O trabalho de Francisco Sousa Lobo, no campo da banda desenhada, tem sido esparso e dilatado no tempo, mas não é de forma nenhuma negligenciável, sendo alguém que vai ocupando o seu espaço de um modo tranquilo e certeiro, com uma produção pouco dada à espectacularidade e aos géneros mais usuais. Bem pelo contrário, é ela antes inclinada para com formas de interrogação interna da própria banda desenhada, em primeira instância quanto à sua forma narrativa, já que visualmente Sousa Lobo prefere manter algum grau de legibilidade, mas também no modo dela responder aos desafios contemporâneos de diálogo com outras áreas artísticas, sobretudo aquelas informadas pelas artes visuais, experimentais, galerísticas ou museológicas. Enfim, questões matizadas por pesquisas intelectuais que nem sempre têm o seu espaço neste território.
Em termos tópicos, The Dying Draughtsman/O desenhador defunto (a obra é bilingue, mas estando o português “em tradução” no rodapé, tomaremos o inglês como a língua original) centrar-se-á precisamente nesse diálogo, e no espaço de tensão existente entre ambas as áreas. Francisco Koppens é um funcionário de um escritório de arquitectura, antigo projectista que agora se vê obrigado a trabalhar com programas digitais com os quais não se dá muito bem, numa Londres aparentemente inóspita a este imigrante português. É possível que haja projecções auto-ficcionais da parte do autor, mas não sendo isso nem explícito nem confirmável através de outras informações textuais, é questão de somenos (no entanto, a bem da correcção, leia-se a breve correspondência do autor com Hugo Canoilas, no fim do volume, para abrir pistas nesse sentido). Se temos alguma oportunidade para ir compreendendo algumas das crises da vida pessoal e quotidiana deste Francisco - o trabalho que corre cada vez pior, a distante relação com a mulher, a pressão da herança católica, inescapável e doentia -, é a sua posição enquanto corpo face à arte que ocupa o lugar central do livro.
Francisco Koppens parece dedicar a sua vida mais íntima, e os momentos livres, a uma obra de banda desenhada, que mescla ficção científica e social (uma sociedade no ano 3000 em que uma ditadura de mulheres terá quase exterminado os homens e mantém um poder fascista sobre a terra), possível forma de expiação dos seus pecados. Nesse sentido, Koppens tem alguns laivos de obsessivo similares à vida e obra de Henry Darger, se bem que esta personagem de Sousa Lobo aparente ainda algum grau de integração e comunicação com o mundo, pelo menos simulando algum aspecto de “normalidade”. No entanto, jamais temos acesso a essa obra propriamente dita: com a excepção de algumas vinhetas pela mesma mão do autor/narrador, o que nos leva a pensar ser somente uma projecção mental de Koppens. As pranchas desenhadas por este (uma banda desenhada dentro de uma banda desenhada) aparecem sempre com estruturas regulares mas de vinhetas ora despidas ora totalmente cobertas a negro, com linhas sobrepostas e riscadas. É possível (existem pistas nesse sentido) que ele tenha construído algumas pranchas de acordo com os métodos usuais (textos, imagens), mas depois as tenha coberto totalmente de tinta (e que poderíamos irmanar a muitos gestos artísticos, de Sol LeWitt a Jochen Gerner), para depois tentar compreender o que os uniria e separaria.
É praticamente impossível ter a certeza se essa obra, a de Francisco Koppens, é uma resposta directa à sua educação católica, à sua relação minguante com a mulher, ao problemático e crescente sentimento de incompetência e inacção com o emprego, ou ainda às vagabundagens a que se abandona no território galerístico desta Londres. Vezes (quase) sem conta, vemo-lo a franquear as portas de galerias de primeira linha para perscrutar as obras, para ler os manifestos e documentos de intenção, para interrogar as formas, os métodos e os posicionamentos estéticos e políticos, para se enluvar, como puder, com os princípios filosóficos que parecem estar a ser esgrimidos por essas obras de arte. Menos do que pensar a arte contemporânea como um espaço de “impasses e imposturas” (para citar um título de livro de Pierre Sterckx, que à sua maneira modernista tenta separar o que ele julga ser trigo do joio), e muito menos do que uma oportunidade de embustes sucessivos, tem de se compreendê-lo como algo aberto, que nos convida a entrar e a colocar perguntas, essas sim, sucessivas, intransigentes, imparáveis, até que se comece a esboçar uma possibilidade de resposta em nós mesmos, em vez de esperar que surja uma fórmula prêt-a-citer para todas as ocasiões. O mundo da arte é tratado por Lobo com respeito, conhecimento e inteligência, e não surge como um apanhado de anedotas, como tantas vezes surge (muitas vezes enquadrado na ignorância ou incompreensão) nas obras de banda desenhada, numa espécie de reacção conservadora.
Francisco Koppens entra uma e outra vez em espaços onde peças de arte contemporânea lhe são apresentadas, sobretudo carregadas de contornos conceptuais. Se as pinturas monocromáticas irão despertar nele uma (depois explicada) reacção com memórias de infância (em muitos pontos, poderá recordar-nos Binky Brown de Justin Green, mas o elo causa-consequência é algo primário nesta história), nós testemunhamos uma crescente interpelação na sua vida, que vai surtindo efeitos em todo o seu entorno. A reacção principal terá a ver, talvez, com uma verdade. Talvez mesmo a verdade. Não é que exista nenhum segredo oculto na trama de The Dying Draughtsman, mas antes os vários modos como as artes aqui presentes (a banda desenhada, enquanto objecto diegético e enquanto o modo expressivo que atravessamos, as artes visuais, a arquitectura), como escreve Jean-Luc Nancy, “d[ão] conta dos traços distintivos da ausência da verdade, sendo ela verdade absoluta”, uma verdade cujo “ser é todo inteiro na sua manifestação” (Au fond des images, pg. 32 e 45). E há várias instâncias de “verdades absolutas” que se digladiam na vida de Koppens, por vezes simbolizadas por figuras tremendas, como o sol ou Cristo.
Koppens vai-se alterando ao longo desta sua aventura conflituosa. Repare-se como o conflito não é “interno” nem “psicológico”, pelo menos somente, apesar de existirem confrontos com memórias de infância, com as fantasias, com a paranóia crescente. Mas tampouco é um confronto directo e franco com a mulher, com o patrão ou até mesmo com qualquer representante da Igreja ou do Mundo da Arte. É um confronto directo com o domínio da arte, numa atitude muito benjaminiana, no fundo, em que se compreende que “ao olhar para uma obra de arte está-se a ser também olhado”.
O título - que na verdade se trata de um título de exposição que Koppens visita - remete, a um só tempo, para duas realidades. Por um lado, uma promessa diegética que faz adivinhar um fim e, com ele, um tom funéreo, plúmbeo, àqueles gestos que vamos vendo ser cumpridos pelo protagonista, como derradeiros, como prelúdio da sua morte (mesmo que esta não se verifique e bem pelo contrário, se possa dizer que é um “final feliz”: ele acaba por se dedicar mais à sua banda desenhada, parece; além do mais, há um intervalo significativo e propositado entre “dying/moribundo” e “defunto”). Por outro, uma associação de referências que talvez seja redutora, mas que estamos em crer ter o seu papel, a saber, alguns filmes de Peter Greenaway, nomeadamente The Draughtsman’s Contract, Drowning by Numbers, mas também The Belly of an Architect. O primeiro filme mistura um projecto artístico (um ciclo de doze desenhos), uma novela policial e um puzzle. O segundo envolve igualmente um crime, mas as relações conjugais vêm para primeiro plano, e a ideia de simetria, ordem e complexidade conceptual têm o seu lugar de destaque. Finalmente, o terceiro filme (realizado entre os outros dois) foca uma obsessão doentia e psicossomática da parte do protagonista, que o lança numa espiral vertiginosa, descendente mas que não deixa de ecoar ao mesmo tempo um processo de trabalho, ao qual o próprio artista se furta de completar, como se tivesse atravessado a linha proibida que separa inexoravelmente a arte da vida. Há sempre crises conjugais, crimes, e discursos sobre o acto artístico, tal qual como em The Dying Draughtsman.
De forma alguma queremos dizer que é apenas na leitura dessas três referências que o livro de Lobo faz sentido, e muito menos que eles sejam fonte da sua narrativa. De todo. Tão-somente é esse quadro uma desculpa, nossa, para tentar compreender algumas das linhas de interpretação possíveis. E, se regressarmos a Nancy, entenderemos essa tarefa como olhar para não somente uma separável dicotomia entre uma forma (os desenhos, o estilo, a composição) e um conteúdo (o tema, os princípios filosóficos implicados, a “confissão de arte” interna), mas perceber como uma e outro se entrosam num modo, se espelham. “Interpretar”, diz Nancy no mesmo livro já citado, “é configurar uma intensidade e intensificar uma figura”. E esse tipo de diálogo, tensão ou espelhamento é o que nos parece ocorrer entre as figuras de Francisco Koppens, a sua obra pessoal (a saga em banda desenhada, ao mesmo tempo projecto experimental) e as interrogações que lhe são feitas pelas obras de arte com que se confronta e que tenta ele mesmo interrogar. Há um projecto e um processo que vão sendo analisados pelo narrador da banda desenhada, ela é uma pesquisa sobre a “obra” de Koppens, mas é também um drama ou uma trama que tenta ir descobrindo pistas do passado e chegar a uma solução futura. Se crime existir, será o do isolamento insuportável a que o protagonista é votado, um pouco por sua própria responsabilidade, um pouco pela incompreensão dos demais.
A esmagadora maioria do trabalho de composição de Francisco Sousa Lobo é simples, trabalhando sobre uma grelha regular de 2 x 3, e suas derivações quer combinatórias (em que as vinhetas se “fundem” em vinhetas maiores) quer fragmentárias (em que se sub-dividem). O traço de Lobo parece manter-se quase num mínimo representativo, em que a expressividade das personagens - reduzida pelo uso de pupilas vazias para olhos e pouca modulação das expressões faciais - apenas se acentua de quando em vez em momentos-chave, e todos os fundos e planos se reduzem a quase-signos. No entanto, ele tira partido de um trabalho de tramas dinâmicas e oblíquas, que criam a ideia de profundidade, textura ou sombra. Além disso, o uso de uma segunda cor, o rosa, é empregue em determinados momentos para adicionar uma camada de significado, por vezes mesmo de modo bastante dramático, como em alguns momentos de falso diálogo, em que ninguém responde a Francisco. A forma como nesta imagem o “peso” é distribuído, acentuado pelas linhas dinâmicas, quase numa falsa imitação das linhas de movimento enérgicas da banda desenhada japonesa, mas que neste contexto acabam antes por sublinhar a inércia, a estase e o obstáculo intransponível de comunicação entre os membros do casal, tornam algumas das estratégias expressivas de F.S. Lobo soluções bastante impactantes, em termos de emoção e drama, precisamente num psicodrama quase tranquilo. Ou será antes uma apatia trágica?
Nota: agradecimentos ao autor e editor, pela oferta do livro.
Olá Pedro,
ResponderEliminarEsta entrada é a melhor promoção que um livro pode ter e confesso-te, por razões que ainda estou a tentar perceber, é uma das tuas críticas que me deu mais prazer ler até à data. Vem-me à memória que algumas vidas contrariam uma máxima batida atribuída a uma socialite cá do burgo: nem sempre estar vivo é o contrário de estar morto, por vezes é muito semelhante. Da trilogia que apontas do Greenaway, só vi o excitante "Maridos à Água", em que cometes um erro (que talvez não queiras corrigir) de simpatia entre "Drowning" e "Dying", imagino por pretenderes o mesmo efeito enviesado (is there anybody out there? :-) paralelo à transformação do moribundo em defunto presente na tradução do título. Apesar das tuas palavras e não tendo lido ainda o livro, não consigo encontrar isoladamente a relação com esse filme, vai-me obrigar a revisitá-lo um dia destes, sendo que é uma das fitas contraditoriamente, do ponto de vista masculino, mais divertidas - "the games people play" - e, portanto, mais fáceis de ver deste realizador nazoniano (de Nicolau, influências da minha terra natal, carago). Fizeste-me lembrar aquela pequena brincadeira que fiz de crítica ao trabalho do crítico, de encontrar obras que não corresponderão eventualmente às referências do autor, mas que enquadram o leitor no tipo de história que irá encontrar. Deixa-me juntar que, das histórias que ouvi do João César Monteiro, encontrei, para além das proximidades óbvias na técnica da banda desenhada diegética, afinidades com momentos da vida do realizador.
A prancha que apresentas no final do teu texto impressionou-me bastante e as tuas palavras que quase comparam a arte às linhas dinâmicas do Tatsumi (?) exprimem com fidelidade a emoção que a técnica empregada transmite, ou pelo menos dão pistas certeiras e orientadoras a outras interpretações. Nesse sentido e com uma variação pessoal, encontro neste recurso um belíssimo twist a um efeito utilizado habitualmente para demonstrar a dinâmica de uma acção, muitas vezes de natureza violenta, para transmitir desta feita o impacto de uma emoção, uma espécie de telecinésia emocional com que a personagem parece manipular o ambiente.
Ficou a faltar o comentário óbvio, deslocado e longe do alvo (para isso servimos nós, os comentadores ;-) de que o título brinca com a lenda do Flying Dutchman. Haverá, certamente, alguma ligação a fazer para além do paralelismo do navio fantasma à personagem principal. Arrisco, pois, que me parece herdeiro de uma tendência legítima de autores portugueses desaparecidos que se exprimiram através de bonecos, como Dinis Machado ou Roussado Pinto, de querer projectar a sua obra para além do burgo, temendo à partida a sua morte por não resistir à incompreensão de meia-dúzia dos seus pares, que embora no final os únicos presentes(final um pouco dramático).
Obrigado, Abraço.
José
Ha! "Dying" por "Drowning" é muito bom, mistura de lapso freudiano e a mortificação que Walter Benjamin dizia ser a tarefa crítica mais a distracção típica. Será corrigido, e com desculpas. Mas o resto mantém-se, mesmo que o autor nem sequer os tenha visto (não é esse o objectivo da referência, de resto). O espaço que encontro "em comum" tem a ver com a forma como as interrogações às obras de arte com que as personagens do Greenaway são confrontados levam sempre a rasgões emocionais e crises profundíssimas (e quase sempre à morte).
ResponderEliminarQuanto ao "mecanismo" visual a que me refiro, as tuas palavras são acertadíssimas: "telecinésia emocional" é bem justo.
Quanto à última parte, não é mal pensado, mas diria mais respeito à personagem Francisco Koppens, na sua obsessão, que ao autor Francisco Sousa Lobo, penso eu ainda jovem para pensar nesses modos. A leitura é obrigatória, claro.
Obrigado eu, abraços.
Pedro
Outra coisa... Comecei a ver os filmes do Greenway pelo inevitável "The Cook, the Thief, his wife and her lover", teria uns 15 ou 16 anos, o que me abriu as portas para um pequeno ciclo (no Quarteto) e depois um outro no Padrão dos Descobrimentos. Escusado será dizer que, sendo um neófito no cinema, foram filmes muito surpreendentes e impactantes. Mais tarde, começou a esmorecer o interesse pelos seus projectos mais recentes, mas um re-acendimento pela obra anterior ("The Falls" continua a ser extremamente intrigante). Mas quer se goste ou não, sempre achei que "Maridos à água" se parece referir a uma comédia com o Eddie Murphy, ou da série "Carry on" que passasse Sábado à tarde na televisão... Se bem que "Afogado em números" soaria a uma das minhas empreitadas em torno de contabilidade...
ResponderEliminarPedro
Acerca do título em português, há piores, como o oscarizado "The French Connection"/"Os incorruptíveis contra a droga" a lembrar um "eastern" :-) de Bangkok com o Chuck e o Bruce Lee, ou o meu preferido, vá-se lá saber porquê(eheheheh), "U-Turn"/"Sem retorno" do Oliver Stone. Vem tudo isto na tradição shakespeariana do "Much Ado About Nothing" que, apesar de igual na tradução para a nossa língua, é um anacronismo de uma revista à Portuguesa estrelada pela Ivone Silva e o Camilo de Oliveira em Maio de 74 :-))))
ResponderEliminarObrigado,
José
Já li o livro, e é na minha opinião um dos melhores livros de BD editados em Portugal.
ResponderEliminarNo panorama da BD em Portugal tem-se assistido ultimamente, salvo raras excepções, à afirmação de uma maestria gráfica que "afoga" alguns bons argumentos ou disfarça outros não tão bons. O propositado e aparente "despojamento" gráfico desta obra, para além de revelar coragem, adequa-se na perfeição ao argumento proposto. Digo aparente, porque uma leitura minimamente atenta, revela mestria na construção dos espaços e dos ambientes onde o personagem se move (ou não fosse o autor arquitecto), mas também nas expressões dos rostos.
Bom, como digo no texto, a expressão facial que Sousa Lobo propõe não é tanto minimalista como contida, e nisso é mais efectivo na impressão e ambiente do que se fosse por estratégias melodramáticas. De resto, é de facto um excelente livro.
ResponderEliminarObrigado,
Pedro Moura