A magnífica e regular produção de livros desta editora impede-nos de fazer uma leitura igualmente regular a atenciosa dos seus livros. Na verdade, a excelência material dos volumes, a plena liberdade criativa a que a pequena constelação de autores se entrega, a variedade de instrumentos narrativos, imagéticos, técnicos que perseguem, e acima de tudo, a verdadeira exploração profunda de uma liberdade humana e de temas torna esta uma plataforma não apenas digna de ser lida pelo mais vasto público possível, sobretudo o primeiríssimo, o infantil (dentro daquela noção da “dieta correcta de leitura” de que já havíamos falado), como por qualquer disciplina que se preze atenta à cultura visual, às relações texto-imagem, à própria ideia de ilustração, literatura infantil, etc. (Mais)
Um dos pontos fortes em termos globais (mas também poderíamos agregar outros gestos editoriais de autores portugueses, tais como a Orfeu Negro ou a Pato Lógico, por hipótese) é que as escolhas da Planeta Tangerina, em termos de mundo representado, abdicam daqueles pólos mais fáceis para mergulharem directamente num confronto directo com questões mais complexas. Em vez de moralidade, encontraremos nestes livros ética. Em vez de fantasia genérica, encontraremos uma visão maravilhada com as coisas do mundo. Em vez de uma construção distanciada de imagens-reificadas, brinquedos passíveis de uso, encontraremos campos visuais que obrigam a uma qualquer intervenção maior da parte do leitor, por vezes mesmo física: virar o livro ao contrário, ou folheá-lo para trás, ou caminhar com os dedos sobre ele, ou virar-lhe as “meias-páginas”. Alguns dos projectos não nos permitem esquecer estarmos perante livros, não num sentido relativamente banal ou relativamente surpreendente de se tratar de um livro-jogo, mas sublinhando precisamente a qualidade, a natureza de livro. No fundo, e associando-o àquela espécie de manifesto encontrado no blog da editora e na descrição introdutória de cada volume da colecção de Cantos arrendondados, os autores-editores da Tangerina tentam reformular, ou melhor, garantir a salvaguarda da verdadeira interacção estética, em vez de a deixar perdida como superficial acção de carregar botões ou ouvir sons saindo de uma página… Sem qualquer preconceito em relação às possibilidades, e até mesmo às experiências já existentes e absolutamente magníficas e integradas de várias plataformas digitais, apenas se pede que não esqueçamos que qualquer forma de arte, se o for, é desde logo interactiva. Temos portanto de ir além de uma descrição dessa relação, desse adjectivo, como dizendo respeito somente à técnica de alteração de um texto (ou de parâmetros predeterminados) graças ao input do leitor numa plataforma digital (computorizada). Assim, aceitaremos que o input de, por exemplo, os dedos (tecnologia digital!) a caminharem ao longo de um caminho feito de pontinhos azuis num spread, possa de facto alterar a natureza do livro, tornando-o… um caminho.
No entanto, estando em crer que leituras específicas revelarão mais instrumentos úteis do que uma consideração global, centremo-nos em apenas dois títulos recentes.
Este livro está a chamar-te (não ouves?). Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso.
Fazendo parte da sua colecção Cantos arredondados, este é um dos livros da Planeta Tangerina que pretende - através da imitação de certas estratégias comunicacionais provindas do teatro, da publicidade, do ensino, etc., em que, de um ponto de vista da teoria comunicacional, se mesclam e vincam as funções fáticas e conativas da “mensagem” - que os livros se tornem não apenas veículos que produzem um objecto com o qual os leitores se confrontam, de uma maneira reificada, mas igualmente que ele sirva de projecção ao mundo exterior, enquanto instrumento de descoberta, assim como de um reflexo transformado dele. Isto é, torna-se possível ler o mundo de uma maneira diferente depois da leitura do livro mas a leitura do livro pede igualmente uma memória da leitura do mundo. Daí que se procure expandir a esfera de experiência do leitor, a partir do texto, para fora, ora num espaço relativamente circunscrito e individual (uma mala ou uma gaveta, por exemplo, como no caso de O que há) ora num encontro com objectos naturais (Uma onde pequenina).
Que faz este livro? Dirige-se directamente ao leitor e leva-o a cumprir gestos precisos com o livro, desde colocar-lhe as mãos por cima numa determinada posição, caminhar na ponta dos dedos sobre as páginas, cheirar um canto, espreitar por outro, leva-o a que se cumpra um longo caminho que apenas aos poucos revela qual é o seu propósito, o que se procura e quem se ajuda. Esse pequeno mistério, de resto, é revelado logo na mini-narrativa, na brevíssima síncope que as separa, entre as duas guardas do início e do final do volume.
Apesar do gesto autoral, da escritora e da artista, ser unívoco, a abordagem dos dois elementos analisáveis pode revelar algumas pistas. Por um lado, podemos ver como as imagens parecem ser construídas com base em formas menores geométricas (um rectângulo, círculos) com carimbos ou outro tipo de objectos… criando-se padrões de fundo abstractos ou representativos (de um caminho, da chuva que cai, etc.). Em muitos desses momentos, há como que uma pequena materialidade visível, como quando alguns detalhes parecem seguir a técnica da mancha serigráfica. Estas dimensões visuais levam a ideias tais como as de espessura, de marca do autor, da presença do mundo real, texturado, nas duas dimensões planas do livro, ou na ideia até mesmo de recombinação, de sujidade (os carimbos que nunca repetem o mesmo padrão a nível microscópico), que não apenas têm uma relação consolidada com a narrativa contada como ainda com o tal propósito de tornar o livro numa plataforma interactiva.
Quanto ao texto, constituído por frases curtas e pequenas ordens, pedidos, instares e perguntas, que fazem sempre com o leitor não se esqueça estar num diálogo, ele é espalhado, no que diz respeito à sua matéria visual (tipografia), de formas pouco padronizadas. Ainda que respeitando uma estrutura ortogonal imaginária, e o seu nível de “gramatextualidade” (conceito de Lapacherie) ser constrito, ele pode surgir de lado, em letras mais pequenas ou maiores, dentro de uma caixa que inverte a relação preto-branco, pode ter uma relação intrínseca com marcas gráficas que a inflecte de um qualquer modo, como se procurasse seguir alguns dos traços da oralidade que um texto jamais ou dificilmente pode dar conta: a entoação, hesitações, volume, musicalidade, etc. De certa forma, este é um livro menos para ler do que um guião para uma performance a parte dos contadores e dos leitores.
E aqui estabelece-se uma curiosa transformação. À partida, diríamos que o livro não cria, nem procura criar, uma total ilusão de um mundo ficcional, o que impediria a “imersão” em termos narratológicos, isto é, uma espécie de absorção cognitiva da parte do leitor no mundo que é contado, e que leva a uma simulação mental de todas as acções, espaços, causalidades que eventualmente não são descritas pelo texto (ou/e imagens) em si, criando a ideia de continuidade natural. Ou seja, considerar aquele mundo como se se tratasse de um mundo real e tangível. Diríamos que as estratégias deste livro - as imagens altamente estilizadas que procuram relações icónicas reduzidas, o texto que estabelece sempre uma distância suficiente para que o leitor esteja “fora”, ou melhor, a relacionar-se com o livro qua livro - não permitiram isso.
Mas isso não ocorre. A imersão dá-se na mesma. Se quisermos complicar um pouco, através de alguns instrumentos teóricos, poderíamos compreender essa dinâmica mental da imersão (que não significa de maneira alguma um esquecimento de se tratar de um livro, de uma ficção, de uma história que se partilha na vida e experiência da realidade, etc.), no sentido que Paul Ricoeur prevê nos volume de Temps et récit, e as suas “três” mimeses. Esta, a mimese, define toda a narrativa, não tanto ao nível linguístico - o que permitiria a distinção entre ficção e facto, géneros, etc., e depois uma espécie de hierarquia entre as imersões e interactividades possíveis - mas a um nível maior, macroestrutural, da lógica de inferência da acção. Mesmo quando um texto parece ter um menor grau de referência ao mundo (imagens menos icónicas, no limite abstractas, uma linguagem poética forte, no limite visual ou assémica, etc.), ele vai constituir a experiência desse mesmo texto, ou, por outras palavras, é o acto da leitura que vai confundir uma qualquer instituição de foras e dentros do texto e que (ainda que se levantem aqui outras questões teóricas complexas, como a tradição, os esquemas, etc.) institui as “categorias de interacção entre a operatividade da escrita e a da leitura”, para citar Ricoeur.
Ora, nesse sentido, Este livro está a chamar-te. O título chega como sua explicação.
Olhe, por favor, não viu uma luzinha a piscar?/ Corre, coelhinho, corre. Bernardo Carvalho.
Em contrapartida, este outro volume parece apresentar algo mais simples. Duas histórias, relativamente lineares, que se vão cruzando incessantemente - ainda que apenas em termos espaciais, jamais em termos de acção - em todas as páginas (cujos conjuntos de duas, ou spreads, constituem uma única unidade visual-narrativa) são apresentadas conforme se leia o livro da esquerda para a direita, a partir da capa (da frente, normal, ou outro descritivo), ou da direita para a esquerda, a partir da contracapa (de trás, verso, etc.). Livro duplo, munido de dois títulos distintos que se referirão às duas diegeses, podemos dizer que este é “dois livros em um”, mas isso não é suficiente.
Se bem que Bernardo Carvalho seja um autor com uma linguagem gráfica particularmente forte, e um estilo que ele emprega repetidamente em vários dos seus projectos, ele é também um artista que procura explorar instrumentos e processos diversos em cada novo gesto, e vai exibindo uma capacidade notável de mutações internas, desenvolvimentos contínuos ou pesquisas em novas direcções. Mesmo que isso signifique muitas vezes uma aposta pouco compreendida por um público mais vasto. Por exemplo, a nosso ver, Trocoscópio é um dos seus livros maiores (e maior seria se houvesse uma caixa com as tais 142 peças para gáudio dos leitores-utilizadores, à moda de + e -, de Munari), e ainda que “fechado” nas suas combinações impressas, convida imaginativamente à continuidade da sua combinação.
No caso presente, encontramos aqui antes uma qualidade pictórica assaz vincada, que lembra mesmo o trabalho de Brecht Evens, pela sua qualidade de sobreposições de traços e cores, por vezes de forma propositada, esquemática, até mesmo fantasmática, por outras fruto do acaso ou da colaboração própria da aguarela. Não é surpreendente que a textura do papel surja por “detrás” da camada de representação – a vegetação, as frondes das árvores, a água do rio, o alcatrão, as superfícies dos objectos, convidando a mais uma vez considerações sobre a materialidade do livro a emergir.
Conforme a opção de leitura, como vimos, poderá haver ainda um jogo de selecção dos “nódulos” a ler. Eles são sempre visíveis, claro está, mas é como se se accionassem de forma mais premente em cada uma das linhas, e tudo o resto caísse numa ideia de “fundo”, de “paisagem”, acções “paralelas” mas que não estarão coordenadas entre si – elas só o são no momento da sua acção, da sua associação na sua própria linha narrativa. Isto é, a história do pirilampo não partilha com a do coelho personagens secundárias, objectos que pudessem passar de mão em mão, espaços comuns sem ser gerais, ou qualquer outro tipo de cumplicidade que não o da superfície da imagem. Mesmo assim, essas passagens poderão lançar-nos na ideia de que, em qualquer livro ilustrado, as acções secundárias, não exploradas, serão algures ou em algum momento histórias “principais”. A própria acção do leitor ter de virar o livro, de o manipular “de uma outra maneira” cria uma ficção projectiva de que todos os livros terão sempre dimensões “outras” passíveis de explorar (o que nos leva de novo àquela ideia da interactividade a que a leitura de um livro depois obriga ao mundo inteiro).
Como já foi indicado, cada página dupla apresenta-se numa unidade elegante, com uma ou duas cores dominantes, agregando todos os elementos num espaço concentrado: a rua, a estrada, o lago, a selva, a clareira. É também muito curioso que nenhuma das imagens revele o céu, ou muito pouco, optando-se sempre por um posicionamento do olhar focalizador de cima para baixo, um plano picado que demonstra – necessariamente em ambas as narrativas – um controle da sua matéria diegética. Há, portanto, uma concentração nítida nessas histórias, as quais, podendo ser descritas como sendo sobre amor ou amizade, a ausência de texto (matéria verbal) impede-as de tombar no perigo da moralidade ou de lições normalizadoras….
No entanto, cada uma delas, a história do pirilampo (Olhe, por favor, não viu uma luzinha a piscar?) e a do coelho (Corre, coelhinho, corre), podem ser vistas também como contrastantes. Ritmos diferentes, distintas relações e distribuições de importância actancial. Afinal, a primeira mostra apenas um protagonista em busca de um fito, a outra vai mostrando as acções partilhadas entre duas personagens (coelho e cão). As guardas, por oposição à do livro de Martins e Matoso, mostra uma diferenciação gráfica ad hoc que aponta à total liberdade visual implícita, até certo ponto autónoma de uma hipotética articulação narrativa entre ambas. Reforçando assim, então, a ideia de “dois” livros. Mas poderão ser as linhas ziguezangueantes cúmplices do voo nervoso e quase errático, de busca, do pirilampo, ao passo que as linhas paralelas querem dar conta da fuga recta do coelho e a perseguição inexorável do cão?
Se o livro de Martins e Matoso tem imagens estruturadas em mescla com texto, o de Bernardo tem apenas imagem(ns). Mais uma vez isto levanta problemas a uma subsunção simples destes livros à ideia de “literatura” ou mesmo de “literatura ilustrada”, que havíamos discutido a propósito do desequilíbrio da atribuição da importância autoral num caso particular. O estudo da ilustração, transhistórico e transdiciplinar, de resto, desde as imagens que mimavam narrativas célebres em vasos e ânforas à ilustração nos feuilletons novecentistas, das ilustrações de picture books às experiências de um Munari (referência maior que deve estar sempre nas nossas mentes ao considerarmos a ideia de interactividade e/ou livro-jogo, mas não só), demonstrarão que cada instância possui uma lógica própria, uma ordem de decisões discursivas, de operações técnicas determinadas, que devem ser compreendidas e exploradas como tal, e não somente subsumi-las, por um lado, aos propósitos narrativos (“contar uma história”), ou por outro, a uma apreciação impressionista (“belas ilustrações”, “estilos inconfundíveis” e frases de ocasião tipificadas).
Nota final: agradecimentos a J.M., pela ajuda na selecção dos títulos.
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