16 de novembro de 2013

Avengers, Endless Wartime. Warren Ellis e Mike McKone (Marvel)

Gostaríamos de experimentar um exercício. Se neste espaço privilegiamos aqueles textos que de uma forma ou outra apreciámos ou nos estimularam a escrever, preferindo passar em silêncio aquelas obras que, de medíocres, triviais, ou cujos elementos a discutir acabam por ser exíguos, a mescla de expectativa e desilusão com este projecto leva-nos a querer dar a ver o que seria possível num texto negativo. Ao contrário da sabedoria popular, que por vezes se engana, a tarefa da crítica não é “falar mal”, nem “botar abaixo”, mas antes tecer um discurso que visa, através de argumentos, uma perspectiva qualquer ancorada e que pretende, enquanto fito último, um diálogo, uma discussão que contribua para a comunidade final dos seres humanos, a saber, a comunidade estética. Se o que faz mover um crítico em relação a um determinado texto é totalmente negativo, ou por outras palavras, se o crítico não gosta de um texto, porquê deixar-se abandonar no doloroso trajecto de tornar palpável essa bílis, que apenas por ser remexida se torna mais biliosa ainda e por isso de baixo interesse em ser interessante para o público?

Daí que este não seja um exercício a ser repetido muitas vezes.

Depois de termos tecido alguns comentários sobre a nova direcção editorial da Marvel, cuja promessa rapidamente se gorou pelos mecanismos expectáveis e pelas economias normalizadoras de registos narrativos e visuais da companhia, ainda assim havia uma pequena esperança de que a nova linha de “graphic novels” pudesse significar um alento a este universo de referências. A associação do nome de Warren Ellis ainda estimulara mais essa expectativa, mas Avengers, Endless Wartime acaba por ser mais uma caixinha de boas intenções do que de um texto bem desenvolvido.

Parte destas expectativas estarão relacionadas com a colecção “Graphic Novel”, que nos havia chegado às mãos através das traduções da Abril durante os anos 1980, com títulos que ficaram na memória dos seus leitores, até porque, existindo menos material e menos acesso ao mercado internacional, tudo o que surgia com um grão de diferença no interior desta economia dos super-heróis parecia digno de atenção. Se alguns desses títulos sobreviveram em todo o seu conjunto, desde A Morte do Capitão Marvel, o Demolidor de Miller e Sienkiewicz, o volume de Alien Legion, outras recordam-se mais pelo impacto visual, como o Homem-Aranha de Wrightson, o Drácula de Jon J. Muth, e outras ainda por serem material em relação ao qual não estaríamos, na altura, preparados, e deixaram mossa (Void Indigo, de  Steve Gerber e Val Meyerik). A partir desse primeiro (para nós) gesto, sempre que surgiriam formatos especiais (“prestige”, “graphic novel”, algumas mini-séries, etc.), estava associado a um conjunto de constituintes permanentes: histórias isoladas da “continuidade”, pelo menos de um modo suficiente para serem apreciadas por um público maior que o habitual, histórias mais desenvolvidas por terem mais espaço para isso, explorações mais espectaculares ou complexas por elementos usualmente fora da economia mensal, e, acima de tudo, um tratamento gráfico que a tornava desde logo especial, digna de nota (mesmo que tenha havido um número de coisas feias). Ora, todas essas expectativas verificaram-se com este título. Però

Para aqueles que têm acompanhado os títulos com os Vingadores de Jonathan Hickman (Avengers e New Avengers), mesmo no interior do crossover Infinity, saberão que tipo de estruturas narrativas altamente contemporâneas, e até experimentais (bebendo de fórmulas de jogos electrónicos, formatos ficcionais televisivos, a cultura youtube, etc.), podem ser empregues no seio do mainstream de super-heróis para, em primeiro lugar, gerir um número impressionante de personagens que poderiam assumir o protagonismo mas se tornam como que elementos de uma verdadeira equipa (e não uma pirâmide móvel, com um líder isolado e os “especialistas” em cada um dos seus papéis) e, em segundo lugar, conseguir criar uma dinâmica fluidez entre elas, fazendo ainda assim emergir a noção de uma narrativa coesa, com propósito e um “arco” definido e legível. Endless Wartime centra-se naqueles Vingadores afectos aos filmes (de modo a compreender tratar-se de um projecto que pretende chegar antes aos leitores casuais ou não-leitores conquistados pelos filmes), a saber, Capitão América, Homem de Ferro, Thor, Hulk, Viúva Negra e Hawkeye, numa confusa mescla entre os desenvolvimentos que estas personagens têm sofrido no “universo normal” (616), as intervenções estilísticas e narrativas dos Ultimates/Marvel Now, e factores dos filmes. Wolverine junta-se a eles, pois Wolverine é sempre o factor “edgy” que tem de entrar para subir a parada da violência, da entrega quase gratuita mas “necessária” a essa violência, da história que estiver a ser desenvolvida. E ainda temos a Capitã Marvel Carol Denvers, que tem sido impelida pela companhia de modo evidente, e poderá vir a ser mais uma das personagens a chegar aos ecrãs no futuro. Ou seja, desde logo há aqui uma clara vontade de gerir o melhor possível as personagens enquanto propriedades intelectuais transmediáticas desta companhia integrada (não é apenas a Marvel, mas a Disney).

Essas estruturas não se conseguem desenvolver aqui, contudo. Ellis até parece “forçado” a trabalhar com estas personagens e tenta encaixá-las em fórmulas habituais da sua escrita. Ellis quer que algumas das personagens tomem conta do “cínico” que costuma ser o seu protagonista (Elijah Snow, Spider Jerusalem, Michael “Desolation” Jones, etc.), mas parece não estar seguro qual das personagens aqui deve assumir esse papel… então vai apimentando os diálogos de todos com “bocas”, de uma forma que as torna todas cheias de fastio, arrastando-se na relação que têm de manter com os demais… Em vez de criar geometrias interessantes entre estas personagens, Ellis acaba por construir apenas barragens seguidas de diálogos cínicos, de respostas e ripostares, que acabam por ser demasiado vincados para se tornarem factores de moldagem das personagens (de resto, com um historial mais ou menos conciso que poderia ter sido usado mais elegantemente). Quase todos parecem não ter elos de amizade entre eles, e até têm atitudes algo “desconectadas” com os outros membros, como se fosse uma aglomeração de solitários.


Não é a primeira vez que Ellis tem estes “brinquedos” na mão. Para além da oportunidade que teve em citar pastiches dos vários Vingadores ao longo dos “arcos narrativos” de The Planetary, Ellis trabalhou em títulos com Wolverine, escreveu a trilogia Ultimate Galactus, que envolve todos estes personagens (versão Ultimate), escreveu uma das mais celebradas e hard sci-fi histórias do Homem de Ferro (da continuidade), escreveu Ultimate Human, com essa personagem e o Hulk… e até havia criado um curioso exercício “meta” com Ruins, uma espécie de Marvels ao contrário. Em Endless Wartime, porém, Ellis não explora nenhum dos seus pontos fortes. Ou melhor, acaba nos seus pontos fracos: não ser capaz de criar uma história em que os heróis se têm de manter “limpos” (pelo menos o Capitão América, por demais jogado “contra” o papel de Wolverine). É como se se tivesse lavado o cinismo e o humor negro e tivesse ficado algo sem muita personalidade, quase mecânico. Além do mais, se uma das coisas que pode funcionar nestas personagens é a forma como teriam de trabalhar juntos – e sendo uma equipa líquida em termos de membros, todos estão envolvidos porque o desejam, porque sabem trabalhar para isso, porque têm como fito algo comum -, o tratamento de Ellis transformando-os em uma mão-cheia de pessoas que parece serem forçadas a colaborar não se coaduna com a “marca”. Até a entrada de Bruce Banner/Hulk parece mais de um funcionário a picar o ponto do que um momento alto da narrativa. Que essa fosse uma estratégia perfeita em The Planetary, ou os “seus” Wildcats, ou outra equipa, é uma coisa, mas a equipa mais “clean” dos super-heróis, é simplesmente não fazer o trabalho de casa.

A menos que seja um projecto de Ellis: o minar “por dentro” estas personagens. Mas isso não faria sentido, nem resultaria, pois a história em si, os eventos e gestão deles, não chega sequer a ser significativo.

O ponto de partida da história é uma boa equação entre o cliché e a ideia original. O cliché é que “fantasmas do passado” de Thor e Capitão América os revisitam na contemporaneidade, mas isso poderia até ser bem gerido (como o é, por exemplo, no recentíssimo Captain America: Living Legend, de Andy Diggle e Adi Granov): em primeiro lugar, faz-se uma aliança em retrospectiva dos caminhos dessas duas personagens durante a 2ª Grande Guerra, que poderiam vir a ser explorados de uma forma curiosa e produtiva; depois ancora as mesmas personagens na história quer real quer da fictícia que lhes pertence mas é igualmente significativa para as personagens e os leitores que os acompanham desde as suas origens (1941 e 1962, respectivamente). No entanto, o cruzamento logo acaba por cair em clichés ainda mais ridículos: os inimigos acabam por ser demónios da mitologia nórdica transformados em mísseis nazis. Sim, o combate destes Vingadores será contra, basicamente, dragões-drones argardianos nazis. Isso bastaria para fazer ruir o edifício, mas os leitores de Ellis poderiam ainda assim esperar que a alucinação techno-mágica ou oculto-tecnológica poderia ser escavada até um ponto profundo (recordemo-nos dos conceitos loucos em Global Frequency, City of Silence, Supergods…), como costuma ser pelo escritor inglês… mas não é. Aliás, a trama da origem destas criaturas, a sua continuidade na era contemporânea, e depois a sua resolução (através da violência massiva, que surge como “inevitável”, o que abre a grandes possibilidades de leituras ideológicas) é desordenada, lacunar (quem é que Wolverine encontrou, afinal?), e, no fundo, algo ridícula.

É verdade que Ellis tenta evitar aquele mecanismo óbvio que seria colocar todo o destino do planeta Terra em perigo. Não se trata aqui de uma invasão alienígena (é-o apenas quase) nem de uma ameaça de um conquistador global (é-o apenas quase), mas um inimigo localizado. Existe também um outro equilíbrio entre as relações intricadas com pequenos elementos do universo Marvel para entreter os nerds atentos, e coisas mais ridículas como a menção de um conflito num pequeno estado fictício do Médio Oriente, entre o Irão e o Afeganistão, a Slorénia, com a capital Tblinka. Não percebemos sequer se isto é para ser sério, se serve para “associar-se a temas reais” ou é apenas um disparate pegado. Seja como for, se esta se trata de uma graphic novel auto-contida de mais de 150 páginas, um one-shot de preço elevado e altos valores de produção (física) e de publicidade, esperar-se-ia, lá está, uma espectacularidade desmesurada, que se verifica, afinal de contas, quase todos os meses em todos os pequenos comic books que a Marvel produz. Nada há de negativo numa exploração consciente e dominada dos elementos e convenções tipificados que constituem um género altamente estilizado como este, e pode-se mesmo atingir a perfeição no seio desse género. Já havíamos aventado sobre este aspecto a propósito de algumas séries, e mais recentemente com Smoke/Ashes. Todavia, este caso é uma prova acabada que o nome do autor não é de facto suficiente para assegurar uma conquista nessa direcção.

Talvez se tivesse desejado uma história menos densa e negra, que pudesse servir o seu propósito de conquistar novos públicos, com uma história “leve”, tal qual como nos filmes, de certa forma. A mescla de vários desejos é muito nítida e o resultado é medíocre, infelizmente. Porque Ellis tenta enfiar, mais uma vez à força, uma “relevância social” destas personagens no “nosso” mundo, mas de uma maneira duplamente falha: em termos estruturais, através de intervenções de um narrador externo, com legendas esparsas ao longo da narrativa, mas que apenas desequilibram a fluidez geral, e não dialogam directamente com o resto das opções; em termos sociais, porque o mundo seria deveras diferente se existissem pessoas destas nos destinos das nações, e melhores projectos de banda desenhada exploraram essa via… Ellis atira umas quantas “notas” dessas ideias e espera que colem à narrativa. Nem sequer um determinado vigor que se esperaria do género está presente (como o havia explorado em Nextwave, por exemplo).

E finalmente temos a questão do aspecto visual do livro. Tendo em conta a forma como era vendido, esperava-se que se escolhesse um peso maior para a prestação artística. A arte de Mike McKone é, pura e simplesmente, má. Não péssima, não totalmente feia, mas incompetente para o seu propósito, ilegível na sua relação narrativa, desajeitada em muitos pormenores, e, muito francamente, desgraciosa. Na maior parte dos casos, as personagens são desprovidas de emoção, e isso é notório da forma como o artista desenha os rostos. E há também uma falta de coerência interna, como se não fossem as mesmas pessoas de vinheta para vinheta, com opções toscas em termos de rostos ou mesmo posições dos corpos (ou, no caso que mostramos, uma espécie de repetição de rostos no Capitão América e o Thor). Mesmo algumas cenas de grande acção não têm dinamismo, ou então a ausência de cenário, objectos ou mesmo linhas de movimento parecem enquadrar as personagens num líquido espesso que as suspende. A opção de tornar todas as composições de acção em estruturas oblíquas por McKone pode dar um efeito de dinamismo, mas é apenas superficial, e é até mesmo uma “espectacularidade” que confunde a leitura (um pouco como os movimentos de câmara nos filmes de super-heróis, que parecem uma montanha-russa mas em nada ajudam a perceber os movimentos, que ganhariam em imitar antes bailados ou natação sincronizada, à la Power Rangers). E se bem que as personagens femininas, a Viúva Negra e a Capitã Marvel, não sejam abusivamente representadas a partir de uma perspectiva sexualizada (ajuda o facto de que os uniformes delas cobrem o corpo todo), há aquela vinheta de Natasha Romanova que põe tudo em causa, e sublinha a imaginação fantasiosa sexualizada dos artistas e leitores usualmente associados a este género (posições que revelem a um mesmo olhar o peito generoso e anti-gravitacional e o traseiro afro-brasileiro recauchutado não constituem o melhor exercício de yoga)…

O tratamento das artes-finais e das cores digitais é também particularmente medíocre, tornando todo o projecto numa espécie de camada empastelada, sem brilho, sem vida. Tendo em conta a existência de um Gary Erskine, um Leinil Yu, um Jae Lee, um John Cassaday, um Alex Maleev, um Andy Granov (para apenas mencionar os mais competentes e interessantes artistas deste género a trabalhar agora na Marvel), ou até os portugueses Jorge Coelho e Filipe Andrade, que insuflam uma frescura e dinamismo aos títulos em que trabalham (mas menos interessantes pelas direcções narrativas que seguem), poder-se-ia imaginar uma alternativa mais brilhante e acabada para estas “graphic novels”.

Enfim, talvez seja uma parte nostálgica que gostaria de facto de encontrar material deste quadro de referências que fosse digno de partilha para além do público habitual, mas é possível que isto apenas seja um dos sintomas que confirma a mediocridade geral destas produções, e explica porque não há necessidade de visitar o mainstream, quando existem tantas alternativas…
Nota final: imagens retiradas de ficheiros digitais. Agradecimentos a Hugo Almeida pela correcção de uma informação que colocámos na versão original, já corrigida: faláramos de um pastiche dos Vingadores em The Authority, mas isso era do Mark Millar e Frank Quitely... Nerd alert indeed.

5 comentários:

  1. José Sá8:20 da tarde

    Caro Pedro,
    Acerca da tua última frase nesta entrada, gostaria de recuperar as palavras do Harvey Pekar (sempre presente :-) relativamente ao que ele pensava do Frank Miller como escritor. Citando livremente, Harvey Pekar reconhecia que gostava de comer "junk food", mas que em nenhum momento em que o fazia pretendia que o que comia fosse algo mais que "junk food". Não há alternativa à comida de plástico para as situações em que o que procuramos é realmente comida de plástico. Com o avançar da idade devemos é tomar cuidados com a saúde e recorrermos a essa forma de alimentação com menos frequência :-).
    Também não tens que te desculpar (estou a brincar, tu sabes ;-) por de vez em quando servires um barbecue no teu restaurante, preferencialmente ao dia da semana mais adequado, o domingo eheheheh...
    (sempre tive grande dificuldade em perceber que méritos terá o Warren Ellis para merecer uma admiração tão grande por parte da crítica, não querendo com isto desprezar a obra ou a leitura que dediquei à mesma)
    Abraços,
    José

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  2. Sem dúvida. E já disse noutras ocasiões que não há problema em ter uma dieta diversificada. Mas quando como uma bifana encharcada em mostarda Savora (preferível a Mac-hambúrgueres, que não como), quero fazê-lo conscientemente e com prazer, mas também perceber que é uma boa bifana. Mas chateio-me quando penso que vou comer carne tenra, e apanho um daqueles bifalhaços nervosos, que não se conseguem cortar à dentada e inevitavelmente acabam por ser engolidos quase inteiros, dificultando a mastigação, irritando o humor e estragando mesmo essa simples refeição. É o que sucede com "Endless Wartime", e não com outros títulos de mainstream bem feitos, divertidos, leves, saborosos, nessa metáfora.
    Considero o Ellis um excelente escritor de mainstream, e tem de facto um currículo forte (menos a parte visual, que os colaboradores são muitas vezes beras, com as excepções do Quitely, Cassady, Chris Spouse, Speed McNeil e pouco mais); mas de quando em vez, e aqui seguramente, "he's going through the motions".

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  3. Uma bifana de roulote? Plena de microbios? Antes o Mac.

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  4. Uma bifana de roulote? Plena de microbios? Antes o Mac.

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  5. Caro anónimo,
    O Bourdain concordaria comigo...

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