Daí que este não seja um exercício a ser
repetido muitas vezes.
Depois de termos tecido alguns comentários
sobre a nova direcção editorial da Marvel, cuja promessa rapidamente se gorou
pelos mecanismos expectáveis e pelas economias normalizadoras de registos
narrativos e visuais da companhia, ainda assim havia uma pequena esperança de
que a nova linha de “graphic novels” pudesse significar um alento a este
universo de referências. A associação do nome de Warren Ellis ainda estimulara
mais essa expectativa, mas Avengers, Endless Wartime acaba por ser mais uma
caixinha de boas intenções do que de um texto bem desenvolvido.
Parte destas expectativas estarão relacionadas com a colecção “Graphic Novel”, que nos havia chegado às mãos através das traduções da Abril durante os anos 1980, com títulos que ficaram na memória dos seus leitores, até porque, existindo menos material e menos acesso ao mercado internacional, tudo o que surgia com um grão de diferença no interior desta economia dos super-heróis parecia digno de atenção. Se alguns desses títulos sobreviveram em todo o seu conjunto, desde A Morte do Capitão Marvel, o Demolidor de Miller e Sienkiewicz, o volume de Alien Legion, outras recordam-se mais pelo impacto visual, como o Homem-Aranha de Wrightson, o Drácula de Jon J. Muth, e outras ainda por serem material em relação ao qual não estaríamos, na altura, preparados, e deixaram mossa (Void Indigo, de Steve Gerber e Val Meyerik). A partir desse primeiro (para nós) gesto, sempre que surgiriam formatos especiais (“prestige”, “graphic novel”, algumas mini-séries, etc.), estava associado a um conjunto de constituintes permanentes: histórias isoladas da “continuidade”, pelo menos de um modo suficiente para serem apreciadas por um público maior que o habitual, histórias mais desenvolvidas por terem mais espaço para isso, explorações mais espectaculares ou complexas por elementos usualmente fora da economia mensal, e, acima de tudo, um tratamento gráfico que a tornava desde logo especial, digna de nota (mesmo que tenha havido um número de coisas feias). Ora, todas essas expectativas verificaram-se com este título. Però…
Para aqueles que têm acompanhado os
títulos com os Vingadores de Jonathan Hickman (Avengers e New Avengers),
mesmo no interior do crossover Infinity, saberão que tipo de estruturas
narrativas altamente contemporâneas, e até experimentais (bebendo de fórmulas
de jogos electrónicos, formatos ficcionais televisivos, a cultura youtube, etc.), podem ser empregues no
seio do mainstream de super-heróis
para, em primeiro lugar, gerir um número impressionante de personagens que
poderiam assumir o protagonismo mas se tornam como que elementos de uma
verdadeira equipa (e não uma pirâmide móvel, com um líder isolado e os “especialistas”
em cada um dos seus papéis) e, em segundo lugar, conseguir criar uma dinâmica
fluidez entre elas, fazendo ainda assim emergir a noção de uma narrativa coesa,
com propósito e um “arco” definido e legível. Endless Wartime centra-se naqueles Vingadores afectos aos filmes
(de modo a compreender tratar-se de um projecto que pretende chegar antes aos
leitores casuais ou não-leitores conquistados pelos filmes), a saber, Capitão
América, Homem de Ferro, Thor, Hulk, Viúva Negra e Hawkeye, numa confusa mescla
entre os desenvolvimentos que estas personagens têm sofrido no “universo
normal” (616), as intervenções estilísticas e narrativas dos Ultimates/Marvel
Now, e factores dos filmes. Wolverine junta-se a eles, pois Wolverine é sempre
o factor “edgy” que tem de entrar para subir a parada da violência, da entrega
quase gratuita mas “necessária” a essa violência, da história que estiver a ser
desenvolvida. E ainda temos a Capitã Marvel Carol Denvers, que tem sido
impelida pela companhia de modo evidente, e poderá vir a ser mais uma das
personagens a chegar aos ecrãs no futuro. Ou seja, desde logo há aqui uma clara
vontade de gerir o melhor possível as personagens enquanto propriedades
intelectuais transmediáticas desta companhia integrada (não é apenas a Marvel,
mas a Disney).
Essas estruturas não se conseguem
desenvolver aqui, contudo. Ellis até parece “forçado” a trabalhar com estas
personagens e tenta encaixá-las em fórmulas habituais da sua escrita. Ellis
quer que algumas das personagens tomem conta do “cínico” que costuma ser o seu
protagonista (Elijah Snow, Spider Jerusalem, Michael “Desolation” Jones, etc.),
mas parece não estar seguro qual das personagens aqui deve assumir esse papel… então
vai apimentando os diálogos de todos com “bocas”, de uma forma que as torna todas
cheias de fastio, arrastando-se na relação que têm de manter com os demais… Em
vez de criar geometrias interessantes entre estas personagens, Ellis acaba por
construir apenas barragens seguidas de diálogos cínicos, de respostas e
ripostares, que acabam por ser demasiado vincados para se tornarem factores de
moldagem das personagens (de resto, com um historial mais ou menos conciso que
poderia ter sido usado mais elegantemente). Quase todos parecem não ter elos de
amizade entre eles, e até têm atitudes algo “desconectadas” com os outros
membros, como se fosse uma aglomeração de solitários.
Não é a primeira vez que Ellis tem estes “brinquedos”
na mão. Para além da oportunidade que teve em citar pastiches dos vários Vingadores
ao longo dos “arcos narrativos” de The
Planetary, Ellis trabalhou em títulos com Wolverine, escreveu a trilogia Ultimate Galactus, que envolve todos
estes personagens (versão Ultimate), escreveu uma das mais celebradas e hard sci-fi histórias do Homem de Ferro
(da continuidade), escreveu Ultimate
Human, com essa personagem e o Hulk… e até havia criado um curioso
exercício “meta” com Ruins, uma
espécie de Marvels ao contrário. Em Endless Wartime, porém, Ellis não explora nenhum dos seus pontos fortes. Ou
melhor, acaba nos seus pontos fracos: não ser capaz de criar uma história em
que os heróis se têm de manter “limpos” (pelo menos o Capitão América, por
demais jogado “contra” o papel de Wolverine). É como se se tivesse lavado o
cinismo e o humor negro e tivesse ficado algo sem muita personalidade, quase
mecânico. Além do mais, se uma das coisas que pode funcionar nestas personagens
é a forma como teriam de trabalhar juntos – e sendo uma equipa líquida em termos
de membros, todos estão envolvidos porque o desejam, porque sabem trabalhar
para isso, porque têm como fito algo comum -, o tratamento de Ellis
transformando-os em uma mão-cheia de pessoas que parece serem forçadas a
colaborar não se coaduna com a “marca”. Até a entrada de Bruce Banner/Hulk
parece mais de um funcionário a picar o ponto do que um momento alto da
narrativa. Que essa fosse uma estratégia perfeita em The Planetary, ou os “seus” Wildcats,
ou outra equipa, é uma coisa, mas a equipa mais “clean” dos super-heróis, é
simplesmente não fazer o trabalho de casa.
A menos que seja um projecto de Ellis: o
minar “por dentro” estas personagens. Mas isso não faria sentido, nem
resultaria, pois a história em si, os eventos e gestão deles, não chega sequer
a ser significativo.
O ponto de partida da história é uma boa
equação entre o cliché e a ideia original. O cliché é que “fantasmas do
passado” de Thor e Capitão América os revisitam na contemporaneidade, mas isso
poderia até ser bem gerido (como o é, por exemplo, no recentíssimo Captain America: Living Legend, de Andy Diggle
e Adi Granov): em primeiro lugar, faz-se uma aliança em retrospectiva dos
caminhos dessas duas personagens durante a 2ª Grande Guerra, que poderiam vir a
ser explorados de uma forma curiosa e produtiva; depois ancora as mesmas
personagens na história quer real quer da fictícia que lhes pertence mas é
igualmente significativa para as personagens e os leitores que os acompanham
desde as suas origens (1941 e 1962, respectivamente). No entanto, o cruzamento
logo acaba por cair em clichés ainda mais ridículos: os inimigos acabam por ser
demónios da mitologia nórdica transformados em mísseis nazis. Sim, o combate
destes Vingadores será contra, basicamente, dragões-drones argardianos nazis.
Isso bastaria para fazer ruir o edifício, mas os leitores de Ellis poderiam
ainda assim esperar que a alucinação techno-mágica ou oculto-tecnológica
poderia ser escavada até um ponto profundo (recordemo-nos dos conceitos loucos
em Global Frequency, City of Silence, Supergods…), como costuma ser pelo escritor inglês… mas não é. Aliás,
a trama da origem destas criaturas, a sua continuidade na era contemporânea, e
depois a sua resolução (através da violência massiva, que surge como
“inevitável”, o que abre a grandes possibilidades de leituras ideológicas) é
desordenada, lacunar (quem é que Wolverine encontrou, afinal?), e, no fundo,
algo ridícula.
É verdade que Ellis tenta evitar aquele
mecanismo óbvio que seria colocar todo o destino do planeta Terra em perigo.
Não se trata aqui de uma invasão alienígena (é-o apenas quase) nem de uma ameaça de um conquistador global (é-o apenas
quase), mas um inimigo localizado. Existe também um outro equilíbrio entre as relações
intricadas com pequenos elementos do universo Marvel para entreter os nerds atentos, e coisas mais ridículas
como a menção de um conflito num pequeno estado fictício do Médio Oriente,
entre o Irão e o Afeganistão, a Slorénia, com a capital Tblinka. Não percebemos
sequer se isto é para ser sério, se serve para “associar-se a temas reais” ou é
apenas um disparate pegado. Seja como for, se esta se trata de uma graphic novel auto-contida de mais de
150 páginas, um one-shot de preço
elevado e altos valores de produção (física) e de publicidade, esperar-se-ia,
lá está, uma espectacularidade desmesurada, que se verifica, afinal de contas,
quase todos os meses em todos os pequenos comic books que a Marvel
produz. Nada há de negativo numa exploração consciente e dominada dos
elementos e convenções tipificados que constituem um género altamente estilizado
como este, e pode-se mesmo atingir a perfeição no seio desse género. Já havíamos
aventado sobre este aspecto a propósito de algumas séries, e mais recentemente com
Smoke/Ashes. Todavia, este caso é uma
prova acabada que o nome do autor não é de facto suficiente para assegurar uma
conquista nessa direcção.
Talvez se tivesse desejado uma história
menos densa e negra, que pudesse servir o seu propósito de conquistar novos
públicos, com uma história “leve”, tal qual como nos filmes, de certa forma. A
mescla de vários desejos é muito nítida e o resultado é medíocre, infelizmente.
Porque Ellis tenta enfiar, mais uma vez à força, uma “relevância social” destas
personagens no “nosso” mundo, mas de uma maneira duplamente falha: em termos
estruturais, através de intervenções de um narrador externo, com legendas
esparsas ao longo da narrativa, mas que apenas desequilibram a fluidez geral, e
não dialogam directamente com o resto das opções; em termos sociais, porque o
mundo seria deveras diferente se existissem pessoas destas nos destinos das
nações, e melhores projectos de banda desenhada exploraram essa via… Ellis
atira umas quantas “notas” dessas ideias e espera que colem à narrativa. Nem
sequer um determinado vigor que se esperaria do género está presente (como o
havia explorado em Nextwave, por
exemplo).
E finalmente temos a questão do aspecto
visual do livro. Tendo em conta a forma como era vendido, esperava-se que se
escolhesse um peso maior para a prestação artística. A arte de Mike McKone é,
pura e simplesmente, má. Não péssima,
não totalmente feia, mas incompetente
para o seu propósito, ilegível na sua relação narrativa, desajeitada em muitos
pormenores, e, muito francamente, desgraciosa. Na maior parte dos casos, as
personagens são desprovidas de emoção, e isso é notório da forma como o artista
desenha os rostos. E há também uma falta de coerência interna, como se não
fossem as mesmas pessoas de vinheta para vinheta, com opções toscas em termos
de rostos ou mesmo posições dos corpos (ou, no caso que mostramos, uma espécie
de repetição de rostos no Capitão América e o Thor). Mesmo algumas cenas de
grande acção não têm dinamismo, ou então a ausência de cenário, objectos ou
mesmo linhas de movimento parecem enquadrar as personagens num líquido espesso
que as suspende. A opção de tornar todas as composições de acção em estruturas
oblíquas por McKone pode dar um efeito de dinamismo, mas é apenas superficial,
e é até mesmo uma “espectacularidade” que confunde a leitura (um pouco como os
movimentos de câmara nos filmes de super-heróis, que parecem uma montanha-russa
mas em nada ajudam a perceber os movimentos, que ganhariam em imitar antes
bailados ou natação sincronizada, à la
Power Rangers). E se bem que as personagens femininas, a Viúva Negra e a
Capitã Marvel, não sejam abusivamente representadas a partir de uma perspectiva
sexualizada (ajuda o facto de que os uniformes delas cobrem o corpo todo), há aquela
vinheta de Natasha Romanova que põe tudo em causa, e sublinha a imaginação
fantasiosa sexualizada dos artistas e leitores usualmente associados a este
género (posições que revelem a um mesmo olhar o peito generoso e
anti-gravitacional e o traseiro afro-brasileiro recauchutado não constituem o
melhor exercício de yoga)…
O tratamento das artes-finais e das cores
digitais é também particularmente medíocre, tornando todo o projecto numa
espécie de camada empastelada, sem brilho, sem vida. Tendo em conta a existência
de um Gary Erskine, um Leinil Yu, um Jae Lee, um John Cassaday, um Alex Maleev,
um Andy Granov (para apenas mencionar os mais competentes e interessantes artistas
deste género a trabalhar agora na Marvel), ou até os portugueses Jorge Coelho e
Filipe Andrade, que insuflam uma frescura e dinamismo aos títulos em que
trabalham (mas menos interessantes pelas direcções narrativas que seguem),
poder-se-ia imaginar uma alternativa mais brilhante e acabada para estas
“graphic novels”.
Enfim, talvez seja uma parte nostálgica
que gostaria de facto de encontrar material deste quadro de referências que
fosse digno de partilha para além do público habitual, mas é possível que isto
apenas seja um dos sintomas que confirma a mediocridade geral destas produções,
e explica porque não há necessidade de visitar o mainstream, quando existem tantas alternativas…
Nota final: imagens retiradas de ficheiros digitais. Agradecimentos a Hugo Almeida pela correcção de uma informação que colocámos na versão original, já corrigida: faláramos de um pastiche dos Vingadores em The Authority, mas isso era do Mark Millar e Frank Quitely... Nerd alert indeed.
Caro Pedro,
ResponderEliminarAcerca da tua última frase nesta entrada, gostaria de recuperar as palavras do Harvey Pekar (sempre presente :-) relativamente ao que ele pensava do Frank Miller como escritor. Citando livremente, Harvey Pekar reconhecia que gostava de comer "junk food", mas que em nenhum momento em que o fazia pretendia que o que comia fosse algo mais que "junk food". Não há alternativa à comida de plástico para as situações em que o que procuramos é realmente comida de plástico. Com o avançar da idade devemos é tomar cuidados com a saúde e recorrermos a essa forma de alimentação com menos frequência :-).
Também não tens que te desculpar (estou a brincar, tu sabes ;-) por de vez em quando servires um barbecue no teu restaurante, preferencialmente ao dia da semana mais adequado, o domingo eheheheh...
(sempre tive grande dificuldade em perceber que méritos terá o Warren Ellis para merecer uma admiração tão grande por parte da crítica, não querendo com isto desprezar a obra ou a leitura que dediquei à mesma)
Abraços,
José
Sem dúvida. E já disse noutras ocasiões que não há problema em ter uma dieta diversificada. Mas quando como uma bifana encharcada em mostarda Savora (preferível a Mac-hambúrgueres, que não como), quero fazê-lo conscientemente e com prazer, mas também perceber que é uma boa bifana. Mas chateio-me quando penso que vou comer carne tenra, e apanho um daqueles bifalhaços nervosos, que não se conseguem cortar à dentada e inevitavelmente acabam por ser engolidos quase inteiros, dificultando a mastigação, irritando o humor e estragando mesmo essa simples refeição. É o que sucede com "Endless Wartime", e não com outros títulos de mainstream bem feitos, divertidos, leves, saborosos, nessa metáfora.
ResponderEliminarConsidero o Ellis um excelente escritor de mainstream, e tem de facto um currículo forte (menos a parte visual, que os colaboradores são muitas vezes beras, com as excepções do Quitely, Cassady, Chris Spouse, Speed McNeil e pouco mais); mas de quando em vez, e aqui seguramente, "he's going through the motions".
Uma bifana de roulote? Plena de microbios? Antes o Mac.
ResponderEliminarUma bifana de roulote? Plena de microbios? Antes o Mac.
ResponderEliminarCaro anónimo,
ResponderEliminarO Bourdain concordaria comigo...