15 de abril de 2014

Edições especiais MSP. Introdução 2.

Parte 2. (parte anterior) 
É importante recontextualizar os passos de Maurício de Sousa no seu tempo, na medida em que batalhava num mercado ocupado sobremaneira por publicações com material estrangeiro, quer para públicos adolescentes (os livros de super-heróis da DC) quer para os mais jovens (com as revistas da Disney), mas cuja conjuntura cultural e política era marcada por um rejuvenescimento do Brasil - a nova capital, Brasília, é fundada em 1960 - e um crescimento económico e industrial indesmentível. Waldomiro Guerreiro e Nadilson Manoel da Silva, em dois artigos no primeiríssimo número do IJOCA (o de Guerreiro precisamente sobre o surgimento da obra de Maurício no contexto dos quadrinhos infantis do Brasil, o de Silva sobre banda desenhada  adulta), colocam o pai da Turma num palco cultural brasileiro onde se encontra o Cinema Novo de um Glauber Rocha, a poesia concreta e a bossa nova. (mais)
Nessa convergência de potencialidades artísticas, novo ímpeto político e económico, um orgulho nacional virou-se para a possibilidade de criar textos ancorados na cultura própria do país, e é nesse sentido que encontraremos e compreenderemos o sucesso, ainda que curto, de Pererê. Esta é ainda a obra de quadrinhos mais famosa de Ziraldo, o qual é também um outro autor que pugnou por uma produção de quadrinhos nacionais que procurava rebalançar a presença de material estrangeiro. No entanto, ao contrário de Ziraldo - que parece escavar um imaginário rural, popular e mítico local para criar as suas histórias - ou de Renato Canini e Ivan Saindeberg - sobre quem falámos como responsáveis por uma inflexão do Zé Carioca para a sua mais profunda “brasileidade” [ver aqui]-, Maurício parece optar pelo “eclipse” dos traços absolutamente localizados. Todavia, isso também deve ser compreendido no seu preciso momento histórico: o golpe de estado militar de 1964, a repressão de opiniões e representações divergentes, com todas as consequências que isso tem para a vida quotidiana e cultural dos seus cidadãos (o Brasil só regressaria à democracia em 1980). 


Isto não tem de ser visto como necessariamente negativo, em si mesmo. Recordemos que, por razões e num contexto diferentes Hergé também evita que o seu Tintin se pareça belga. O mesmo poderia ser dito de uma mão-cheia de outras personagens, norte-americanas, espanholas, italianas e mesmo portuguesas, naquela busca por um “universalismo” das suas narrativas. Escusado será dizer que esse “universalismo” nunca é total nem absoluto, e que independentemente de não se procurarem pormenores específicos de uma cultura ultra-localizada (através de marcos geográficos, objectos cartografáveis, linguagem regional, etc.), haverá sempre marcas que apenas serão “invisíveis” para quem está imbuído nessa cultura mas que será estranho para quem está de fora. Uma maçã pode parecer-nos um dos frutos mais banais do mundo, mas a lição de Ch. Adichie sobre o papel da maçã no seu imaginário infantil, e que se associará novamente às questões levantadas por Spivak, alerta-nos para a impossibilidade de “uma história única”. A exploração de culturas localizadas brasileiras, com Chico Bento e Papa-Capim não podem, na economia geral da Turma, ser vistas como aquiescências a uma diversidade cultural, mas como um aproveitamento pela estratificação de clichés, estereótipos, imagens pré-fabricadas que permitem uma nova via de comodificação, para não dizer “domesticação”, dessas culturas. 


Mas essas foram as opções de Maurício de Sousa, que lhe permitiram ir construindo um pequeno “império”, em primeiro lugar fundando uma lógica de trabalho de estúdio, com cada vez mais autores (argumentistas, desenhadores, arte-finalistas, coloristas, legendadores, e depois animadores, etc.), e rapidamente encontrando formas de garantir uma maior liquidez financeira através do “licenciamento” para vários produtos comerciais, até aos tais papéis institucionais. Se bem que se possam entender essas estratégias - de produção e comercialização - como sendo decalcadas de práticas estrangeiras, essa não é senão uma possibilidade do capitalismo moderno e globalizado, e, diga-se com propriedade, foi graças a elas que Maurício terá conseguido atingir o objectivo de garantir uma presença absolutamente sólida de um produto brasileiro no seu país, uma vez que o seu crescimento seria acompanhado também por uma diminuição da venda da Disney. Desconhecendo os números e percentagens actuais, no artigo citado de Vergueiro citado indica-se que, em 1998, “a circulação total de revistas Disney no Brasil eram apenas 15% dos títulos de Maurício”. 


A comparação com Disney não é de modo alguma exagerada, já que na mente de muitos dos seus leitores, sobretudo os mais jovens, repete-se aquele padrão imaginativo de imaginar que todas as histórias são feitas pela mesma mão. Na verdade, nos dias que correm, muitas vezes Maurício de Sousa apenas confirma ou rejeita argumentos, e se o motor editorial dos projectos de que falaremos é Sidney Gusman (que entrevistámos precisamente neste contexto para o blog aCalopsia), eles atravessaram o crivo do “pai” das criações originais. 


Há portanto, quase obrigatoriamente, um feixe de contradições e situações paradoxais numa obra desta envergadura (50 anos de produção multimediática não podem ser compreendidas de acordo com apenas uma leitura). Um dos aspectos eventualmente criticáveis é o facto dos artistas não assinarem os trabalhos, sendo portanto impossível, sem recurso a material extra-textual, a compreender quem é o argumentista, o artista ou o arte-finalista de uma determinada história. Parte dos suplementos informativos que têm acompanhado as re-edições em arquivo, as colectâneas históricas, estes novos projectos que trazemos aqui à discussão ou entrevistas, etc., vão revelando vários nomes, como os de Sérgio Tibúrcio Graciano, o artista da casa que usou um borrão de tinta feito com o dedo para representar o cabelo indomável de Cascão, fundando uma assinatura estilística dessa personagem; de Emy Acosta, que terá sido a principal responsável, durante os anos 1980, pela transformação da angularidade das personagens, herdadas do estilo da mão do próprio Maurício, para as suas versões mais “arredondadas” (inscrevendo-se assim numa imensa família figurativa que abarcaria produções de todo o mundo, de Disney a Tezuka a Peyo); ou ainda de Rosana Munhoz enquanto importante argumentista (e artista) nos anos 1980. Não parece haver nenhum impedimento contratual dos autores falarem publicamente dos seus trabalhos, “assinando-os” dessa forma (coisa que durante anos foi impossível para os autores da Disney), mas não há a possibilidade de o fazer na publicação. Isto é tanto compreensível numa indústria de “work for hire”, e recordemo-nos de que apenas recentemente é que a Disney permite fazê-lo, no contexto brasileiro e europeu (nos Estados Unidos, teremos de olhar para as edições arquivo-históricas de Barks e Gottfredson, ou projectos deste mesmo ano com a Marvel, Disney Kingdoms). Se para a Disney temos a base de dados Inducks, duvidamos que alguma vez seja possível fazer o mesmo tipo de construção de dados com a MSP. Mas a publicação “Ouro da casa”, de que falaremos, é uma das formas de “levantar o véu”. 


De resto, estes projectos atravessam um processo quase natural de transformações dos textos originais pelo tecido histórico, as adaptações ao tempo da história, às circunstâncias de mercado, etc. Reparemos num exemplo, que é explorado por muitos autores nas antologias: o da “idade adulta” das personagens da Turma.

Não é particularmente surpreendente a noção de ler, na possível maturação relacional entre personagens à medida das suas idades, uma situação amorosa. Onde na infância se veria uma rivalidade que opõe os sexos em papéis diferentes (menina não entra, os meninos são tolos, etc.), essa mesma rivalidade transformar-se-ia depois em atracção mais ou menos velada. Assim, nestas versões onde o amor é possível, seja ele carnal ou platónico, passional ou não-correspondido, adolescente, adulto ou ancião, encontraremos Cebolinha e Mônica, Luluzinha e Bolinha, Charlie Brown e Lucy, entre tantos outros. De resto, se imaginarmos o universo paralelo da Turma da Mônica Jovem como oficial, então todas aquelas versões MSP onde vemos uma qualquer vertente que explora essas relações já havia sido consolidado oficialmente na TMJ no. 34, cuja capa mostrava aquilo que já havia prometido desde o surgimento dessa versão Ultimate, perdão, Jovem, e ia jogando ao longo das histórias. A questão aqui complica-se, pois terá a ver com a necessidade, quase intrínseca, do estilo mangá a que se entregara, já que a banda desenhada japonesa, mormente aquela mais convencional, e do território do shoju, a que TMJ pertence, exige uma exploração de emoções mais carregadas, enlaces românticos, tensões entre as personagens que ultrapassem a esfera da acção. Ou seja, há toda uma série de ingredientes que foram sendo agregados que levaram a essa situação inevitável, as quais, no cômputo geral, darão a sensação de crescimento das personagens (mesmo que se esteja, ainda assim, longe de uma maturidade que já havia sido explorada na banda desenhada, pelo menos no que diz respeito ao envelhecimento crónico das personagens, desde Gasoline Alley, de Frank King). 


Falámos acima das transformações estilísticas levadas a cabo nos anos 1980, mas uma leitura atenta de todos os materiais revelaria outras pequenas inflexões ou “actualizações”. Não é de forma alguma possível considerar que nestas décadas de produção de quadrinhos, tudo tenha seguido um número fechado de fórmulas. Apenas a título de exemplo, na revista Mônica no. 23, existe uma história do Astronauta (ver imagem) feita por uma equipa de artistas em formação nos estúdios de Maurício. Nela, surgem diferentes estratégias de estratificação de planos, escorços de grande dramatismo, pormenorização no tratamento das figuras e na expressividade das personagens, assim como nos fundos naturais da paisagem, e até nalguns modos de construir a narrativa, com flashbacks, suspense, etc., o que a torna radicalmente contrastante com as histórias mais usuais. Afinal de contas, num cômputo geral, a MSP produzia histórias de uma meia-dúzia de páginas, concentradas numa anedota simples, por vezes diminuindo a histórias de apenas três  páginas, ou mesmo uma, ou ainda às tiras finais das revistas, etc. (para não falar das tiras clássicas de 4 vinhetas do início). Ou seja, não estamos perante um universo que tenha desenvolvido estruturas narrativas de alta sofisticação, mas antes exercícios de contenção e rigor narrativo. Mais raramente encontraremos histórias longas, mas numa curta consulta de alguns exemplares poderemos ver algumas com mais páginas, tal como aquela já citada do Astronauta (com dezanove páginas). Esta situação teria as suas excepções marcantes em todas aquelas adaptações com a turma em histórias já conhecidas e adaptadas (de Romeu e Julieta em 1978, as versões dos filmes mais recentes de super-heróis, e, claro, a história contínua da versão Jovem). Isto, portanto, para dizer que nada disso surpreende numa pequena indústria de banda desenhada infantil de humor. 


A questão está em saber se os projectos de que falaremos trazem alguma “diferença” significativa.

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