
Querendo apenas fazer uma breve apresentação do volume e contestar uma sua metodologia, seremos relativamente breves. O advento de toda uma série de ferramentas e plataformas digitais implicaram, desde logo (e como em qualquer momento de novo advento tecnológico, da escrita à imprensa, passando pelo rádio e cinema), um processo de remediação. A autora emprega este conceito de modo directo, a partir de uma famosa obra de J. D. Bolter e R. Grusin, Remediation: Understanding New Media, no qual os autores formulam esse novo conceito, ou uma nova maneira de entender um conceito herdado de McLuhan como “a lógica formal através da qual novas tecnologias mediáticas refabricam formas mediáticas anteriores”. Isso permite uma análise de qualquer nova tecnologia a partir da perspectiva de entender como é que ela negoceia uma qualquer forma anterior. No caso presente, esse é desde logo um problema de partida. A autora não é suficientemente flexível na consideração das categorias que indica e pretende analisar, criando, por um lado, considerações de géneros literários (a “autobiografia”), e por outro, de suportes tecnológicos (“álbum”, “graphic novel”, “blog”, etc.). Ainda que a autora compreenda que não segue uma ideia desincorporada de “conteúdos” e “formas”, ainda assim ela acaba por abrir espaço a alguns mal-entendidos nesse sentido. (Mais)
Se é verdade que muitas vezes as discussões de plataformas digitais se centram sobretudo nos seus dispositivos técnicos, e nos aspectos mais formais, a verdade é que já temos acess hoje em dia a todo um conjunto de experiências que poderiam mostrar uma diversidade produtiva no seu estudo, diversidade não apenas no que diz respeito àqueles parâmetros literários e técnicos, mas igualmente políticos, éticos, de relação com as contingências espácio-temporais dos autores e leitores. E, igualmente, a questões relacionadas com aspectos económicos, no sentido em que um blog pode ser uma hipótese para alguém publicar fora de circuitos editoriais constritos, por exemplo, ou caros, ou ser um “escape” para um autor consagrado, ou permitir um determinado tipo de tratamento de representação usualmente “vetado” nos circuitos mais normalizados, etc. Todos e cada um destes pontos, é evidente, exigiriam um estudo aturado e apurado da contextualização local dos autores escolhidos.
A autora, basicamente, quer estudar de que forma é que os blogs se “re-apropriaram” do género (ou meta-género, supra-género, etc.) da autobiografia, cuja emergência maior e de maior circulação na banda desenhada se deu nos anos 1990 dos dois lados do Atlântico. E, a partir desses estudo comparatista, ou melhor, contrastivo (já lá iremos), quer entender de que maneira é que um blog é diferente de um livro, e como é que se renegoceiam certas características, não apenas formais, mas éticas, políticas, ontológicas mesmo, da autobiografia. A um dado momento, ela coloca a seguinte pergunta: “que vozes se exprimem nestes blogs? Aquelas de personalidades autoconstruídas graças às técnicas do si discutidas por Foucault, ou aquelas de personalidades moldadas, de forma idêntica, pelo mundo em que vivemos?” (pg. 75).

A autora tem em atenção alguns dos pontos que o uso de uma plataforma digital implica, desde a sua capacidade de feedback dos leitores, outro tipo de interactividade, aspectos técnicos que adicionam uma qualquer camada não-presente na banda desenhada em papel, a dita “imediatez” das plataformas, a rede social que se cria, as possibilidades económicas de publicidade e associações com empresas, mas grande parte dessa mesma análise não é procurada de forma mais segura e alargada. Aliás, quer no caso de Bagieu quer no de Motin, as autores viriam a “conquistar” a possibilidade de editar em papel, mas não se procura analisar de que forma é que a versão em papel, por exemplo, trazem diferenças de composição, ordenação, e até mesmo forma, cor, etc., de maneira a compreender se a colecção de cenas diárias estabelece algum maior enquadramento narrativo, que Delporte contesta.
A conclusão da autora, no final de contas, é que o uso de blogs para a autobiografia não leva a uma pesquisa do si e do interrelacionamento ético com os outros, como ocorre nas autobiografias maiores, citadas, mas antes se tomba numa atitude de imitação do que já circula na sociedade contemporânea sob o signo do capitalismo tardio: “uma líbido consumista” e, para mais, subsumida ao género formulaico e altamente codificado da “chick’s lit” (termo descritivo e prescritivo com um fortíssimo pendor pejorativo). Partindo mesmo da grande discussão entre Neaud e Menu na Éprouvette 3, sobre a “crise” da autobiografia e o perigo desta se tornar um mero género codificado com toda uma série de passos “obrigatórios” para os novos autores, mas sem que se procurasse uma análise da própria condição de possibilidade desse discurso, a autora encontra nestas autobiografias em blog nada mais do que instâncias do que ela chama “bedê-realidade”, por comparação aos “reality shows” da televisão.
Neaud, naquele texto a dois, “Autopsie de l’autobiographie”, escreve o seguinte: “A meu ver, a autobiografia não se pode pôr em prática de um modo sério sem que o seu autor não se coloque em perigo”. No entanto, se é verdade que podemos aceitar essa mise en danger como um traço de maioridade e valorização estética de determinados projectos autobiográficos, deveremos entender isso como um princípio prescritivo? Poderemos identificar esse “perigo” nas primeiras histórias de American Splendor, de Pekar? E o que se passa nos primeiros livros de Jeffrey Brown, as primeiras páginas publicadas de Marco Mendes, um projecto como Les Ignorants? Será o mesmo tipo de “perigo” que encontramos em Neaud, David B., Spiegelman, Dreschler, Lynda Barry? Porque é que a autora não cita precisamente aquelas autobiografias em banda desenhada em livro em que se explora antes uma exposição do quotidiano, do banal, do “aborrecido” mesmo? Porque não analisa um caso como Stitches, em que há uma criação quase dicotómica entre um eu-vitimizado e um outro-monstruoso que não permite ao leitor criar inferências interessantes, ou não explora os aspectos mais delicodoces de projectos como Blankets ou American Widow? Ou porque é que a pesquisa de Delporte não a fez procurar autores que, ainda que trabalhando na esfera digital e da web 2.0 (e até exclusivamente, e que não tenham sido re-remediados para o papel, como o caso das suas duas autoras), explorem esse perigo? Porque não arrola um caso problemático como o da fabricação de Judith Forest, que traria fortes instrumentos desconstrutivos a este projecto da formação de um si pela autobiografia? No cômputo final, apenas fica a ideia de que a autora, ao criar estes reduzidos corpora, e tão absolutamente opostos, pretendia tão-somente poder criar precisamente uma dicotomia clara e nítida, precisamente digital! (não/sim, bom/mau), em vez de procurar uma negociação ao longo de um qualquer eixo de gradientes e intensidades. Como se fosse possível uma definição (um número fechado de condições necessárias e suficientes) de um género, categoria necessariamente flexível, histórica e culturalmente.
Parte da análise advém do facto das narrativas das duas autoras de blog não criarem uma narrativa fluida e contínua, desprovida de estratificações de tempo diegético que criem uma ideia de passado retrospectivo, a ausência de um envolvimento real e “perigoso” das pessoas que comporão a constelação de relações imediatas (mesmo que sejam casadas, ou pais ou filhos ou parceiros sexuais, estes ou não surgem ou apenas têm rápidos papéis inócuos). Delporte diz mesmo que não são, portanto, autobiografias. E mais do que “publicar” as suas vidas, as autoras estariam a “publicitá-las” (até mesmo por desenvolverem estratégias que as levam a ter patrocinadores, a fazer publicidade directamente a determinados produtos comerciais, etc.

Se o ponto de partida é pertinente e até mesmo premente no quadro dos estudos de banda desenhada actuais, o desenvolvimento da pesquisa, o seu ponto de partida analítico e os resultados da investigação levantam demasiados problemas para aceitar as suas conclusões dicotómicas.
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