverá certamente estímulos para muito gostos, e questões de flutuação visual para explorar.
No cômputo final, porém, há boas razões para crer que de facto este é um projecto de Campi, mais do que uma colaboração criativa entre a escritora e a sua troupe de artistas. Sendo um título mainstream, ele é de uma qualidade que ultrapassa a maioria das produções constrangidas àquelas personagens mais famosas dos super-heróis, até mesmo no que diz respeito ao modo como exploram os aspectos do real em que se inserem. Smoke/Ashes é bem mais directo nessa relação, e mais inteligente na exploração das consequências. E sem quaisquer moralismos ou heroicidades inultrapasáveis. Se Cain, até mesmo enquanto assassino albino, parece ter todos os ingredientes para se tornar um inderrotável campeão, as suas fragilidades estão sistematicamente expostas, a sua humanidade não se oculta, e isso é demonstrado, de uma forma feérica, para não dizer maravilhosa (na acepção literária da palavra), no final da saga. Se não poderemos dizer, eventualmente, que esta é uma obra-prima, incontornável, ou um monumento aos géneros, ela é seguramente uma prova cabal da capacidade de equilíbrio de Alex De Campi em gerir todos aqueles clichés necessários à sua edificação, ao mesmo tempo que os anula e impede outros de emergirem com as suas personagens diversificadas, inteligentes. Não há quaisquer maniqueísmos claros neste texto, mas antes zonas ambivalentes e fluidas, tal como o fumo, ou restos de narrativas passadas, nas quais ainda adivinhamos a presença de algo vivo ou que pode regressar, como as cinzas.
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