Depois do que se tentou com Avengers, Endless Wartime, intentaremos aqui outro exercício. Há uma grande dificuldade da nossa parte em conseguir escrever sobre séries em curso, sejam elas curtas ou prolongadas, de comic books. Este formato não convida a considerações que possam ser vistas como totalizantes, uma vez que são sempre apenas uma parcela de um percurso maior. Não é que a “leitura totalizante” seja sequer possível, claro está, mas é pelo menos uma ilusão possível a de que face a um texto fechado, coeso, um arco completo (um álbum, um trade paperback, um livro, etc.), será possível tecer considerações mais sólidas. Talvez seja um erro, mesmo. Mas um comic book, um texto de uma poucas dezenas de páginas que sempre promete desenvolvimentos e curvas e desvios no mês seguinte (ou prazos maiores) torna ainda mais complexa essa decisão de leitura. (Mais)
Como havíamos explicado antes, há um prazer inerente ao seguimento dos comic books que é particular à serialização. Na economia de mercado existente nos Estados Unidos (cujos princípios funcionam de modo bem diverso da serialização em França e no Japão), procura-se criar sucessivas unidades de textos, cada vez mais alargadas: um episódio a cada comic book mensal, com o equilíbrio entre desenvolvimento e suspense, depois o trade paperback que possivelmente se apresentará enquanto um “arco narrativo”, e uma série completa ou pelo menos um “run” de uma equipa criativa, que promete sustentar-se como um texto autónomo. Isto depois terá funcionamentos diferentes caso se trate de personagens de longa continuidade (Batman, Homem-Aranha), séries que se prevêem concluídas (Scalped), mini-séries (Nemesis, The Wake, Smoke/Ashes, etc.) ou até coisas que foram anuladas pela falta de interesse (Simon Dark, Immortal Iron Fist, etc.). Mas não obstante o perigo que há na leitura e consideração de elementos narrativos que depois poderão ser gorados, pretenderemos, nos próximos tempos, à medida que forem publicados os seis números de Sandman, Overture, de deixarmos as nossas notas.
Como sempre, iniciaremos com considerandos mais gerais. Um dos aspectos da parte da produção deste título a ter em conta é que esta série surge precisamente após o momento em que se havia anunciado, talvez apenas como boato, o fim da Vertigo. Se a saída da editora Karen Berger se verificou, e fazia adivinhar o pior, e ainda com a reintegração pós-New 52 de toda uma série de personagens no Universo da DC significava o fim dessas séries (Hellblazer como exemplo máximo), a verdade é que esse selo editorial interno (uma “imprint”) continuaria a produzir trabalhos novos, alguns reunindo atenção crítica e vendas significativas, como The Wake, de Snyder e Murphy, e mais recentemente todo um novo conjunto de séries (Hinterkind, Coffin Hill), que a nosso ver são apenas tentativas de requentar géneros, mas sem qualquer energia. É verdade também que Gaiman já havia pensado nesta possibilidade há muito tempo, e havia mesmo recusado há uns anos este projecto por razões financeiras que lhe pareciam desfavoráveis. Tendo em conta o sucesso que ele tem tido desde a série original enquanto escritor de romances e novelas fantásticas (o género, não o adjectivo de valorização), e outros papéis culturais, e ainda tendo em conta que a quota-parte da transformação e fama da Vertigo se deve à sua série (tal como a Swamp Thing de Moore, a Hellblazer de Garth Ennis, e a Doom Patrol de Morrison, e seus colaboradores respectivos) – e mais, a primeira série original com esse selo foi Death, the High Cost of Living, de Gaiman e Chris Bachalo – essa exigência parece ser justa e justificada; ou pelo menos demonstra a maior capacidade e sucesso de negociação de Gaiman com estas companhias, ao contrário do seu mentor Alan Moore… Provavelmente este é um negócio gordo para ambas as partes: Gaiman garante “alimentar” o imaginário dos seus fãs, a DC garante a sobrevivência da Vertigo através destes projectos de perfil bastante publicitado.
Em suma, não podemos jamais esquecer-nos, ao encarar esta nova série, que é uma boa forma de garantir mais entrada de capital na exploração de uma das personagens mais “rentáveis” da companhia junto a uma determinada franja de público: os leitores originais, góticos, fãs de literatura fantástica, e um número substancial de pessoas que não leriam outras séries de banda desenhada.
Outro factor a ter em conta é que esta não é a primeira vez que Gaiman “regressa” à sua personagem. Sandman, recordemos, é propriedade da DC, mas há um contrato que torna Gaiman o único autor a poder utilizá-lo, a menos que ele conceda o seu uso a outrem (o que não parece poder ocorrer, fora as experiências literárias de The Sandman: Book of Dreams). Se ele escreveu a série principal entre 1987 e 1996, e para além dos spin-offs da “secção” do “universo diegético” de Sandman, que levou às séries Sandman Mystery Theatre, Dead Boy Detectives, The Dreaming, House of Mysteries, Lucifer e The Sandman Presents, entre outras, o próprio Gaiman revisitaria a personagem principal na recta final da série em 1996, com Matt Wagner, em Sandman Mystery Theatre (o livro, não a série), depois com uma espécie de “coda” com “The Last Sandman Story” na colecção das capas da série feitas por Dave McKean, Dust Covers (cujo trabalho marcaria substancialmente o design da época deste território particular, mergulhando em projectos de mixed media quase inusitados, e sobretudo no género), seguindo-se dois livros substanciais: em 1999 com The Dream Hunters, um livro ilustrado por Yoshitaka Amano, e em 2003 The Sandman: Endless Nights, que junta sete histórias curtas de cada um dos “Eternos”, desenhadas por artistas internacionais. Dream Hunters pode ser colocado, em termos cronológicos, lateralmente à série principal, na mesma medida que as pequenas histórias paralelas de Fables and Reflections ou as pistas espalhadas nos outros “arcos”, que mencionaremos adiante. Endless Nights, por seu lado, tem histórias que se espalham pela história humana, havendo uma – “The Heart of a Star”, desenhada por Miguelanxo Prado, que se situará éons antes da formação da Terra, logo, também anterior a Overture. O que nos leva, então, ao problema da cronologia, da história e da ordem.
Expliquemos o que pretendemos destas palavras: por “cronologia” entendemos uma suposta organização diacrónica de todos os eventos que os leitores captam de um determinado conjunto de histórias. Na verdade, trata-se muitas vezes de uma reorganização a posteriori, e retrospectiva, já que se começámos a acompanhar Sandman em 1916, para rapidamente chegar aos tempos então presentes (finais dos anos 1980), só mais tarde e na leitura de “tudo” é que aprendemos pormenores do tempo da formação das estrelas do Sistema Solar, do Império de Augusto, do califado de Haroun al Rashid, da época isabelina, da Revolução Francesa, etc. Nesse sentido, “Ordem”, neste caso, seria a ordem de produção e recepção imediata (já que esta, se for feita agora, poderia saltar de livro em livro, sem respeitar a ordem original). Isto significa que para quem acompanhou a ordem original, os pormenores foram aprendidos de uma determinada maneira, que permitiram, por exemplo, compreender a maturação emocional que o protagonista de Gaiman sofreu ao longo das histórias, e é preciso compreender, ou esperar, que Overture regresse ao monarca-entidade arrogante e isolado do início da série, não ao melancólico e arrependido que a terminara. Ora, tomando em consideração essas duas noções, Overture encontra-se naquele momento imediatamente anterior ao Sandman no. 1, quando o Sonho é capturado por Burgess. Mas se na cronologia do “mito” (no sentido próprio de “narrativa”) se encontra aí, na ordem ele parte do princípio estar no fim, como uma espécie de corolário. Daí chegamos a uma ideia fluída de “história”, compreendendo o conjunto de elementos isoláveis e identificáveis como tal, e que poderão sofrer reformulações e reempregos nesta série, como se nota desde logo pela recolocação de personagens, princípios de representação do protagonista (que surge como flor, por exemplo), ou relações (a preocupação da irmã Morte, o “pressentimento” de Lucien). O autor vai seguramente tirar partido do conhecimento dos leitores, para que estes criem linhas de fuga e ligação com o “futuro cronológico” da personagem.
Quando a saga de Sandman começou, perguntamo-nos se haveria já uma ideia palpável do que se viria a tornar. Em retrospectiva, podemos dizer que Sandman foi uma série sobre histórias, sobre o seu poder sobre os seres humanos, a forma como elas unem as pessoas mas também as dividem em grupos, e o papel que a imaginação tem não apenas no entretenimento mas na constituição da, se quiserem, alma. Mas os primeiros números ainda vão apalpando terreno familiar. Entre o gótico, o terror, o fantástico e até mesmo a conversação com o universo DC (nos primeiros 5 números, cruzamo-nos com Constantine, Etrigan, Mister Miracle, o Martian Manhunter, etc.). um pouco como Cerebus escapou das suas raízes no sword-and-sorcery, ou Love and Rockets atravessou vários humores e mesmo géneros até se tornar um bastião da complexidade e riqueza da vida humana. Até a arte de Mike Dringenberg e Sam Kieth, sejamos francos, não era nem é particularmente agradável (são até dos piores casos de uma série que comportaria nomes de primeira água da indústria). Leia-se o primeiro número forçando a ideia de que se trata de um one-shot da E.C. Comics, e veremos que há pouco que celebrar. A saga cresceu a lume brando.
A história inicia-se em 1916, quando um mago, Roderick Burgess (uma forma de representar Crowley) captura Morfeu por engano. A personificação do Sonho estava enfraquecida por estar a regressar à Terra depois de um combate do “outro lado” do cosmos, cujos detalhes jamais seriam revelados durante os 10 anos que se seguiriam. Esta é “a história que sempre quis contar”, diz Gaiman na sua sábia forma de vender os seus projectos.
Repare-se na quantidade de linhas narrativas se estabelecem aqui, e que, neste primeiro número, não encontram justificação total, ou cujo relacionamento nem sempre é claro (este é um dos problemas da leitura isolada de cada capítulo, já que uma sua leitura corrida, enquanto uma história, poderá revelar uma diferente economia e ritmo). Uma linha é a que abre a narrativa: encontramos Sandman, numa sua manifestação em forma de flor, face a uma raça de flores inteligentes no planeta Quorian, e sucumbindo ao fogo. Fica a dúvida, pois se o fogo não é mortal para o protagonista, uma vez que já surgira sob a forma de fogo, perante o marciano Manhunter, não só observamos uma morte, explícita e reveladamente, como a própria Morte fala nisso, umas páginas à frente, num outro nível narrativo (a do mundo dos Eternos, discutindo o irmão mais novo: Sandman, Morfeu, ou Sonho). Um terceiro nível é aquele que se inicia na Londres de 1915 (um ano antes dele vir a ser capturado) , e que encontra Sandman nos seus “negócios habituais”, cruzando-se com o Corithian, que terá um papel preponderante no futuro (em Doll’s House). Esta seria a linha principal, do “nosso” Sandman – isto é, aquele que pertence à realidade em que a sua saga se desenvolverá – e que o leva a ser arrastado para um qualquer canto do universo, no seu traje de combate, dar de caras com vários outras manifestações dele próprio. No entanto, mais do que “manifestações”, isto é, as formas como a noção que ele representa (o “Sonho”) é vista por vários povos, civilizações e mesmo espécies, estas outras personagens devem ser “versões”, Sandmen de outros universos existenciais, um pouco como ocorre tipicamente no multiverso dos super-heróis.
Aquela suposta “aventura” servia de McGuffin. Haverá necessidade de regressar a ela, tendo em conta que ela teria de se aliar não apenas ao “ambiente” original, algo negligenciável, mas também a todo o edifício que se seguiria, bem diferente?
É claro que se imagina que Gaiman quererá satisfazer os seus fãs de longa data e que conhecem bem a série original, possivelmente garantindo o máximo de “cameos” por toda uma série de personagens, ou de linhas que se viriam a desenvolver no futuro cronológico, ou por referências que permitirão cartografar Overture para além destas suas páginas. Só no interior destas poucas páginas já pudemos cruzar-nos com os irmãos Destino e Morte, o pesadelo Corinthian, o bibliotecário Lucian, e até Mervyn Pumpkinhead, ainda que as suas presenças não sejam de forma alguma decisivas ao evento central deste episódio (e nos fazem colocar a questão se eles regressarão, se terão um papel mais preponderante e relevante, etc.).
O método de composição de Williams tem sido bastante influente. À luz das pistas interpretativas de teóricos como Benoît Peeters ou Renaud Chavanne, elas revelar-se-ão na verdade um efeito de superfície que apenas nela trazem um nível mais de leitura e interpretação. Não alteram os protocolos mais usuais de leitura, para começo de conversa, nem apresentam desvios significativos da naturalidade de que se precisa para ler a história, mas ainda assim trazem um qualquer signo de excesso à leitura da prancha/página. Não estamos aqui a falar de Crepax, nem de Chris Ware, mais profundos revolucionários neste aspecto, mas Williams, na sua mestria contemporânea, adapta a sua capacidade de criar composições incomuns e visualmente sedutoras a cada propósito narrativo: seja em narrativas que pedem por uma densa rede de referências e passeios enciclopédicos, como a Promethea de Alan Moore, sejam cadeias de lógicas multifacetadas entre segmentos díspares, como os capítulos introdutório e epilogal de Seven Soldiers de Morrison, seja nas fragmentárias e centrífugas paisagens de Desolation Jones, de Warren Ellis, ou nas dinâmicas projecções de Batwoman, de Greg Rucka. Pelo contrário, alguns autores que o tentam imitar, como recentemente Marco Rudy em Marvel Knights Spider-Man, escrito por Matt Kindt, demonstram como a utilização de estilo sem substância ou governo narrativo ferem a legibilidade e graciosidade de uma obra, esgotando-se somente em “fogo de vista” (Frank Quitely, num número conciso de páginas em We3, aproximou-se do aparente caos criativo de Williams; e Yannick Paquette é um caso que mereceria uma análise detalhada, mas não a perseguiremos aqui; esperemos por Wonder Woman: Earth One?).
A leitura do objecto é célere, mas o cômputo de imagens é intrincado. Na verdade, podemos dizer ter neste número 14 imagens. Mas destas, apenas 3 são pranchas simples (que ocupam apenas uma página física), sendo a primeira e a última próximas reflexões uma da outra. Temos depois 9 a 10 pranchas duplas (que ocupam duas páginas físicas), se bem que 3 a 4 destas apresentam uma divisão quase convencional das vinhetas (dependendo se contarmos a do livro de Destino dando passagem à janela vidrada). Finalmente, temos duas páginas cortadas que servem de abas a abrir uma dobragem interior, que revela uma imagem ocupando o equivalente a quatro páginas, e que constitui uma imagem contínua: o encontro do “nosso” Sandman com vários outros Sandmen, e que se alia à longa tradição “prismática” do universo dos super-heróis (a ideia de Multiverso e de crossovers, a que a saga original não foi alheia, como se verificou em World’s End), já para não falar da própria consistência diegética das “versões culturais” dependendo de quem vê Morfeu. Este desdobrável interior foi utilizado pela indústria noutras ocasiões, e até de modos mais dinâmicos e intricados no que diz respeito ao avanço da diegese (como no caso de All-Star Batman no. 4 de F. Miller e J. Lee e nos The Ultimates no. 13 de M. Millar e B. Hitch), sendo aqui meramente empregue como exposição espectacular dos vários Sandmen, de que o “nosso” parece ignorante no final do capítulo. De certa forma, é esse o ponto alto, o cliffhanger deste número. Contudo, não apenas essa multiplicidade não é de forma alguma problemática - nem na economia tipificada das histórias desta indústria nem da diegese particular do protagonista - como não constitui o tipo de abismo que poderia tornar desde logo Overture numa promessa à altura da memória global da saga original. Mas tendo conta a prestação muito desigual de Gaiman no campo da banda desenhada - há Signal to Noise, Mr. Punch, Black Orchid e Violent Cases, é certo, mas também há The Last Temptation, Marvel 1602, Harlequim Valentim, Creatures of the Night, e Spawn: Angela (mas, de resto, na literatura e no cinema também não há apenas conquistas, bem pelo contrário) - a expectativa não é a de uma totalmente acabada perfeição.
O trabalho de cor, de Dave Stewart (que já colaborara com Williams em Seven Soldiers e Batwoman, e de quem acabámos de falar antes em The Midnight Circus), é irrepreensível, e também cria cerca de quatro “registos” distintos (a linha cósmica, central, o tom mais soturno com os Eternos, a camada a preto-e-branco – por demais recordando as ilustrações misteriosas de Henri Zo para Raymond Roussel -, que se mistura com a linha “normal”, e uma ligeira variação no fim, cheia de aguarelas variegadas, espontâneas e fluídas). Além disso, em pormenor, ele opta por representações diferenciadas, sobretudo visíveis na forma como cada um dos Sandmen no final se apresentam não apenas em figurações distintas, mas estilos de desenho e coloração (repetindo uma verdade gráfica que Saul Steinberg havia explorado magistralmente, e seria imitado por David Mazzucchelli).
Uma obra de arte, e para mais aquelas que pertencem a um meio de expressão multimodal, passível de colaborações e intervenções editoriais e cuja contextualização social não permitem sequer a ilusão - sempre ilusão - de uma “pureza”, não são um conjunto de elementos moleculares. Como escreveu Fereydoun Hoveyda num dos seus ensaios dos Cahiers du cinéma, “Na melhor das hipóteses, a análise decompõe uma obra, mas não dá conta dela”. E facto a crítica pode identificar os elementos passíveis de estudo, apreciação isolada, contemplação e ponderação, como o fizemos. Mas não é ainda suficiente para a compreensão de toda a conjunção, do objecto em concerto. E muito menos na abordagem fragmentária de uma parte de um todo que apenas se pode, por ora, adivinhar.
Acompanhemos, então.
Número 2.
Nota final: com a excepção da fotografia do spread, todas as imagens de ficheiros digitais.
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