18 de novembro de 2013

Hellboy: The Midnight Circus. Mike Mignola e Duncan Fegredo (Dark Horse).

Quando faláramos brevemente do comic book regular desta personagem, já se previa a leitura deste novo livro, de quase 50 páginas. E, de facto, enquanto esperamos a (lenta, protelada) continuação e conclusão do novo capítulo da saga de Hellboy in Hell, Mignola oferta-nos mais uma vez com um relato da infância do seu protagonista. Não sendo a primeira vez que temos acesso aos primeiros anos de existência de Anung Un Rama entre os humanos, e dentro do “cânone” dos eventos (uma vez que muitos dos episódios que tivemos da sua infância eram cómicos e poderiam ser vistos como apócrifos), este é porém o projecto mais alargado e mais bem constituído. Se quase todas as outras histórias do Hellboy em criança e sobretudo em Hellboy Jr. eram legíveis como “scherzos”, The Midnight Circus torna-se desde logo parte substancial do projecto em moldar em profundidade a biografia e personalidade da personagem. As associações ao mito, por assim dizer, de Hellboy, são variadas, tendo cada uma das personagens com que ele se cruza papéis que serão preponderantes no futuro da sua cronologia interna, quer aqueles que já testemunhámos enquanto leitores dos seus livros quer do que ainda se adivinha vir a desenvolver em Hellboy in Hell e para além disso. Hellboy ainda está bem aquém da senda que o colocaria no caminho percorrido em The Right Hand of Doom, onde compreenderá a sua mão como a “chave” do Apocalipse e o seu papel no advento dos dragões lovecraftianos. Uma herança que ele negará, mas que acabará por levar-lhe a melhor.
 
Uma das formas de ler este livro será a de lhe encontrar um arco entre a relação inicial e a final entre o pai adoptivo, o investigador paranormal Bruttenholm, e o filho, Hellboy. Se no início, eles parecem algo distantes entre si, no fim estão conscientes do que os une, precisamente por ter sido sublinhado durante a separação. Num dos momentos de analepse há mesmo um momento de comovente ternura, de um modo talvez pouco implícito. Hellboy pergunta pelo pai, e a forma como os autores gerem as imagens (ver adiante), a perspectiva, o espaço em redor do jovem, fazem conduzir para esse sentimento crescente, que tem lugar precisamente no momento, na economia desta narrativa, quando tal sentimento vai servir para o rapazito demónio tentar “escapar” da força gravitacional e sedutora do circo… Curiosamente, também não é a primeira vez, na ordem da leitura [noção importante, e que abordaremos quando falarmos de Sandman: Overture], que vemos Hellboy a confrontar um circo demoníaco: em 2003, John Cassady havia criado “Big-Top Hellboy” para o primeiro número de Hellboy: Weird Tales (de que mostramos uma imagem no parágrafo presente). Nessa história, Hellboy confessava que “sempre detestou circos”. Perguntamo-nos se, em retrospectiva, The Midnight Circus exporá as razões desse desapreço.

Até certo ponto, podemos considerar The Midnight Circus como uma superficial adaptação da novela de Carlo Collodi, Pinnochio. Dizemos “superficial” por duas razões. Em primeiro lugar, pois não sendo directamente uma adaptação dessa narrativa, ela é citada explicitamente, tornando os elos de ligação óbvios, mas ainda assim reduzidos aos “eventos principais” (a fuga para o circo, a queda na barriga da baleia, o encontro com o Gato e a Raposa), e sem entrar em grandes pormenores (as personagens que fazem as vezes do gato e da raposa não são, respectivamente, cega e coxa; não há tempo para “criar vida” na barriga da baleia, etc.). Em segundo, porque esses “eventos” são transformados em módulos básicos de modo a servirem antes à construção da história em questão e a realidade de Hellboy. No entanto, ao contrário de outros exercícios similares, desinspirados e de resultado trivial (pense-se em Batman: Noël, de Bermejo, por exemplo, ou nas inúmeras utilizações do “Inferno” de Dante), o resultado de Circus é sólido e significativo no interior da narrativa alargada desta personagem.

Ao contrário do que poderão pensar aquelas pessoas que nunca leram o livro original, mas “conhecem a história” (na verdade, não a conhecem) através das versões do filme da Disney ou de adaptações a livros ilustrados infantis mais modernos, a obra de Collodi poderá parecer-nos hoje pejada de episódios de extrema violência, crueldade e mesquinhez. Le Avventure di Pinocchio. Storia de un burattino veio a lume num volume em 1883, contando a estranha e fantástica origem de “um pedaço de lenha”, cujas primeiras acções e palavras revelam de imediato a sua indelicadeza e grosseria, e que serve lição atrás lição mas num estranho paradoxo: se o fito global e final é de facto alertar para a necessidade da obediência, do estudo, da conformidade nos papéis sociais, há um claríssimo prazer e deslumbramento com todas as infracções feitas pelo pequeno rebelde. É curioso que o proprietário do circo, nesta história (e que na verdade é o tio de Hellboy, Astaroth), quando pergunta a Hellboy se conhece a história de Pinóquio a partir do filme (o qual, sendo de 1940, poderia perfeitamente ter sido visto pelo pequeno demónio), fica surpreendido por este conhecer o livro. Numa analepse, quando Hellboy está a ler o livro, instado por uma educadora que o quer afastar dos comic books (um nível metatextual irónico), vemos uma página ilustrada – pelo próprio Fegredo, e não se referindo nem às ilustrações originais de Mazzanti nem a qualquer outra edição existente, mas citando o texto com correcção – e a surpresa de Hellboy. Essa surpresa servirá não apenas de “gancho” da curiosidade de Hellboy junto ao circo da meia-note, mas também uma pista para o relacionamento que ele terá com outras criaturas tratadas como “bonecos” no seu futuro, nomeadamente Abe Sapien e o homúnculo Roger.

Como escreve Giorgio Manganelli em Pinóquio: um livro paralelo, espécie de exercício menardiano sobre o livro de Collodi, “Na imobilidade tipográfica, o espaço entre um sinal e outro é infinito”. Podemos compreender que The Midnight Circus é portanto um desses saltos entre sinais, um livro que nasce de outro livro, ou no cruzamento de dois livros. Se Manganelli lê em Pinóquio narrativas fragmentárias, enigmas, interpretações variadas e polivalentes, é por se tratar de um desses livros maiores, como o Quixote, o Robinson Crusoé, a Alice, e outros, que estimulam o desdobramento de novas histórias e textos a partir dos seus interstícios. Não nos parece que The Midnight Circus reescreva o próprio Pinóquio, que nos permita relê-lo de forma nova, é certo, mas nem sempre é esse o propósito destes diálogos intertextuais. Mignola e Fegredo conseguem antes elevar a um ponto perfeito a simplicidade das suas missões. Acima de tudo, este é um conto acessível, acertado e comovente.

A associação de Hellboy a Pinóquio não é de modo algum inocente, se tomarmos em conta o tema recorrente daquilo que Scott Bukatman chamou de “máquinas desobedientes”, encontrando uma tradição que liga a marioneta ao “aprendiz de feiticeiro” (de Goethe, mas também o da Disney), as personagens de Out of the Inkwell dos Fleischer, e até a Maria de Metropolis. Hellboy não é propriamente uma personagem que escapa ao seu autor, não atingindo esse nível de metatextualidade (como ocorre, por exemplo, no Boneco Rebelde de Sérgio Luiz); mas ele é afinal de contas um demónio que, em primeiro lugar, escapou do Inferno e de um inexorável destino de destruição absoluta, e em segundo lugar, daquele conforto e carinho que lhe havia sido proporcionado pelo Professor Bruttenholm. Tal qual como ocorre na cegueira de Pinóquio face aos cuidados de Metre Gepetto, seduzido o rapazinho pelos imediatos prazeres da aventura. Como mais uma vez escreve Manganelli: “a obediência e sabedoria de Pinóquio são incompatíveis com a sua história, com as suas aventuras. Em termos literários, a sua história é sempre «história de uma desobediência»”.

As referências que vamos encontrando espalhadas ao longo a narrativa são relativamente fáceis de serem detectadas e lidas, não estando propriamente a atravessar as densas malhas ora eruditas de Promethea ora populares de Top 10, ambas de Alan Moore e artistas. Por exemplo, o comic book preferido de Hellboy é Lobster Johnson, de que já víramos aventuras durante a saga, e que é um pastiche das personagens simples dos anos 1940 (inclusive o Capitão América, The Shadow, etc.), e os cartazes no circo anunciando cada acto escolhe uma panóplia circunscrita, recordando o filme de Tod Browning, Freaks, mas não procurando outro tipo de fugas.

Se o estilo visual de Mignola se tem apurado nas últimas décadas até ao seu quase esquematizado estilismo dos nossos dias, mas em contrapartida surgindo pouco, o trabalho de Fegredo nesta série (dos arcos “The Darkness Calls” a “The Fury”, etc.) insuflou-a com um outro tipo de peso material. Os desenhos de Fegredo encontram um ponto muito feliz, a nosso ver, de equilíbrio entre o naturalismo e o cartoon (determinadas expressões faciais e posições do corpo raiam um excesso teatral mas que se coadunam perfeitamente com o ambiente, o humor ou a suspensão de realismo em curso), e com pormenores a nível das texturas do mundo (tecidos, natureza, paisagens, arquitectura, etc.) que ancoram toda esta fantasia numa verosimilhança legível. Muito possivelmente a composição/planificação das páginas é discutida entre ambos, uma vez que as estruturas típicas de Mignola (vinhetas silenciosas, isoladas e sucessivas que criam ambiente, uma certa maneira de interromper cenas de acção com exposições paralelas, etc.) parecem dar lugar a uma fluidez mais normalizada. Ainda assim surgem composições como esta que abre o parágrafo (apenas metade da página), em que há duas possibilidades de ordem de leitura, acentuando a atenção bifurcada das acções em curso.

Mais uma vez, Dave Stewart surge aqui como um colorista exímio, demonstrando como a dimensão da cor não serve somente para tornar palatável a comercialização destes trabalhos, como tem mesmo um propósito narrativo quase autónomo, ou um papel de significação inegável. Pois existem três ou quatro registos diferenciados. Em primeiro lugar, a cor “normal”, um esquema cromático que tem sido empregue na série contínua, uma paleta que ainda que restrita quer dar conta da “realidade”, do nível actual dos eventos no interior deste universo diegético. Temos ainda as três páginas que dizem respeito à analepse, que seguem o mesmo esquema, mas com ligeiras alterações, de castanhos e beges mais vivos, e mais claridade. Quer num caso quer no outro, as manchas do vermelho vivo da pele de Hellboy sobressaem nitidamente. Há também umas breves vinhetas expositivas apenas a lápis e castanhos, para dar conta do historial do “gato” e da “raposa”. E finalmente temos as páginas que dão acesso ao domínio soturno do circo, onde estão ausentes as fortes e espessas linhas negras dos contornos, e se opta por uma aproximação mais diluída, gestual. É quase como se estivéssemos perante a técnica do lavis, da parte do próprio Fegredo, e fossem as aplicações sucessivas das aguarelas as que garantiram as texturas e volumes dos ambientes e objectos. As cores aqui estratificam-se em azuis e cinzentos metálicos no imediato exterior nocturno (reparem-se sobretudo nas cenas de “transição”, quase sempre operadas de modo perceptível), laranjas e amarelos atenuados para quando irrompem as luzes e as chamas, e no interior aquático da baleia um uso de tons glaucos judicioso. 

O sonho de Pinóquio é tornar-se um rapazinho como os outros, mas para isso ele atravessará muitas provas e metamorfoses, perdas irreparáveis e grandes dores. Não será isso o que os autores querem mostrar em relação ao pequeno Hellboy também, sabendo nós o preço que pagará pela humanidade que, em todo o caso, ele parece conquistar desde logo nesta pequena fuga?

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