14 de abril de 2014

Edições especiais MSP. Introdução.


Parte 1.
Nos próximos dias, deixaremos alguns apontamentos sobre toda uma série de livros produzidos pelos estúdios da Maurício de Sousa Produções, nos últimos anos, no quadro das comemorações sucessivas dos aniversários das várias personagens criadas por Maurício de Sousa, e as publicações - tiras, revistas, etc. - que lhes estão associadas. Começando por Bidu, rapidamente se chegaria a Cebolinha, Chico Bento e depois a Mônica, que acabaria por se tornar a personagem principal, ou eixo representativo, desse universo de referências. Os 50 anos da Mônica levaram a toda uma série de publicações comemorativas, num ritmo de produção pujante, desde a reedição das tiras “clássicas”, ao relançamento dos números de todas as revistas principais em caixas coordenadas, já para não falar de edições especiais, como aquela “de luxo” produzida pela Levoir e distribuída por dois diários portugueses. (Mais)

Mas além disso, levaram também à criação de dois grupos de publicações, precisamente aquele a que faremos menção, por um lado as antologias de histórias curtas e ilustrações “MSP” e, por outro, as narrativas mais alongadas e autorais, “MSP Graphic”. De acordo com a sua existência económica e empresarial, estes projectos trazem uma dimensão relativamente inédita, mas ao mesmo tempo permitem levantar questões curiosas sobre as próprias práticas - não apenas empresariais como estéticas e mesmo políticas - da MSP (quando falarmos da empresa, referir-nos-emos à sigla, quanto ao autor individual falaremos de “Maurício”, como é sempre chamado). A razão é que estes títulos têm um ponto em comum que as torna passíveis de uma consideração particular: é que são obras “assinadas” que não pelo próprio Maurício ou o selo editorial, trazendo uma inflexão autoral sobre um universo há muito marcado pelo seu inerente processo industrial.


A fama da Turma da Mônica, quer no Brasil quer em Portugal (ainda que a diferença de vendas seja assombrosa, dada a população massiva do Brasil contra os parcos habitantes-leitores de “gibi de quadrinhos” desta nossa lande), é incontestável. No nosso país, a distribuição das revistas da Abril desde a década de 1970 [a imagem mostra a tira de 1963 em que a "dentuça" surge pela primeira vez], pelo menos, assegurou a sua fama, presença e influência, e é quase seguro dizer que a esmagadora maioria dos leitores de banda desenhada que com ela tenham contactado na infância terão passado por um ou outro título dessa família. A abertura de um parque temático na Amadora, no ano passado, independentemente de estar ou não coordenado pelos esforços em prol da banda desenhada do CNBDI/FIBDA, ou terem tido um apoio especial da companhia detentora dos direitos, etc., não deixa de ser um sintoma da fama daquelas personagens. Todavia, a influência deste universo de referências não pode ser nem por um lado menosprezado, mesmo no circuito dito independente ou alternativo, mas tampouco reificado de modo absoluto. Isto é, acreditamos que sendo algo lido quase universalmente (no interior do espaço Portugal-Brasil, e sobretudo no Brasil), e quase seguramente num qualquer momento pelos autores de HQ (i.e., no Brasil), ele tenha servido de modelo numa decisão de caminho a tomar. Ou seja, qualquer que possa ser a atitude em relação à criação de quadrinhos, as gerações consequentes terão a Turma como referência. Modelo a imitar, modelo a compreender e adaptar a pulsões pessoais, ou mesmo a recusar e resistir. 


Não poderemos esperar que todos os autores tenham a obra de Maurício de Sousa como “modelo ideal”, “grande exemplo”, “obra inesquecível”, “memória nostálgica”, etc., havendo seguramente quem não os tenha lido ou quem não aprecie a sua matéria gráfica e narrativa de modo algum. Mas existem exemplos esparsos, parece-nos, no circuito independente, que remetem a esse universo de forma explícita, como o livro O louco, a caixa e o homem, de Daniel Esteves e Will [ver imagem], por exemplo, que abertamente demonstra como o desenvolvimento das personagens e sua relação bebe de modo óbvio daquele entre o Louco e o Cebolinha. E mesmo ao ler Nanquim descartável, também de Daniel Esteves, com uma bateria de artistas visuais, apesar de se tratar de uma obra construída à base de vívidos e realistas diálogos entre jovens adultos sobre as suas relações de amor, amizade e tensões de separação, em contextos quotidianos e triviais, num trabalho raro de complexidade emotiva, de ressonância com o real, mas também de tessituras de experiências, memórias, sonhos, enfim, uma maturidade que nada parece ter a ver com a matéria da MSP, a verdade é que se consegue imaginar, precisamente pela mescla de imaginários, que essas personagens – Ju, Sandra, Tuba, Pedro – são reflexos potenciais da turminha de crianças mais famosas.


Como sucede com muitos trabalhos que acabam por ganhar um peso cultural incontornável, ou mesmo poder institucional - o uso das personagens para campanhas publicitárias, propaganda governativa, missões diplomáticas, etc. reforçam esse papel -, muitos dos seus elementos tornam-se nítidos para uma desconstrução do ponto de vista das várias disciplinas dos estudos culturais. Além disso, a sua inscrição no tecido histórico leva a que uma sua leitura deslocada leve a transformações internas ou a desmantelamentos algo deslocados. O mesmo ocorre em relação a Disney ou Hergé, modelos comparáveis com os de Maurício nas suas escalas respectivas. Como em muitos outros aspectos, e como escreve Hugo Frey em relação a Hergé, mas cujas palavras podem ser aplicadas neste contexto, é preciso evitar cair nos extremos da “disputa excessivamente polémica” ou da “actividade comemorativa”. 


Se dizemos isto é por compreendermos que algumas das críticas perenes à Turma não deixam de ter razão, mas devem ser contextualizadas e compreendidas em que medida é que são “corrigidas”, “transformadas” ao longo da sua presença histórica, ou que “usos” é que têm nas narrativas. Por exemplo, o facto da própria Mônica ser uma personagem que recorre repetidamente à violência para resolver os seus conflitos poder ser visto, de uma determinada perspectiva, como criando um mau modelo para os seus leitores mais novos, que se encontram em processos vivíssimos de sociabilização. Não se trata aqui de uma defesa de uma ideia algo redutora de causalidade e influência directa, mas sim de uma compreensão de que todo e qualquer elemento que faça parte da “dieta” cultural dos leitores, sobretudo dos mais jovens, contribuirá decerto para a construção da sua subjectividade. E se evitar o delicodoce é, a nosso ver, uma obrigação parental, também o é procurar modelos mais salutares na construção de novas comunidades. No entanto, o tipo de violência também pode ser entendido como uma espécie de cifra estilizada, que não se reveste de forma algum a de contornos realistas, passíveis de “imitação directa”. Porém, a quantidade de “correcções” que muitas das histórias sofreram com as suas reedições - em que as personagens deixam de pichar paredes, ou se substituem armas de brincar por outros brinquedos, ou se  corrige uma qualquer linguagem mas afoita, etc. - fazem entender que existe uma sensibilidade, da parte da força editorial, para as mudanças de atitude para com a educação dos mais novos. E, por mais vocalizadas que sejam as reacções dos mais conservadores que se alertam dessas mudanças, elas fazem parte das transformações sociais, tal como o desaparecimento de aconselhar as grávidas a beber cerveja ou o acesso às bombinhas de Carnaval ou a cigarros de chocolate. 


A nosso ver, contudo, acima das críticas à dieta infinita de Magali (ponto que até um crítico da envergadura de um Moacy Cirne admoestou), ou ao lambdacismo do Cebolinha, aquilo que mais nos surpreende é a relativa “invisibilidade” dos traços culturais brasileiros nas história da Turma. 

Ainda que compreendamos que a construção paulatina da Turma da Mônica imite modelos como os da Disney ou da Luluzinha [ver imagem] ou mesmo Nancy, em que o fundo espacial e social é aparentemente “neutro”, a verdade é que essa neutralidade é sinal precisamente de uma sua inscrição americano-eurocêntrica. Se a existência de tapumes de madeira ao longo de passeios, moradias individuais, não-geminadas, cobertas de relva bem cortadinha, etc. parece representar “qualquer lugar”, a verdade é que esses elementos não existem necessariamente em “todo o lado”. E arriscaria mesmo dizer que não corresponde a nenhuma imagem “média” no Brasil. Em primeiro lugar, em relação a este ponto específico, é preciso ter em conta que não obstante o mais tardio surgimento de um nome próprio do bairro da Turma, e uma sua localização mais específica (o Bairro do Limoeiro, supostamente em São Paulo), o espaço actancial destas personagens era neutro, ou pretensamente neutro. Dizemos pretensamente, uma vez que temos de ter em mente as lições propostas por aquele influente ensaio de Gayatri Spivak, “Can the Subaltern Speak?”, e por inflexões de Lila Abu-Lughod, de que a presença de um texto “neutro” está para o lugar de um “si ocidental não problematizado e não-marcado”, e cuja aceitação elimina a presença de uma possibilidade diferenciadora, a presença de um outro (marginalizado, subalternizado, etc.). Isso torna-se ainda mais vincado quando vemos que alguns autores, como veremos, tomam opções de representação que iluminam precisamente essa ausência de traços sociais marcados, espaciais ou mesmo raciais/étnicos (que abordaremos em relação às antologias). (continua)

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